Capitulo 54 - O Preço do Luto
Camila
Acordei com o sol atravessando as cortinas já amareladas pelo tempo. O silêncio da casa era um punhal cravado em minha pele, me rasgando a alma. No espelho do corredor, vi a sombra de mim mesma. Os olhos fundos, o rosto marcado por noites em claro. Era um reflexo que eu mal reconhecia. Meus poros absorviam a dor como se fosse sede, e o corpo fraquejava: perdi peso, a roupa já me servia larga, e minhas manhãs começavam sem fome, sem vontade.
O luto tinha um preço que eu nunca imaginara: faltavam-me forças para limpar a casa; as roupas se amontoavam na lavanderia; o trabalho era um borrão - cada caso que eu acompanhava me lembrava do processo de Helen, do carro batido, da cesariana de emergência. Eu mal suportava a própria voz ao telefone. Já se passaram seis meses desde que minha vida foi tomada.
Tentava respirar fundo, mas o ar entrava duro, áspero. Senti a garganta apertar quando, numa manhã, passei em frente ao espelho e percebi as marcas de unhas no braço: era a noite anterior, quando me segurava para não gritar, para não acordar os bebês.
Minha mãe me encontrou num canto da sala, abraçada à almofada rosa.
- Camila… - ela disse, com a voz embargada. - Você precisa comer algo.
Não tive força para responder. As palavras eram um peso. Só consegui balançar a cabeça. O luto cobrava sua fatura em cada gesto: o chuveiro gelado, o barulho da porta da cozinha, o riso distante de Samuel pelo WhatsApp, as fotos de família no corredor que antes me davam aconchego e agora me torturavam.
Mesmo assim, em meio à névoa, havia lampejos de luz. O sorriso dos bebês ao sentir meu toque. Os primeiros dias no hospital foram intermináveis, diga-se de passagem. Mariana cuidou de mim como uma verdadeira amiga. Não saiu do meu lado um segundo sequer, fez da poltrona ao lado, sua cama por quase dois meses, que foi o tempo necessário para os bebês estarem bem.
Helen partiu, mas deixou o melhor dos presentes. A pequena Ana Laura e Luiz Henrique. Escolhi os nomes da lista que fizemos antes que ela morresse. Depois que consegui alta Mariana me levou para sua casa. Apesar de Diana insistir para que eu ficasse com ela. Sei que a rotina com o neném não tem sido fácil.
Minha mãe veio ficar comigo. Sempre me ajudava quando Mariana não estava. Ficamos em sua casa até que os meninos receberam alta. Depois disso me obriguei a voltar para casa. Mas cada parte me fazia lembrar Helen. Enquanto para os meninos era uma forma de ficar próximo a ela, era um verdadeiro martírio para mim.
Foi esse lembrete que me fez escalar cada dia. O preço do luto era alto — deixei pedaços de mim pelo caminho. Mas, aos poucos, aprendi que honrar Helen não era sucumbir à dor, e sim permitir-me viver: comer, rir, falhar, amar de novo. Afinal, o maior legado dela era a coragem de continuar, mesmo quando tudo parecia desabar.
Escutei o choro de Luiz Henrique, e por aqui sempre que um acorda e chora o outro por solidariedade faz o mesmo. Me arrasto até o andar de cima, consigo chegar antes que ele acorde Ana Laura.
- Você precisa mesmo abrir esse berreiro todo? - Pergunto e ele me fita com os seus lindos olhos arredondados. Posso ver o sorriso de Helen se desenhando em seus lábios.
Troco sua fralda. Tiro-o do berço para lhe dar a mamadeira. Enquanto sinto o cheiro gostoso me perco em pensamentos imaginando o quanto Helen amaria fazer tudo aquilo ao meu lado. Ao final da mamadeira coloco-o para arrotar e o aninho novamente no berço.
Decido ir para o banho. Coloco o receptor da babá eletrônica em cima da pia, enquanto tiro minhas roupas. Deixei que a água levasse parte da minha dor e cansaço. A maior parte do tempo é tudo o que consigo sentir. Mariana já insistiu para que eu comece a terapia, mas ainda não tive tempo para mim.
Mariana
Encaro a tela do celular. Faço isso incontáveis vezes durante o dia. Espero que Dona Rute, mãe de Camila, me dê notícias. Depois que tudo aconteceu, nos reaproximamos. Sinto que o que houve ficou no passado, e hoje podemos ser amigas. O momento que ela está passando é delicado e tudo o que quero é ajudá-la a superá-lo.
- Deveria ir vê-la. - Manu diz sentando-se ao meu lado para tomar café.
- Não posso simplesmente ir até lá.
- Porquê? São amigas, ela ficou aqui com os meninos por quase três meses. Ela pode estar precisando de você. E fora que sei que está preocupada.
- Quando você virou adulta?
- Ainda não cheguei nessa fase. Mas posso dizer que não vejo a hora de conseguir meu carro. - Sorri.
- Na hora certa. Apenas na hora certa.
Penso no que ela falou sobre ir até Santa Cecília. Talvez eu devesse mesmo aproveitar o feriado e ir fazer uma visita como quem não quer nada, apenas para ter certeza de que está tudo bem.
Me despeço de Manuela e faço-a prometer que não dará trabalho ao meu pai. Dirijo com calma até o endereço que Dona Rute me mandou. Chego quase na hora do almoço, paro em frente aos portões e aviso a mulher que estou do lado de fora. Ela autoriza minha entrada e diz qual a casa.
- É bom te ver, Mariana. - A mulher sorri me abraçando.
Quando nos conhecemos foi amor à primeira vista. Ela viu em mim alguém que deu apoio a sua única filha e isso nos uniu de imediato. Ficamos noites a fora conversando amenidades na minha casa quando ela estava lá. Dona Rute me levou até a porta e disse que Camila estava no banho. Agradeci com um sorriso tímido, sentindo um frio no estômago que não era exatamente nervoso, mas reverente. Era como entrar num espaço sagrado — não pela casa, mas pelo que ela carrega. Cada pedaço daquele lugar conta a história de amor das duas.
O corredor estava em silêncio. As paredes ainda guardavam fotografias de família, e os olhos de Helen me seguiram desde a moldura até o último passo que eu dei.
- Pode esperar na sala, querida. Ela já desce. - disse a mãe de Camila, com aquele tom doce que só ela sabia usar, mesmo em meio à tragédia.
Me sentei no sofá com cuidado, como se qualquer movimento brusco pudesse quebrar o ambiente. O cheiro de lavanda do difusor era leve, mas não escondia o ar pesado de saudade. Do outro lado da sala, uma naninha rosa estava esquecida sobre o tapete. Eu me levantei e a peguei com delicadeza, dobrando-a devagar enquanto os sons do andar de cima chegavam como sussurros, passos, talvez o barulho de uma gaveta sendo fechada.
Minutos depois, Camila desceu as escadas com os cabelos ainda úmidos, presos em um coque mal feito. Vestia uma camiseta larga e calça de moletom, o rosto pálido, mas seus olhos… os olhos pareciam gritar. Sua expressão está carregada de dor. Ela parou ao me ver. Por um momento, não houve nada, apenas o tempo se esticando entre nós, como um elástico prestes a romper.
- Oi. - disse ela, com a voz baixa, quase rouca.
- Oi. - retribuí, me levantando devagar. - Espero que não me ache invasiva… Eu só… queria te ver. Ver como vocês estão. - Apertei as mãos em puro nervosismo.
Ela assentiu com um movimento quase imperceptível. Caminhou até o sofá e se sentou ao meu lado, mas manteve alguma distância. Ainda não sabia se podia se permitir proximidade. E eu respeitaria isso. Apesar de termos nos aproximado sei que há um limite invisível que nos impede a proximidade completa. Na verdade, nada poderá ser como antes. Camila nunca será a mesma, e eu quase não vejo mais traços da mulher que eu conheci.
- Eles estão dormindo? - perguntei, tentando suavizar o peso do silêncio.
- Luiz Henrique acordou há pouco, mas voltou a dormir. Ana Laura está tranquila hoje… - Ela fez uma pausa, olhando para as mãos. - Às vezes fico observando eles e penso no que Helen diria. Ela seria uma mãe incrível. Você sabe disso, né?
- Sei. - respondi com a garganta apertada. - Sei, sim.
O silêncio caiu de novo, mas agora era outro tipo de silêncio. Menos afiado, mais carregado de memórias.
- Eu não sei como continuar, Mariana. Todo mundo diz que vai passar… mas e se não passar?
Respirei fundo, com vontade de dizer tantas coisas, que ela era forte, que Helen vive nos gêmeos, que a dor muda, mas nunca some. Mas nada disso parecia suficiente. Então, apenas coloquei minha mão sobre a dela.
- Não precisa passar. Só precisa caber. Um pouco por dia. E quando não couber… eu posso ajudar a carregar.
Camila deixou o queixo cair sobre o peito. As lágrimas vieram sem som, sem drama. Apenas fluíram, como quem finalmente cede. Abracei-a. E ela deixou. Ficamos assim por minutos que pareceram eternos — dois pedaços quebrados tentando colar algo que talvez nunca volte a ser inteiro. Mas naquele abraço, havia algo mais forte que a dor: havia presença.
Camila
Depois daquele abraço, deixei que ela ficasse. Não precisei dizer nada, ela entendeu. Mariana sempre teve esse dom de perceber o que eu precisava antes mesmo de eu saber. Foi até a cozinha, esquentou água, preparou um café. O cheiro invadiu a casa como se tivesse limpado um pouco da poeira da tristeza. Minha mãe saiu a pouco tempo alegando precisar ir ao mercado.
Eu observei Mariana de longe, apoiada no batente da porta. Por um instante, senti como se Helen estivesse ali também, sorrindo ao vê-la mexer nas xícaras, escolhendo a menor para mim, como ela fazia.
- Trouxe umas coisas pra vocês. - disse Mariana, já abrindo a bolsa. - Fraldas, lenços, uma manta que a Manu fez questão de comprar... e alguns biscoitos que ela jurou que são “os melhores do mundo”.
Sorri pela primeira vez em dias. Um sorriso curto, cansado, mas verdadeiro.
- Obrigada... você não precisava.
- Precisar, não. Mas quis. - Ela pousou as coisas sobre a mesa. - E posso ajudar a dar banho neles hoje, se quiser. Acho que ainda lembro como se faz.
Assenti, e uma parte de mim, que até então se recusava a dividir qualquer responsabilidade, cedeu. Talvez não por confiança, mas por cansaço. Era exaustivo ser tudo sozinha. Mesmo com a ajuda da minha mãe, a casa ainda era um campo minado de lembranças.
Fomos juntas até o quarto dos bebês. Luiz Henrique já começava a se mexer no berço, abrindo os olhos com lentidão. Ana Laura ainda dormia, os lábios entreabertos, as mãos espalmadas como quem sonha com nuvens.
- Vamos começar por ele? - Mariana perguntou, já pegando a toalha.
- Pode ser. - respondi, e a entreguei Luiz Henrique com certo receio, como se ele fosse se quebrar.
Mas Mariana o segurou com firmeza e ternura, murmurando baixinho algo que não entendi. E então vi: ele relaxou. Se aconchegou no colo dela como se a reconhecesse. Como se aquele abraço dissesse: “você também é casa”. Enquanto ela preparava a banheira, eu sentei na poltrona e apenas assisti. Pela primeira vez em semanas, não fiz nada. Só olhei.
- Você faz parecer fácil. - falei, em voz baixa.
- Não é. Mas é bonito. E você está fazendo isso sozinha há seis meses, Camila. Você é uma força que não sabe que tem.
Aquelas palavras me atingiram em cheio. Comecei a chorar de novo, mas dessa vez não era por Helen. Era por mim. Quando os dois estavam alimentados, limpinhos, e dormindo novamente, voltamos à sala. Mariana pegou minha mão.
- Sabe… se você quiser, eu posso vir mais vezes. Nos feriados, nos fins de semana. Posso ajudar com os meninos. Com você. Só… não precisa fazer tudo sozinha, tá?
- Eu não queria depender de ninguém.
- E não vai. Vai ter alguém. É diferente.
Não disse nada. Apenas deixei que ela ficasse. Deixei que ela pegasse as chaves da cozinha. Que aquecesse a sopa esquecida na geladeira. Que me lembrasse de que ainda existia vida fora da dor.
Porque o luto tem mesmo um preço. Mas talvez, com o tempo, e com alguém por perto, eu pudesse aprender a pagar em parcelas pequenas, diárias. E até quem sabe… um dia… recomeçar.
A noite caiu com a lentidão de sempre, mas dessa vez o peso era diferente. Mariana foi embora pouco depois que os bebês dormiram, prometendo voltar na manhã seguinte. Apesar da minha oferta para que ela ficasse no quarto de hóspedes, ela disse que preferia me deixar mais à vontade e ir para um hotel.
Fechei a porta atrás dela e fiquei parada por alguns minutos, com a testa encostada na madeira fria. O cheiro do perfume dela ainda pairava no ar — lavanda e baunilha. Um conforto inesperado. A casa estava em silêncio de novo, mas o silêncio não me feriu como antes. Era como se a presença dela tivesse ficado entre as paredes, como se tivesse coberto os fantasmas com um lençol branco de calma.
Subi devagar, conferi os dois dormindo — Ana Laura com as mãos para cima, como quem sonha em voar; Luiz Henrique com o rosto enterrado no cobertor, tranquilo. No meu quarto, sentei na beira da cama. Peguei o celular. Havia uma mensagem de Mariana:“Se precisar, qualquer hora. Sério. Até se for só pra ouvir respiração.”
Dei uma risada baixa. O tipo de coisa que Helen diria. Mariana tinha esse dom: ocupava o espaço sem invadir. Como se pedisse licença até para cuidar. Deitei, fechei os olhos. E ali, pela primeira vez em muito tempo, o sono veio sem luta. Veio como quem retorna a um lugar conhecido. Porque, de algum jeito, no meio da ausência, havia algo novo crescendo. Um começo sussurrado no meio do fim.
Fim do capítulo
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