Capítulo 26
Dois meses sem Ciça. Eu não estava contando, mas era inevitável que de vez em quando me pegasse lembrando desse tempo. Assim como tinha virado rotina pensar nela todas as noites. Quis mandar mensagem, quis ligar, quis propor que ela viesse ao Rio por uns dias, mas não atendi a nenhuma dessas vontades. Seria pior se eu me reaproximasse dela só para depois tê-la longe de mim de novo. Ciça jamais moraria no Rio. E eu não voltaria para o interior. Que futuro nós tínhamos?
Por outro lado, ninguém mais parecia me interessar. Passei o Carnaval com meus amigos, sem nem ao menos flertar. Na verdade, saí com eles por três dias, mais que isso me parecia insuportável. Um mar de gente, de todos os tipos, cores, tamanhos, nacionalidades, mas nenhuma me despertava qualquer interesse.
Assim que meu segundo pagamento caiu na conta fui atrás de uma kitnet. Não via a hora de voltar a ter um espaço só meu e de liberar a sala de Vitor. Por mais que ele e João Paulo sempre tivessem sido uns amores comigo, já me sentia atrapalhando. Só aceitei passar aqueles primeiros meses na casa deles por saber que seria temporário.
Quando fechei o contrato de aluguel, Vitor ofereceu ajuda com a mudança. Mas eu não tinha o que levar, além das minhas roupas. Quando me mudei para o apartamento da tia Rita, vendi todos os móveis que tinha. Não tinha onde deixar e nem como transportar para lá. A única coisa, além de roupas, que eu tinha naquele momento, era o colchão que Vitor me doou.
Dormi os primeiros dias sem absolutamente nada em casa. Água eu comprava gelada e deixava na garrafa térmica. As roupas eu precisava lavar na mão. As refeições eu fazia na rua, nos lugares mais baratos que encontrava. Só no mês seguinte comprei uma geladeira — usada! Minha tia transferiu um dinheiro para mim, mesmo eu dizendo que não precisava. Devolvi. Ela transferiu de novo. E eu acabei usando para comprar um fogão.
E assim se passaram meus primeiros seis meses de volta ao Rio. Cento e oitenta dias em que precisei me readaptar, pois de uma forma que eu achava bizarra, as coisas se inverteram. Era como se eu tivesse morado a vida toda no interior e estivesse conhecendo a cidade grande.
Cento e oitenta dias em que eu pensava em Ciça pelo menos uma vez durante meu dia.
*****
— Ah não, Ciça… pelo menos um dia!
Léo estava deitado, ou melhor, jogado na minha cama tentando me convencer a sair com eles no Carnaval.
Eu não tinha a menor intenção de fazer outra coisa a não ser passar o feriado deitada, assistindo séries e comendo porcarias.
Carnaval nesta cidade? Não existe. Então tínhamos que sair, o que me desanimava mais ainda:
— Pra eu ficar contando os minutos pra voltar pra casa?
Ele sentou na cama de repente, com um ar de revolta:
— Cara, não dá pra você ficar assim… Você precisa reagir. Conhecer gente nova. Ver outras pessoas…
Eu sabia que ele tinha razão. Mas não era, nem de longe, o que eu queria. Eu não tinha a mesma desenvoltura que meus amigos, eu não sabia dar em cima de alguém, eu não tinha atributos físicos o suficiente para chamar atenção numa festa como o Carnaval.
— Léo, eu só quero descansar.
Ele ficou de pé:
— Descansar de quê? Você nem sai de casa.
Eu suspirei e sentenciei, fazendo com que eles parassem de tentar me convencer:
— Eu ainda não quero. Preciso de mais tempo.
Os meses seguintes foram como uma redescoberta. De mim mesma. De tudo que eu conhecia. Da vida. Profundo demais? Mas era essa mesma minha impressão, como se uma nova lente tivesse sido colocada nos meus olhos. Minha perspectiva era outra. Aos poucos voltei a me alimentar melhor. Reincorporei à minha rotina as caminhadas e corridas no parque. No começo não foi nada fácil, como se Marcela estivesse impregnada em cada partícula de poeira, cada folha das árvores, cada minúscula pedrinha que compunha o caminho asfaltado pelo qual eu passava.
A ausência dela pesava sobre o meu corpo vinte e quatro horas por dia. Como se fosse um peso físico que eu passei a ter que carregar. Alguns dias eram mais fáceis, outros quase impossíveis. Como um luto por uma pessoa que ainda estava viva.
Minha nova ótica me fez dar valor ao que realmente me importava. Busquei fazer coisas que me davam prazer, que faziam eu me sentir viva, por menor que fossem. Viajei com Léo para um spa. Tivemos cinco dias de rei e rainha. Cortei meu cabelo de uma forma diferente, despojada, em camadas que davam mais volume. Fiz uma tatuagem que preenchia boa parte do meu braço, bem visível, colorida, viva. Algumas pessoas comentaram sobre o desenho e sobre o meu cabelo. Não sei se foram coisas boas ou ruins, não me lembrava, já não me importava o que os outros pensavam ou diziam. A única pessoa da qual eu gostaria de saber a opinião já não fazia mais parte da minha vida.
A maior surpresa foi a aproximação de Érica com nosso grupo de amigos. Foi tão gradual e natural que não sei dizer quando e como exatamente ela passou a fazer parte. Sempre que íamos ao gigante, ela era chamada. Claro que isso estava diretamente ligado ao fato do casamento dela estar por um fio. Ela desabafou comigo e com Isabela por diversas vezes. E nós, implicitamente, sempre tentávamos fazer com que ela enxergasse que aquela relação era péssima. Até que, finalmente, em uma quarta-feira ela me mandou uma mensagem perguntando se eu poderia encontrá-la. Depois que saí do trabalho, passei em casa, comi alguma coisa e fui para o gigante. Érica já estava sentada, sozinha na mesa, com uma garrafa de cerveja. Assim que eu cheguei, nos cumprimentamos e eu sentei. Ela soltou com um sorriso no rosto:
— Vou me separar de Henrique.
*****
— Você tá falando sério?
Minha prima respondeu rápido do outro lado da linha:
— Sim. Minha decisão já tá tomada.
Eu ainda demorei a acreditar. Me levantei da cama e quase pulei sozinha, no meio da minha kitnet:
— Meu Deus, Érica! Que notícia maravilhosa!
Ela já estava dando sinais de que, enfim, começava a enxergar a relação tóxica que tinha com o marido. Nos últimos meses, quando nos falamos por telefone, Érica me contou que viu mensagens comprometedoras no celular dele. Henrique inventou uma historinha qualquer, como sempre, que minha prima acatou num primeiro momento, mas eu percebi que algo dentro dela havia mudado.
— Eu já falei com ele. Não quero mais… Eu cansei, Marcela. Cansei de ser feita de boba.
Eu fiz uma comemoração muda, sacudindo minha mão, e sufocando um grito de alegria. Para minha prima, mantive o tom feliz, mas não exultante:
— Fico muito feliz por você. De verdade. E se precisar de alguma coisa, eu tô aqui… Se quiser vir passar uns dias comigo…
Érica agradeceu:
— Seria ótimo, mas agora não posso. Preciso trabalhar, mais do que nunca. Vou me mudar com Luize para o apartamento que você morou…
Ela fez uma pausa antes de pedir:
— Talvez você possa me ajudar conversando com minha mãe.
Eu não entendi:
— Com sua mãe? Por quê?
Minha prima suspirou:
— Ah você sabe como ela é… Tá toda sentida porque a filha vai se separar… Porque ela acha que casamento tem que ser pra sempre, essas coisas…
Eu já tinha um discurso pronto para tia Rita:
— Vou falar com ela, pode deixar.
Era o fim de uma sexta-feira. Saí da Galeria, passei no supermercado, peguei um carro de aplicativo e fui para casa. Preparei meu jantar e meus almoços da semana seguinte, congelando as marmitas. Comi sozinha, como já estava acostumada. Abri uma longneck só para relaxar. Estava um pouco ansiosa e sabia o porquê. Quando terminei, fui para a cama. Peguei o celular e fiquei perambulando pelas redes sociais, passando de story em story, até que uma imagem na tela fez meu corpo inteiro gelar. Era o perfil da minha prima. Uma foto cheia de pessoas que eu conhecia: Érica, Isabela, Juliano, Léo, Ricardo, Diego e… Ciça. No meio de todos eles, segurando um bolo. Sorrindo. Meu corpo inteiro palpitando, pulsando, suando… com a simples imagem dela. Percebi na hora que ela tinha cortado os cabelos. Meu olhos se prenderam na tatuagem que eu sabia ser nova, mas não consegui decifrar o desenho. O motivo da minha ansiedade: no dia seguinte era aniversário de Ciça. Eu não sabia se deveria mandar uma mensagem ou não. E não esperava encontrar uma foto naquele dia e, menos ainda, no perfil da minha prima.
Demorei para conseguir dormir e, assim que acordei, liguei para Érica. Queria saber a opinião dela sobre o que deveria fazer: mandar uma mensagem padrão, ser mais pessoal ou não mandar nada. Ela não me atendeu. Só me retornou mais de uma hora depois:
— Tá ocupada?
Ela respondeu:
— Não, pode falar.
Eu não sabia por onde começar:
— Vi sua foto com Ciça ontem.
Érica ficou em silêncio por um breve momento, depois falou:
— Nós fizemos uma festa surpresa… já que hoje ela vai pra casa dos pais.
O incômodo dentro de mim fez meu tom soar como uma cobrança:
— Não sabia que vocês eram amigas.
Minha prima explicou calmamente:
— Eu me aproximei de todos… Eles meio que me acolheram, na verdade. Depois que me separei… fiquei meio perdida… Percebi que a maioria das amigas que eu tinha eram as esposas e namoradas dos amigos de Henrique.
Érica estava alheia ao que realmente me incomodava. Ciúmes, talvez. Não que eu achasse que poderia acontecer algo entre Ciça e minha prima, não se tratava disso. Era um ciúme invejoso. Como se o fato de eu não poder estar perto dela, também tivesse que impedir Érica de estar:
— Entendi…
Com certeza minha prima notou meu tom quase irônico.
— Marcela… não te falei nada porque eu achei que… você não quisesse notícias dela. Você nunca mais me perguntou nada. Eu não sabia se seria incômodo pra você se eu falasse algo…
Eu respondi rápido, demonstrando na minha irritação que ela estava certa:
— Incômodo por quê? Pra mim não tem problema nenhum. Eu só não perguntei mais nada porque acho que Ciça não quer que eu tenha informações da vida dela. Aliás, ela parece estar ótima… Que bom…
Érica demorou para voltar a falar, como se quisesse me dar tempo para me acalmar, diante do meu inegável arroubo:
— Marcela… ela sofreu muito quando você foi embora. Sofreu pra caramba. Eu te garanto isso. Agora ela tá começando a se recuperar… O que você queria? Que ela ficasse pra sempre chorando por você?
Eu estava com raiva. De Érica. De Ciça. De mim!
— Érica, não é…
Minha prima não me permitiu interrompê-la. Falou mais sério que eu:
— De verdade, Marcela… O que você estava esperando? Poxa, a menina ficou péssima. Você fez sua escolha, não fez? Não era voltar pro Rio que você queria? Não tô entendendo essa sua irritação…
Nem eu. Não estava entendendo. Nada. Eu deveria estar feliz. Feliz! Tinha conseguido, tinha voltado para a minha vida. Estava trabalhando com arte. Estava morando sozinha, ainda que não fosse o lugar ideal. Então por que eu estava irritada com minha prima daquela forma? Por que eu ainda pensava em Ciça todo santo dia? Por que mexeu tanto comigo vê-la feliz? Eu não tinha a resposta para nenhuma daquelas perguntas naquele momento. Resolvi desligar antes que eu e Érica brigássemos de verdade:
— A gente se fala depois.
*****
Acordei e chequei o celular. Algumas mensagens. Mas não a que eu estava procurando. Ainda é cedo. Repreendi imediatamente o pensamento. Ela não vai mandar mensagem. Eu não podia me apegar àquela pequena migalha. Já tinha quase sete meses que não nos falávamos. Nada. Nem uma palavra, escrita ou falada.
Levantei e fui para o banho. Precisava chegar no sítio para almoçar. Por mais que não fosse minha vontade, eu precisava ir. Mas já tinha avisado que não dormiria.
Tentei conter minha ansiedade a cada vez que meu celular vibrava indicando uma notificação. Em vão. Meu coração acelerava todas as vezes. E depois o sentimento de decepção, frustração, quando via que não era ela. Assim passou minha manhã. Depois do almoço cochilei um pouco e acordei já procurando pelo celular. Nada. No fim da tarde voltei para casa. Tomei outro banho. Me alimentei. Minha tia e meu tio me trouxeram um presente e um doce, que comemos na cozinha. Depois que eles foram embora, fui para a cama. Assisti o que passava na televisão. Olhei para o celular incontáveis vezes. Nada. Respondi mensagens. Fiz uma pipoca, assisti um filme inteiro. E nada. Foi com uma dor rasgando meu coração que eu vi o último minuto do dia chegar ao fim. Meia-noite e um. Meu aniversário havia acabado. E como se ela tivesse cortado o último e frágil fio de esperança que inconscientemente eu carregava comigo, a mensagem de Marcela não veio.
Fim do capítulo
Oii! Entramos na reta final da história. Serão mais cinco capítulos até o final :)
Comentar este capítulo:
HelOliveira
Em: 19/05/2025
Nossa não aguento ver as duas sofrendo assim, Ciça esperando uma msg foi tão triste, e Marcela com ciúmes, mas não consegue ver um futuro pra essa relação...
Autora vc vai matar suas leitoras rs
[Faça o login para poder comentar]
Dessinha
Em: 19/05/2025
Aí, gente... não aguento mais de ler sem ter um finalzinho feliz... poxa :/ elas merecem, né? Dói pakas
AlphaCancri
Em: 19/05/2025
Autora da história
Elas merecem, concordo com você! Mas a gente às vezes complica tanto a vida, né? Será que eles conseguem descomplicar?
[Faça o login para poder comentar]
Raf31a
Em: 18/05/2025
Só mais 5 capítulos??? ![]()
AlphaCancri
Em: 19/05/2025
Autora da história
Sim :/ estamos chegando ao final. A autora também sofre com isso, viu?
[Faça o login para poder comentar]
Raf31a
Em: 18/05/2025
Não foi só a Ciça que esperou pela mensagem...
Terminei o capítulo com um cisco no meu olho. TPM modo on.
AlphaCancri
Em: 19/05/2025
Autora da história
Acho que todo mundo ficou esperando por essa mensagem que não veio :/
Tomara que o cisco no olho seja de alegria nos próximos capítulos, né? Hahah
[Faça o login para poder comentar]
Socorro
Em: 18/05/2025
Rapaz,
Quem vai ceder 1 .... Que angustia ????
não deixando tudo no último capítulo tá bom kkk
Qto sofrimento !!
AlphaCancri
Em: 19/05/2025
Autora da história
Tá difícil, né? Será que dá tempo delas se resolverem antes do último capítulo?
Todo mundo sofrendo junto… :(
Socorro
Em: 19/05/2025
E tu não vai fazer nada não autora???
Deixa tudo por último capítulo e sacanagem isso heimmm… se tiverem um final feliz …
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
AlphaCancri Em: 19/05/2025 Autora da história
A culpa não é minha, hein hahahah
As duas é que complicam!
Mas o que fazer nessa situação? Muita coisa pra se abrir mão, né?