Capitulo 55 - O passado vem à tona
Camila
Alguns dias depois…
As visitas de Mariana se tornaram frequentes. Às vezes, ela vinha sem avisar. Outras, mandava mensagem perguntando o que eu queria do mercado. Passava o domingo conosco, ria com os gêmeos, cozinhava, sim ela aprendeu a cozinhar depois de quase ter incendiado a cozinha quando namoravamos.
Assim aos poucos, minha mãe foi voltando para sua casa, deixando espaço. E eu deixei. A casa voltou a ter vozes. Música baixa no rádio. Cheiro de bolo no forno, brinquedos espalhados na sala, choro e muita bagunça. Igual como Helen e eu sonhávamos.
Numa dessas tardes, estávamos sentadas na varanda, Mariana embalando Ana Laura nos braços, que tentava a todo custo resistir ao cansaço. O sol batia em seus cabelos, e ela contava como Manu havia tirado zero numa prova por esquecer de colocar o nome.
- Você tem paciência demais.- comentei, rindo.
- É que já fui muito impaciente. Agora eu escolho onde gastar energia.
Ficamos em silêncio por um tempo. Então, ela virou o rosto na minha direção.
- Camila... você já pensou em voltar pra terapia?
Olhei para ela. Não havia julgamento na voz. Só cuidado.
- Já. - respondi. - E acho que estou quase pronta. Ficar sozinha com tudo isso... tem sido demais. Acho que agora já consigo entender que a vida continua. - Ela fitou os pés. - O que Charlotte acha de todas essas visitas que me faz?
- Ela não precisa achar nada. Nós já terminamos há tempo suficiente. Somos apenas amigas. E ela sabe que eu…- Ela pausa.
- Que você??
- Que me importo com você.
Ela sorriu. Um sorriso leve. Quente. Meu coração acelerou. Não pelo que ela disse, mas pelo que ficou nas entrelinhas, e em seu olhar. A dor ainda estava lá. O luto ainda cobrava seu preço. Mas ali, naquele instante, tive certeza de que estava começando a pagar com vida. Não sei se conseguiria colocar alguém no lugar de Helen.
Nos dias que se seguiram, Mariana passou a fazer parte da rotina com a mesma naturalidade de quem sempre esteve ali. Trazia pão fresco nas manhãs de sábado, embalava Luiz Henrique no colo enquanto respondia e-mails do trabalho, e ria com minha mãe como se fossem amigas de infância. E eu? Eu apenas observava. Às vezes, de longe. Às vezes, perto demais.
Era nos detalhes que ela me atravessava: o jeito como ajeitava minha blusa caída no ombro, o cuidado ao dobrar os bodies dos bebês, o olhar silencioso quando eu me perdia em mim mesma. Mariana me enxergava mesmo quando eu queria me esconder.
Numa noite de chuva, ficamos as duas na sala, depois que os pequenos dormiram. A TV ligada sem som. As xícaras de chá ainda fumegavam na mesinha de centro. A luz fraca refletia nos olhos dela, e eu sentia minha respiração mudar só de vê-la tão perto.
- Sabe... - ela começou, virando-se para mim. - Às vezes eu penso em como as coisas poderiam ter sido diferentes. Se a gente tivesse continuado juntas, os meninos não estariam aqui. E isso seria muito triste. - Concluiu. - A nossa separação trouxe duas coisas maravilhosas ao mundo. - Eu sorri.
- Verdade, será que devo te agradecer por ter me traído? - indaguei em tom de brincadeira. Mariana me encarou.
- A gente nunca mais tocou nesse assunto. - Se ajeitou no sofá.
- Isso já faz tanto tempo. - Dei de ombros.
- Eu sei, é só que…- Seus olhos buscavam nos meus uma permissão para continuar. - Eu não te trai.
- Mesmo depois de tanto tempo ainda continua insistindo nisso? Eu vi vocês duas na cama. - Conclui.
- O que você viu foi o que a minha mãe e a Charlotte quiseram que você visse. Aquilo foi uma armação. Você não confiou em mim. Seguiu sua vida como se eu não tivesse significado nada para você. - Sua voz estava carregada de mágoa. - Descobri tudo alguns meses depois que você casou. - Fitou os pés.
Eu engoli a saliva com dificuldade. Um nó se formou em minha garganta e parecia que em meu peito havia um elefante sentado, me impedindo de respirar.
- Você estava feliz. E aquilo era o que importava. - Concluiu.
Trocamos um olhar e por um segundo, o mundo pareceu parar. A chuva batia no telhado como um tambor manso. O relógio na parede fazia seu tic-tac impaciente. E havia só ela. E eu. E esse espaço entre a amizade e o amor, onde ninguém ousa pisar, mas onde tudo acontece.
Eu me senti atordoada por tanta informação. Toda a minha dor, tudo o que vivi ao lado de Mariana, o peso da sua traição. Nada mais estava presente. Consegui ver através da raiva que nutri todo esse tempo, a verdade que estava bem ali, na minha frente. Mariana ainda me ama, ela me amou tanto que me permitiu viver outro amor. Sem lutar por mim, me deixou livre, livre para viver, para construir uma família. Família essa que hoje ela me ajuda a manter sem pedir nada em troca.
- Mariana, eu… - fomos interrompidas pela babá eletrônica. Ana Laura estava aos prantos.
- Vai lá. - Me encorajou. Ela sorriu. Um sorriso que não pedia nada, apenas ficava.
Não nos tocamos. Não naquela noite. Mas algo em mim se desfez. E algo se refez logo depois. Foi ali que entendi: o luto não termina — ele transforma. E o amor, quando nasce no silêncio, floresce com mais força.
Mariana
Deixei os pingos grossos caírem sobre mim até que eu chegasse ao carro. Não conseguiria ficar ao lado de Camila depois da nossa conversa. Sei que ela entendeu tudo o que estava nas entrelinhas, sei que ela percebeu o quanto de sentimento ainda tenho por ela.
Não posso simplesmente me enfiar de volta na vida dela, esperando que as peças se encaixem como antes, afinal nada é como antes. Não depois de tudo o que ela viveu. Não depois da mulher incrível que Helen foi. Camila precisa de tempo. E eu… talvez precise de coragem, coragem para me afastar dela. Sem a necessidade de fazê-la ter que me escolher.
Liguei o motor e fiquei ali, com as mãos no volante, encarando meu reflexo no retrovisor. Os olhos marejados, o peito apertado. A chuva batia forte no para-brisa, como se tentasse me acordar daquele torpor. Era madrugada de domingo. Como em todas as outras semanas eu acabaria voltando depois do almoço, apenas adiantei a minha volta para casa.
Era pouco mais de sete da manhã quando parei o carro na garagem de casa. Diana acenou para mim da janela da casa ao lado. Parecia surpresa por me ver tão cedo. Caminhei até a porta.
- Aconteceu alguma coisa?
Eu não consegui responder. Apenas a abracei forte, e chorei. Diana não disse nada. Apenas me acolheu. Suas mãos firmes nas minhas costas, sua respiração calma tentando sincronizar a minha. Ficamos ali por alguns minutos, no vão da porta, até que minhas lágrimas cederam espaço ao cansaço.
Ela me guiou para dentro com a doçura de quem já me resgatou outras vezes. Me sentou no sofá, preparou um chá, daqueles que ela jura que curam o coração, e esperou que eu falasse.
- Foi como se tudo tivesse voltado… mas de um jeito diferente. - murmurei, com a voz ainda embargada. – A dor dela, a saudade, o amor que ainda existe ali. Eu vi tudo. E vi o quanto eu ainda a amo. Só que agora… não é só sobre nós duas.
Diana assentiu em silêncio, sentando ao meu lado.
- E isso te assusta? – ela perguntou, com a calma de quem já sabia a resposta.
- Me assusta o fato de que, mais uma vez, talvez eu precise abrir mão do que sinto… por amor. E não por orgulho, ou mágoa. Só porque ela precisa respirar sem mim por perto, precisa descobrir quem ela é sem a dor ocupando todos os espaços. Ela não merece lidar com os meus demônios enquanto carrega os próprios.
- Eu sinto muito. Sei o quanto você esperou para que as coisas voltassem a ser como antes. Sei de todas as noites que você chorou quando ela seguia a vida e você continuava aqui, na sombra do amor que ela levou embora.
Fechei os olhos, me recordando das noites em claro. De todas as vezes que vibrei quando soube de uma nova conquista dela, mesmo que não pudesse ser partilhada comigo. Eu não sabia o que viria depois. Não sabia se Camila um dia estaria pronta e principalmente disposta a tentar me amar de novo. Mas naquela manhã fria, entre o cheiro de chá e o colo da Diana, eu entendi que, talvez, amar Camila significasse isso: estar disposta a ir embora… e, ainda assim, continuar torcendo por ela. E seria isso que iria fazer.
Passei o domingo tentando me distrair. Lavei o carro, limpei os armários da cozinha, arrumei até a gaveta de panos de prato. Coloquei uma playlist que a Diana chama de “músicas pra esquecer que sente”, mas pensar era tudo que eu fazia. Pensar nela. Camila. O jeito como ela me olhou. O silêncio denso entre nós depois da conversa. Como se ela tivesse escutado cada palavra, mesmo as que eu não disse.
À tarde, Manuela chegou do papai, arrastando a mochila com cara de poucos amigos.
- Oi, tia.
- Oi, princesa.
- Eu não sou mais uma criança, sabia?
- Para mim vai continuar sendo. Como foi o fim de semana?
- Bem. O vovô queimou o churrasco, de novo. - Ela jogou a mochila no sofá e me olhou. - E você por que não ficou na casa da Diana? E principalmente por que voltou tão cedo de Santa Cecília?
- Só quis chegar antes. Dormi mal, estava cansada.
Ela me observou em silêncio, sentando-se na bancada da cozinha. Abriu uma bolacha e começou a comer sem tirar os olhos de mim.
- Aconteceu alguma coisa com a Camila?
- Por que você tá perguntando isso?
- Porque você só fica assim quando tem a ver com ela.
- Assim como?
- Tia... você tá lavando até pano de prato em silêncio. Isso é tipo o seu sinal de alerta máximo. - Ela apoiou o queixo na mão. - Brigaram?
Suspirei. Me sentei ao lado dela.
- Não brigamos. Mas... conversamos. Sobre coisas antigas. Sobre o que aconteceu entre a gente.
- E?
- E foi intenso. Ela descobriu uma coisa que eu devia ter dito há muito tempo atrás. Mas achei que já não importava mais.
- Importa. - Manu disse, firme. - Pra ela, importa. E pra você também, senão não teria chorado escondida no banheiro por tanto tempo.
Eu a encarei, surpresa.
- Você me ouviu?
- Eu sempre escuto. Só finjo que não. - Ri, fraco.
- Eu não sei o que fazer.
- Nossa, pensei que com a idade a gente ficava mais inteligente. - Fiquei séria. - Você a ama, isso é óbvio. Continua sentindo tudo com a mesma intensidade que no passado, o tempo não curou o seu amor por ela. Ela conseguiu ser feliz ao lado de outra pessoa, você não. Isso não quer dizer que ela não sofreu com tudo, terminaram em meio ao caos. Ela estava ferida, e se apaixonou. Você não, continua regando a plantinha do seu amor por ela, todos esses anos. Hoje ela está numa posição muito complicada, está livre do amor físico, mas presa ao fantasma do que ela construiu. Deixe que ela viva o luto, que passe por todas as fases dele. Espera. - Manu deu de ombros. - Mas não vai embora de vez. Vai esperando. Tipo... planta. Você rega, deixa no sol. Uma hora ela cresce. Mas se você tirar a planta da terra, ela morre. A senhora só vai precisar saber a hora certa para fazer cada coisa.
Eu pisquei, engolindo em seco.
- Desde quando você ficou tão sábia?
- Desde que comecei a ouvir suas músicas de drama e prestar atenção nas letras. - Rimos juntas. Foi um riso pequeno, mas sincero.
Mais tarde, quando ela subiu pro quarto, eu fui pro quintal. Me sentei no chão gelado, perto dos vasos de hortelã que papai deixou. Peguei o celular. Abri a conversa com a Camila. A última mensagem era : “Não deveria ter ido embora assim, me liga quando puder”. Escrevi com os dedos trêmulos. “Eu precisei voltar mais cedo para casa, as coisas estavam muito complicadas dentro de mim. Vim para me reorganizar. Não precisa se preocupar. Se precisar de algo, basta uma ligação. Tenha uma ótima semana. ”
Enviei. O coração apertado, mas leve. Porque às vezes amar é isso: entregar sem exigir. E saber que, mesmo que não floresça agora, a semente ficou. Antes de dormir, passei no quarto de Manuela e a beijei na testa.
- Obrigada por ser meu chão hoje.
- Você é meu chão sempre, tia. Agora vai dormir. Amanhã você planta de novo.
E eu fui. Levei aquele “amanhã” comigo como esperança.
Fim do capítulo
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