Capitulo 62- Dia complicado
Mariana
Estou presa em uma cirurgia há mais de oito horas. Meus pés começam a ficar dormentes. Lá fora o sol já nasceu e eu desejo apenas o calor da minha cama e o abraço carinhoso das minhas cobertas. Jogo mais um coágulo de sangue no chão do centro cirúrgico. Não consigo encontrar a fonte da hemorragia.
O monitor apita mais rápido. O ritmo cardíaco oscila. Meus olhos ardem. Preciso de uma solução. Agora.
- Vamos lá… vamos lá… - murmuro para mim mesma, quase num sussurro desesperado.
Em minha mesa está um garoto de dezesseis anos que resolveu pegar a moto do pai escondido. Perdeu o controle e bateu em um muro. Não posso voltar para a sala de espera e avisar que eles perderam o único filho.
O cheiro do sangue, das luvas, da adrenalina, tudo se mistura num enjoo sutil se formando em minha barriga. E de repente, por um instante que parece desrespeitar o tempo, a imagem dela me invade: Os olhos de Camila quando contei sobre a morte de Helen. Faz um ano, desde então fiz tudo para não perder mais nenhum paciente. Pisco os olhos espantando a lembrança. Corte. Pinça. Sangue.
- Aspiração! - O grito, quase sem voz. A instrumentadora me entrega, e eu volto com raiva, com precisão. Eu não posso perder esse paciente. Não depois de tudo.
Encontro a artéria, completamente dilacerada. Minha mão treme, mas eu sigo. Suturo com rapidez e fé. Fé de que vou sair daqui, tomar um banho longo, e dormir o sono dos justos. O monitor estabiliza. Silêncio. Um suspiro coletivo. O paciente está vivo.
- Bom trabalho, doutora. - Uma enfermeira parabeniza.
Eu aceno com a cabeça, já retirando as luvas e a touca cirurgica.
- Fechem. Vou avisar aos pais que ele sobreviveu. - digo, dando espaço para os residentes.
Me afasto um passo. Dois. E só então percebo o peso do mundo inteiro sobre minhas costas. Consigo soltar o ar que prendia meus pulmões. Vou direto para a sala de espera. Avisto o casal que está aflito, mas ao me verem suas expressões relaxam.
- A cirurgia foi complicada, mas ele está fora de perigo.
- Obrigada, doutora. - A mulher me abraça apertado.
- Não precisa agradecer. - Sorrio sem graça. - Esse é o meu trabalho.
Meu celular vibra. Chega uma mensagem avisando para ir buscar Manuela na escola. Me sinto mal por ter perdido o jogo dela hoje, a final do campeonato. Suspiro aflita.
- Eu preciso ir. - Desvencilhei-me do abraço dos pais e vou para o vestiário trocar de roupa.
Minutos depois, Mariana caminho pelos corredores da escola, guiada por uma coordenadora aflita. O som abafado de risos infantis ecoava de longe, mas naquele canto da escola o clima era outro, mais silencioso, mais pesado. A diretoria estava com a porta entreaberta. Lá dentro, Manuela estava sentada com os braços cruzados, um saco de gelo no olho esquerdo. Do outro lado da mesa, a diretora — uma mulher de voz doce, mas firme — levantou-se ao vê-la.
- Mariana, obrigada por vir tão rápido.
- O que aconteceu? - Mariana perguntou, já se abaixando ao lado da sobrinha, passando os dedos pelos pretos dela. - Tá tudo bem com você?
Manuela não respondeu. Só assentiu, os olhos ainda quentes, como brasas prestes a explodir. A diretora suspirou.
- Houve um desentendimento durante o jogo de futebol. Um menino do sétimo ano fez comentários ofensivos sobre uma colega da turma da Manuela. Ela partiu pra cima dele. Um soco no estômago. E um empurrão. Tivemos que separar.
Fechei os olhos por um segundo. O cansaço da noite passada ainda pesava nas pálpebras, mas agora era a frustração que pulsava.
- Ele xingou a Bianca, tia. Chamou ela de sapatão nojenta. E ainda chutou a bola no rosto dela de propósito. - Manuela finalmente falou, a voz embargada de fúria. - Ninguém fez nada. Nem o professor. Eu não ia ficar parada.
Me endireitei na cadeira, encarando a diretora. O coração dividido entre o orgulho e a responsabilidade.
- E o menino?
- Está com os pais na sala ao lado. Também vamos conversar com eles. Mas precisamos lidar com a agressão da Manuela.
- Eu entendo. - Mariana respondeu, olhando para a filha. - Eu vou conversar com ela.
A diretora assentiu e se retirou, deixando as duas sozinhas na sala.
- Você sabe que bater não é o caminho, né? - disse baixo.
- E deixar ele falar aquilo pra Bianca seria? Ela tava chorando, tia! Todo mundo ficou quieto. Eu não consegui. Eu só… fui.
Fiquei de joelhos em sua frente, agora segurando as mãos dela.
- Filha… você foi corajosa. Mas a gente precisa aprender a transformar coragem em atitude sem violência. Entende? - Falei sem nem perceber que acabava de chamá-la de filha, nunca havia feito isso antes. Sempre deixei claro que ela era minha sobrinha.
- Do que me chamou? - falou surpresa.
- Isso não vem ao caso, agora. - Desconversei.
- Para mim tem. Sabe quanto tempo sinto a vontade de te chamar de mãe e nunca soube se seria certo fazer isso mesmo você tendo me criado desde sempre? - Ela estava com raiva, não sei se ainda era a agitação da confusão de antes.
- Manu, você poderia me chamar do que quisesse. - Ela relaxou na cadeira.
- Mamãe, ele merecia. E eu faria de novo se fosse preciso. - Não sei mensurar o que senti quando ela me chamou de mãe. Esqueci até que precisava insistir para que ela não usasse a violência.
- Tudo bem, meu amor. Talvez. Você vai ser castigada, mas vamos garantir que ele também seja punido pelo que disse e fez a sua amiga. Tudo bem assim? Ótimo, agora a gente vai fazer isso do jeito certo. Vamos conversar com a escola. E com os pais dele também. Juntas.
Foram longos minutos de discussão para fazer os pais do garoto entenderem que o que ele fez também foi errado. Não me surpreendo em saber que o garoto é um terror tendo dois pais como aquele.
No carro Manuela fita a janela observando o vai e vem. Só então passou pela minha cabeça que a atitude dela não foi baseada apenas no desejo de fazer justiça com as próprias mãos, será que ela gosta da amiga?
- Vai para o seu quarto, toma banho e troca o uniforme. Nada de celular por hoje. - Ela suspirou pesado me passando o aparelho.
Eu me encosto na geladeira. Nem são onze da manhã e o meu leão do dia já me mordeu duas vezes. Meu celular vibra no bolso. Sorrio ao ver que é Camila.
- Bom dia!
- Oi, meu amor. Desculpa ter sumido por…- olhei o rélogio. - …quase dez horas. - Me sentei no piso gelado. Meus olhos estavam marejados. Estou muito cansada.
- Não tem problema. Está tudo bem? - Eu fungo, secando as primeiras lágrimas que rolam dos meus olhos.
- Sim. Eu só tive uma cirurgia difícil. E para completar precisei ir até a escola da Manu.
- O que houve? - Perguntou preocupada.
- Ela bateu em um colega que foi preconceituoso com a amiga dela.
- Bateu, tipo tapa?
- Não. O garoto quebrou o nariz. Tive que garantir tratamento no hospital para ele.
- Caramba. Ela estava furiosa.
- Você nem tem ideia. - Ficamos em silêncio. - Amor, ela me chamou de mãe. - Sorrio feliz, mesmo com os olhos marejados.
Do outro lado da linha, Camila não responde de imediato. Posso sentir o silêncio dela como um abraço demorado, daqueles que dizem tudo sem dizer nada.
- Isso é… - a voz dela saiu embargada. - isso é muito especial, Mari. Eu sei o quanto isso significa pra você.
- Eu achei que fosse imaginar esse momento mil vezes. Ensaiar o que dizer. Me preparar. Mas na hora... eu só segurei a mão dela e falei que tudo bem. Que ela podia me chamar do que quisesse. - Uma lágrima escorre lentamente pela lateral do meu rosto. - Eu nem percebi que tinha chamado ela de filha antes.
- Ela sentiu, Mariana. Ela já te via assim, só estava esperando ter certeza de que era recíproco. Que você também se sentia mãe dela.
- Eu sempre me senti. Desde o primeiro dia. Quando ela veio pra mim tão pequena, perdida, com aquele olhinho assustado... eu só queria protegê-la. Fazer ela sentir que o mundo ainda podia ter amor. Mas sempre tive medo de ultrapassar um limite que talvez ela não estivesse pronta para aceitar, nunca quis tomar o lugar da minha irmã.
- Você não ocupou o lugar dela, tem seu próprio espaço. - Sua fala saiu com uma duplicidade que poderia facilmente ser colocada na nossa história, na morte de Helen.
Fico em silêncio, absorvendo as palavras de Camila como um bálsamo. Meus ombros relaxam, e pela primeira vez no dia, sinto que posso respirar fundo.
- Eu só queria que o dia tivesse sido menos… tudo. — solto uma risada fraca. — A cirurgia, a briga, os pais do garoto, a escola me olhando como se eu tivesse criado uma delinquente...
- Você criou uma menina incrível, que se recusa a ser cúmplice do silêncio. Que protege quem ama. Isso vem de você, Mari. Ela só está seguindo o que aprendeu.
Me encolho, sentada no chão, sorrindo boba. A exaustão ainda me pesa o corpo, mas a alma parece leve.
- Acho que preciso ter aquela conversa com Manu.
- Aquela conversa? Sobre namoro?
- Isso. Acho que ela gosta de forma diferente da garota que defendeu.
- Como assim?Já? Tão cedo?
- Ela já fez catorze anos. Acho que demorou demais. - Suspiro cansada.
- Parece que foi ontem que ela pagou a conta do nosso almoço. - Lembrou saudosa.
- Aproveita, eles crescem rápido. - Lamento.
- Verdade. Se for conversar com ela, leva sorvete. Isso ajuda no diálogo. - Ela aconselha.
- Pode deixar.
Mais tarde, já com a luz do entardecer entrando tímida pela janela da cozinha, o clima estava mais calmo em casa. Manuela apareceu na porta, de moletom e cabelo preso num coque torto, ainda com o olho esquerdo levemente roxo. Abro o freezer e tiro um pote de sorvete de chocolate com pedaços de brownie, o nosso favorito.
- Trouxe reforços. - disse, balançando o pote em sua direção.
Manuela sorriu de canto, se aproximou e puxou duas colheres da gaveta. Nos sentamos nas banquetas da cozinha, uma em cada lado da bancada de mármore. Dividimos o silêncio e o sorvete.
- Tô de castigo, mas ainda ganho sorvete? - Manu brincou, tentando aliviar o clima. - Tem algo errado.
- Exceção. Por uma boa causa. - respondo, dando uma colherada. - A gente precisa conversar, e eu pensei que seria mais fácil com açúcar.
Manuela assentiu, como quem já sabia que esse momento viria.
- Sobre o que exatamente?
- Sobre a Bianca.
Ela congelou por um segundo, a colher parada no ar. Seus olhos perdidos em medos e incertezas.
- O que tem ela?
- Nada demais. É só que… eu te conheço. Sei quando você tá com raiva, quando tá frustrada… e hoje não era só isso. Tinha outra coisa ali. Outra camada. - Observei-a com carinho, sem pressão. - Eu só quero saber se você quer conversar sobre isso. Se quiser, eu tô aqui.
Manuela desviou os olhos dos meus, focando no pote entre nós. Respirou fundo antes de falar:
- Eu não sei o que sinto. Tipo… às vezes, quando tô perto dela, meu coração fica estranho. A barriga meio fria, sabe? Como quando a gente vai fazer uma prova. E eu gosto do jeito que ela sorri, e de ouvir ela falando, mesmo quando é sobre coisas bobas. Às vezes eu só fico olhando… e acho bonito. Demais.
Abro um sorriso, deixando a colher cortar a camada de brownie.
- Isso tem nome, sabia?
- Tem?
- Tem. Chama gostar. Às vezes a gente gosta de pessoas do mesmo jeito, só que em intensidades diferentes. Às vezes é amizade. Às vezes é amor. Às vezes a gente precisa de tempo pra entender.
Ela me olhou, séria.
- E tá tudo bem gostar assim? De outra menina?
- Tá mais do que bem. Tá lindo. Porque o que importa é o que você sente. E se for amor, se for carinho de verdade, não tem nada de errado nisso. Eu tenho muito orgulho de você, sabia? Pelo que fez hoje. Pela coragem. Por não deixar o preconceito passar. Quem me dera eu pudesse ter tido a noção do que sentia assim na sua idade.
- Mesmo eu tendo batido nele?
- Mesmo. A gente vai conversar sobre como reagir melhor. Mas o que você sentiu… o impulso de proteger alguém que você gosta… isso não tem erro. É só amor querendo se expressar do jeito que deu. A gente vai aprendendo com o tempo.
Manuela sorriu. Seu rosto estava mais sereno
- Eu achei que você ia brigar. Ou ficar decepcionada.
- Nunca. Eu só quero que você saiba que aqui é seguro. Que você pode ser quem quiser, sentir o que quiser. E eu sempre vou estar com você, Manu.
- Mesmo se um dia eu me apaixonar de verdade?
- Especialmente nesse dia.
Ficamos assim por longos minutos, dividindo o silêncio cheio de significado. Até que Manuela murmurou, num fio de voz:
- Obrigada, mamãe.
Eu tentei falar, mas não consegui expressar em palavras. Dei a volta na bancada e a abracei apertado. Fazendo-a sentir todo o amor que nos unia.
Fim do capítulo
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