Capitulo 57 - O reencontro
Mariana
Eu tenho lutado todos os dias contra a vontade de ligar, de pegar o carro e ir ver a Camila, as crianças. Entretanto, tenho me mantido ocupada com o trabalho tentando focar em qualquer coisa que não seja a esperança incerta de ter Camila. Passo horas em cirurgias, ou estudando novos casos, buscando novos conhecimentos.
Hoje é sexta-feira. Para ser mais precisa é aniversário do meu pai. Ele decidiu dar uma festa e isso significa que todos do hospital foram convidados. Como é esperado Camila também foi convidada. Me martirizei por dias na busca de saber se ela vai vir. Diana apenas me garantiu que ela prometeu que iria “pensar com carinho”. O que me traz a conclusão de que ela irá apenas arrumar uma desculpa e não vai aparecer.
Todos os dias falo com Rute, apenas para me certificar de que todos estão bem. Peço que ela sempre mantenha nossas conversas em segredo. Sem que Camila precise saber de nada, assim tudo permanece como está.
Estava sozinha no vestiário, terminando de abotoar a blusa social. Tinha acabado de sair do plantão e precisava correr para a festa do meu pai. O espelho refletia meu cansaço, olhos fundos, cabelo ainda meio úmido, o coração mais pesado do que deveria estar. Ouvi os passos ecoarem no piso frio e metálico. Virei um pouco o rosto, mas nem precisei olhar direito para saber quem era. O cheiro amadeirado de Maya invadiu o lugar. Usava um um vestido vermelho por baixo do jaleco colorido. Sorri com a imagem.
- Emergência. - Deu de ombros explicando os seus trajes que não combinavam. - Estava pronta para ir ao aniversário do seu pai. - Completou tirando o jaleco. Soltou os cabelos deixando-os para frente. Seu decote era um tanto quanto avantajado. Observei suas curvas bem feitas e me perdi em pensamentos nada discretos.
Ela emite um barulho chamando minha atenção. Está com um sorriso travesso nos lábios e a sobrancelha arqueada.
- Desculpe. - Pisquei rapidamente. - Também estava de saída.
- Ótimo. Será que pode me dar uma carona? Meu carro está quebrado.
- Claro, só preciso passar em casa antes. Se importa?
- Imagina. - Deu de ombros
Saímos do hospital e seguimos em silêncio pelos primeiros minutos do trajeto. A cidade fervilhava com a rotina de uma sexta à noite, mas dentro do carro, havia uma calma estranha — um silêncio cheio de palavras que nenhuma de nós parecia disposta a dizer.
Maya estava com a cabeça levemente virada em minha direção, observando o caminho com um meio sorriso distraído. Eu sentia sua presença mais do que via. Era como se ocupasse o espaço entre nós com uma leveza provocante.
- Você está nervosa? - Ela perguntou de repente, quebrando o silêncio.
- Um pouco. - Suspirei.
- Então eu te deixo nervosa! - Ela concluiu sorrindo.
Eu não respondi. Apenas desviei o olhar para a rua e mordi o lábio inferior. Maya não precisava ouvir a resposta. Ela sabia. Chegamos na minha casa. Abri a porta e convidei-a para entrar com um gesto. Maya seguiu até a sala, observando o lugar com interesse.
- Você mora aqui sozinha? — ela perguntou, tirando os sapatos e se acomodando no sofá.
- Não, moro com a minha sobrinha. Ela deve está terminando de se arrumar. Eu vou apenas me trocar, pode ficar a vontade eu já desço.
Escolhi um vestido preto, calcei meus salto e fiz uma leve maquiagem. Desci os últimos degraus devagar, observando a cena à minha frente. Maya e Manu riam de algo que eu provavelmente não entenderia, já que Manu tem essa habilidade de fazer qualquer estranho se sentir íntimo em questão de minutos. Maya parecia à vontade, com o corpo solto no sofá, os cabelos agora presos num coque frouxo e a taça de vinho que minha sobrinha claramente ofereceu.
- Uau, tia. - Manu comentou, erguendo as sobrancelhas quando me viu. - Se você não for causar hoje, a vida está te dando uma chance desperdiçada.
- Exagerada. - Sorri de canto, tentando não parecer afetada.
Maya se levantou, devagar, como se quisesse saborear a visão. Seus olhos passearam por mim, mas não com vulgaridade, era mais como se me enxergasse. Como se, naquele olhar silencioso, dissesse: Eu vejo você... mesmo quando você está tentando se esconder.
- Podemos ir? - perguntei, tentando parecer mais firme do que me sentia.
- Sim. - Responderam juntas.
No carro, Manu cuidou de colocar uma playlist para tocar e para minha surpresa Maya conhecia todas as músicas. Maya ofereceu um chiclete de hortelã. Nada tinha de especial naquele gesto, mas ainda assim senti meu estômago revirar quando ela se inclinou e colocou a goma na minha boca. Manu sorriu e eu vi sua cara de satisfação pelo retrovisor.
Chegamos à festa pouco depois das nove. O local já estava cheio de carros. Era possível escutar uma música animada do lado de dentro. Eu desci do carro e me encaminhei para a porta do passageiro. Maya entendeu minha intenção, assim como quando saímos de casa. Abri a porta do carro e estendi a mão para que ela segurasse, ela me deu um sorriso em agradecimento. Manu desceu do carro reclamando.
- Não precisa se preocupar, eu mesma posso abrir a porta. - Maya sorriu para ela.
- Pirralha. - Brinquei apertando a ponta do seu nariz.
Nem ao menos percebi que ainda segurava a mão de Maya. De repente Manu fala.
- CAMILA! - Gritou empolgada.
A palavra bateu como um trovão seco dentro do meu peito. Congelei. O mundo pareceu encolher ao meu redor, e o calor das luzes,das risadas, da música, tudo virou um zumbido abafado.
- Manu! Que saudades. - Abraçou minha sobrinha com carinho. - Mariana. - Sorriu e seus olhos foram direto para minha mão segurando a de Maya.
- Como vai Camila? - Sorri sem graça.
- Bem. Será que vocês podem apenas me ajudar aqui? - Fomos tiradas de nosso transe por Samuel que lutava com a cadeirinha no carro.
- Deixa que eu ajudo. - Maya se prontificou. - Nossa que bebês mais lindos. - Ouvi sua voz ao longe.
Camila sustentava seu olhar preso ao meu. O gesto levou uma eternidade, após alguns segundos ela me pede:
- Será que pode me ajudar a pegar o presente do seu pai? Preciso levar as bolsas dos nenéns.
- Claro.
Caminhamos para o porta mala do carro. Estava lotado de coisas.
- Viemos passar o final de semana na casa da Diana. - Comentou enquanto procurava a sacola.
- Que bom. - Falei tentando não parecer que aquilo era algo maravilhoso.
- Mari, podemos entrar? - Maya veio se juntar a nós.
- Sim. Estamos indo. - Sorri.
- Aqui está. - Pegou a sacola e me entregou.
- Seus filhos são lindos.
- Obrigada, puxaram a mãe.
- Não tenho dúvidas. - Ela sorri.
- Estou falando da outra mãe. - Camila sorriu fechando o porta mala.
- Pensei que…deixa para lá. - Ficou sem graça ao perceber que aquilo não era da sua conta. - Se precisar de uma pediatra estou à disposição.
- Então você é médica? - Camila perguntou curiosa.
- De bebês. - Maya concluiu rindo.
A travessia pelo jardim pareceu mais longa do que realmente era. Cada passo me deixava mais ciente da presença das duas ao meu lado, dos risos fáceis que elas compartilhavam, das trocas rápidas de olhares que eu não sabia interpretar. Maya, como sempre, era calorosa e acessível. Camila, por sua vez, parecia alternar entre uma simpatia diplomática e um brilho sutil nos olhos, aquele brilho que eu conhecia bem demais, que surgia sempre que ela estava analisando algo com mais profundidade do que deixava transparecer.
No fundo, eu sabia. Camila estava me estudando. Observando. Medindo cada movimento, cada silêncio, cada riso meu em resposta ao de Maya. E Maya... bem, ela não parecia se incomodar com isso. Ou talvez soubesse exatamente o que estava fazendo.
Entramos no salão. A festa já estava em ritmo animado, com música ao fundo, conversas altas, gente rindo e taças tilintando. O cheiro de comida boa e perfume caro se misturava no ar. Meu pai estava na sala principal, rodeado por amigos e colegas do hospital. Quando nos viu, abriu os braços num gesto exagerado de felicidade.
- Minhas meninas chegaram! - exclamou, abraçando primeiro Manu e Samuel, depois se encantando com os gêmeos. - Camila, que prazer te ver aqui. Não achei que viria mesmo.
- Prometi pensar com carinho, lembra? - Camila sorriu. - E eu cumpro minhas promessas.
- Mariana, seu pai está derretido. — Maya brincou baixinho, me cutucando o braço com delicadeza.
- Sempre teve uma queda por crianças. - Respondi, desviando os olhos para Camila, que nos observava discretamente enquanto recebia um suco nas mãos.
Rapidamente Diana se juntou a nós, abraçando Camila e aproveitando para apertar os gêmeos. Mateo agora está no colo de Maya.
- Ele tem seus olhos.
- São os do meu pai. - Sorri.
Por alguns minutos, tudo parecia normal. Como se fôssemos só conhecidos reunidos numa festa de família, como se as feridas estivessem adormecidas debaixo da superfície. Mas não estavam. Eu podia sentir isso. Cada gesto, cada palavra não dita, pesava entre nós.
Maya se afastou para falar com um colega médico, deixando um espaço estranho ao meu lado, um vazio que Camila rapidamente preencheu.
- Ela é bonita. - disse, sem olhar diretamente pra mim.
- É. - Confirmei, sem saber se estava respondendo sobre a beleza ou sobre o que havia entre nós.
- E parece gentil. As crianças gostaram dela. - Acrescentou, com um tom neutro demais pra ser realmente neutro.
- As crianças gostam de quase todo mundo. - Dei de ombros, depois me arrependi da resposta seca.
Camila riu baixo, um riso carregado de ironia e saudade.
- Você ainda me irrita com essas respostas evasivas.
- E você ainda sabe exatamente o que dizer pra me desmontar. - Sussurrei, quase sem querer.
Ela se virou pra mim, agora me olhando de verdade. O sorriso se desfez, dando lugar a algo mais sincero, mais vulnerável.
- Eu não sei o que estou fazendo aqui, Mariana. Mas alguma coisa dentro de mim disse que eu precisava vir.
- Talvez porque eu também esteja aqui... esperando que você viesse.
Camila respirou fundo. Seus olhos brilharam por um instante.
- A gente precisa conversar. Só nós duas. - disse, como quem joga uma âncora no meio da tempestade.
- Eu sei. - Confirmei, com o coração batendo no mesmo ritmo incerto de antes.
Nesse instante, Maya voltou. Trazia três taças com espumante.
- Brindamos? - disse sorrindo, como se não tivesse notado o clima carregado entre mim e Camila. Ou talvez tivesse notado... e não ligasse.
Estendi a mão para pegar a taça. Camila fez o mesmo. E por um segundo, nossas mãos se tocaram de novo. E nenhuma de nós puxou de volta.O toque durou pouco, mas pareceu eterno. Uma corrente elétrica percorreu meu braço, como se o universo tivesse prendido a respiração junto comigo. Camila não desviou o olhar. Eu também não. Nossos dedos entrelaçados de forma involuntária — ou talvez não fosse tão involuntário assim.
Maya percebeu, claro que percebeu. Ela era atenta demais para não perceber. Mas não disse nada. Apenas entregou a última taça para mim e ergueu a sua.
- Ao amor... seja ele qual for. - disse, com aquele sorriso que misturava leveza e sabedoria.
Brindamos. O som das taças se chocando foi fino, frágil, quase melancólico. Bebi em silêncio, tentando entender a bagunça dentro de mim. Maya se afastou logo depois, puxada por algum conhecido que a chamava do outro lado do salão.
Camila e eu permanecemos ali, lado a lado, sem dizer mais nada. A tensão entre nós agora era densa, como uma névoa que ninguém mais via, mas que nos envolvia por completo. Do outro lado via Lívia e Manu com os gêmeos. Elas pareciam felizes.
- Vem comigo? - ela disse, depois de um tempo. A voz baixa, quase um pedido.
Assenti com a cabeça. Caminhamos até os fundos, onde o jardim era mais calmo, iluminado apenas pelas luzes quentes que vinham de dentro. Paramos próximo à piscina, o som da festa ficando mais distante a cada passo que dávamos.
- Eu senti sua falta. - Confessou em um fio de voz.
- Eu também senti a sua. Pensei várias vezes em ir até sua casa. Mas respeitei o que me pediu. Todos os dias falo com sua mãe. Fiquei feliz em saber que voltou a trabalhar.
- Ela não me contou nada.
- Pedi que não dissesse.
- Eu precisava voltar ao trabalho. Coloquei a casa à venda. Esse é o meu terceiro passo do luto. Entender que Helen não vai estar em coisas materiais. - Conta com pesar.
- Isso é bom.
- Você está com ela? - Seus olhos me fitaram aflitos, temerosos esperando a minha resposta.
- Não. Nos conhecemos há pouco tempo no hospital.
- Vocês pareciam... próximas.
- Como pode perceber, ela é uma pessoa que faz amizade fácil. Eu não estou com ninguém. - Respondi. - Estou tentando sobreviver.
Ela soltou um riso curto, sem alegria.
- E essa é a sua forma de sobreviver, se abrindo a novos amores?
- Não. Essa é a minha forma de não me perder completamente.
Houve silêncio. Um silêncio tão cheio de significados que doía. Camila se sentou na borda da piscina, deixando as pernas penduradas. Eu sentei ao seu lado, respeitando a distância que ela deixava entre nós.
- Eu ainda sonho com você. - confessou, quase num sussurro.
- Eu também. - disse, antes que pudesse esconder.
Ela virou o rosto em minha direção. Seus olhos estavam marejados. A voz falhou quando ela tentou falar de novo.
- Eu tenho tentado, todos os dias eu tenho lutado contra os meus demônios. Mas confesso que ficar longe de você é mais um castigo do que uma solução.
Minha garganta fechou. Eu queria dizer tanta coisa. Queria gritar, queria chorar, queria correr até ela e beijá-la ali mesmo. Mas tudo que consegui fazer foi segurar sua mão de novo.
- Eu nunca deixei de te amar, Camila. - falei, com a voz embargada. - E não existe um único dia em que eu não deseje recomeçar... com você. Eu entendo que você precisa de tempo. E vou respeitar seu tempo e seu espaço. Mas não vou viver uma vida inteira esperando que um dia você me queira de volta.
Ela fechou os olhos, apertando minha mão entre as dela. Camila se inclinou devagar. Sua testa encostou na minha, os olhos fechados. Ficamos assim, respirando o mesmo ar, sentindo o mesmo tremor, até que o mundo inteiro pareceu parar de novo.
- Só me promete uma coisa... - ela sussurrou.
- Qualquer coisa.
- Que, se quando eu estiver pronta, independente do estado que esteja sua vida, vai ter espaço nela para mim, aliás, para nós.
- Sempre. - Sorri.
E então, ela me beijou. Devagar, com a delicadeza de quem tem medo de quebrar algo precioso. E naquele instante, todas as dúvidas pareceram pequenas. Porque ela estava ali. E eu também. E talvez... só talvez... isso fosse o suficiente pra recomeçar, não hoje, mas quem sabe um dia.
Fim do capítulo
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