capitulo dez: a mulher da minha vida
O despertador toca e Fernanda resmunga algo ao meu lado. Deixo-a dormir mais um pouquinho enquanto levanto da cama. Aproveito para catar minhas roupas do chão, já que na noite anterior, Fernanda havia enfiado a saudade e a vontade dela toda em mim, se é que vocês me entendem. Começo a sorrir com as lembranças. Assim que colocamos Cecília para dormir, ela veio quase que correndo para o quarto me puxando pela mão. E eu... bom, eu que não ia resistir, já foi difícil resistir lá na empresa. Tive vontade de jogá-la em cima daquela mesa e matar toda minha vontade, mas infelizmente, aquelas paredes têm ouvidos.
Respiro fundo ao lembrar de empresa. Ontem, por algum motivo, a reunião do Conselho foi adiada e remarcada agora pela manhã. Por conta disso, eu não poderia me atrasar de maneira alguma. Ponho quatro colheres de pó de café no coador enquanto espero a chaleira elétrica ferver.
— Bom dia, amor — Diz Fernanda, bocejando
— Bom dia, vida — Dou um selinho, mas ela me puxa para um abraço apertado
Ela fica em silêncio por alguns segundos e não me solta, a abraço mais forte e ela esconde seu rosto na curvatura do meu pescoço. Alguns segundos depois, sinto duas mãozinhas agarrando nossas pernas.
— Família... — Cecília diz, nos arrancando risadas.
— Bom dia, filha. Quer seu pãozinho? — Fernanda pergunta
— Quero. — Cecília se senta na bancada com cara de sono e tédio, o que me faz quase querer rir, pois em relação a sono e preguiça, ela era igualzinha a Fê.
Depois do nosso café da manhã, eu estava de frente para o closet em uma batalha interna. Não sei se escolhia um look all black ou black and white, pois encarar uma reunião do Conselho de manhã... ou era guerra ou era paz.
Fiquei olhando para os cabides como quem encara um tabuleiro de xadrez. O preto me vestia inteira nos dias em que eu precisava dominar. Era armadura. Intimidação. O branco, por outro lado, sempre aparecia quando eu queria que me escutassem — e não que me temessem.
No fim, optei pelos dois. Um blazer branco sobre uma blusa preta, como se dissesse a mim mesma: não vou atacar primeiro, mas também não vou recuar. Era assim que se enfrentava o Conselho.
Por fim, pus meu relógio e fui me despedir da minha esposa, que estava impecavelmente linda em um vestido azul e se maquiando para mais um dia de trabalho.
O meu carro laranja estava na garagem me esperando. Sim, laranja. Uma BMW 320i que Fernanda odiou a cor, mas eu amei. Era diferente, veloz, pronta para tudo. Comprei esse modelo com o meu primeiro milhão, fruto da advocacia criminal e por ser sócia nominal. Cada centavo suado em noites mal dormidas, flagrantes de madrugada, defesas improváveis que venci com estratégia e sangue frio. Cada olhar que subestimou minha presença em uma sala cheia de homens engravatados. Tudo ali, impresso em couro legítimo e motor impecável.
Não era um conselho que ia me derrubar.
Abro o teto solar. Sempre gostei da luz batendo no rosto, como se dissesse: vai, você pode.
Enquanto cruzo as ruas da Barra da Tijuca com leveza, deixo que minha mente passeie por tudo que construí. A Florence-Baldez, onde minha gestão ajudou a transformar um escritório que já era bom, em uma referência nacional. Agora não atendíamos só no Rio de Janeiro, mas em outros estados. Meu curso online, que nasceu quase por brincadeira— era só um sonho quando eu resolvi que ia sair da empresa e Dra Baldez me convenceu do contrário no dia do meu casamento. Hoje essa brincadeira ajuda jovens advogados a pisarem firmes no tribunal.
O som de The Runaways – Dead end justice, combinava muito com o que eu estava sentindo naquele momento. Eu estava prestes a ter uma doce explosão se por algum motivo ousassem usar meu relacionamento a fim de prejudicar o meu trabalho e a minha posição no escritório.
Entrei na Florence-Baldez como se estivesse pisando no meu próprio terreno. E realmente estava. Cumprimentei o porteiro e os demais funcionários subalternos, que eu amava tratar com carinho, eles eram bem melhores e bem mais educados que os “doutores” que eu tinha que lidar todos os dias.
Óculos escuros quadrados cobrindo os olhos, minha mochila de couro preta e meu acessório favorito: minha garrafa d’água de inox na mão — presente de Cecília, com vários adesivos de bandas de rock coladas de forma torta que eu jamais teria coragem de tirar. Meu andar era firme, calculado. Quando o elevador parou no 14º andar, dei de cara com Diana com seu tablet na mão me esperando.
— Bom dia, Dra. Anna — Disse, me interceptando no corredor com o seu olhar mais cúmplice.
— Bom dia, querida. Aconteceu alguma coisa?
— Dra. Baldez pediu que a senhora desse uma olhada no site da revista Exame. E, depois disso, pediu pra eu providenciar uma nova secretária pra você, porque — palavras dela — “não vou dividir a Diana com ninguém.”
Soltei uma risada baixa, lembrando do quanto Roberta era extremamente ciumenta com a secretária dela. São longos anos de trabalho.
— Claro que foi coisa da Roberta... Mas tudo bem, vou encaminhar um e-mail ao RH solicitando os currículos.
Enquanto seguia para minha sala, abri o link enviado por Diana. A manchete estampava a crise com letras garrafais:
“Zhang Cosméticos em crise: herdeiras entram em guerra e empresa pode ruir”
“Áurea e Camila Zhang disputam controle da marca sem intenção de dividir patrimônio”
Suspirei. A bomba tinha explodido. E não ia demorar até que os estilhaços chegassem ao meu lado da trincheira. Reviro os olhos, mas eu já esperava.
Pego uma xícara de café e me dirijo até a sala de reuniões, Diana disse que Roberta já me aguardava junto do Conselho. Quando entrei, a maioria deles estava mesmo lá. Inclusive Ricardo, advogado sênior do setor de Civil e Empresarial. Pela cara dele, eu já sabia: tentativa de acordo foi um fracasso.
— Bom dia a todos — Dou um sorriso amarelo e me sento ao lado de Roberta, que me dá um sorriso singelo.
— Bom, como todos devem saber, convoquei essa reunião de emergência para falarmos sobre o Caso Zhang. Ricardo, como estamos? — Dra Baldez começa.
Toda atenção se volta para ele e ele desata a falar:
— A situação está insustentável — começou Ricardo, já gesticulando com os óculos na mão. — A contraparte não aceita dividir os ativos. Querem dissolução e patrimônio intacto. Isso é ilógico. Desonesto.
Solto uma risada interna, mas meu rosto continua impassível. Fernanda era uma advogada do caralh* mesmo. E ela estava arriscando alto.
— Eles estão muito bem orientados, mas também não estão fazendo nada do que não faríamos. — Diz César, um dos Conselheiros.
Alguns sócios trocaram olhares entre si, esperando uma reação minha. Outro, do setor tributário, arriscou:
— O jurídico do outro lado é bom. E eles são agressivos. A gente precisa de força. Talvez... treinamento em massa dos nossos associados.
Revirei os olhos de leve.
— Casos assim não se ganham com força bruta e “muitas mãos”. Quando tem gente demais mexendo no mesmo angu, ele desanda. Vamos mesmo colocar os associados para trabalhar nisso? Em um caso dessa magnitude? O correto seria limitar a estratégia aos sócios seniores — e quem tem, de fato, experiência. — Falei
Silêncio na sala.
Mas não por muito tempo, pois Ricardo o quebrou:
— Ou... podemos fazer diferente. Anna, você já treina nossos associados na área criminal. E com maestria. Tem até curso na internet. Por que não aplicar isso ao Civil? Ensinar a equipe a pensar como você?
Minha mandíbula contraiu. Eles queriam que eu treinasse soldados para um campo de batalha onde, do outro lado, estaria... minha esposa.
Pisquei devagar. Reforcei meu tom:
— Eu não tenho qualquer envolvimento com esse caso, e nem com qualquer outro do setor de Civil e pretendo continuar assim.
Outro sócio interveio:
— Isso tem relação com sua esposa estar do outro lado?
— Justamente por isso, deveria ficar nas mãos de quem não tem um conflito pessoal envolvido. Qualquer aproximação minha com esse caso pode ser mal interpretada. Ou usada contra a própria firma.
A tensão no ambiente era clara. Mas ali, como sempre, eu não recuava. E eles sabiam disso.
Os sócios se entreolham, o peso do silêncio recaindo sobre a mesa. Ricardo, com aquele sorriso cínico, insiste.
— Anna, você sabe que o potencial desse caso é astronômico. E, francamente, ninguém tem a experiência e o domínio que você possui. Isso não é sobre questões pessoais. Isso é sobre a Florence-Baldez, o sucesso da firma e o futuro de todos aqui. Não estamos discutindo um caso qualquer, é uma questão de honra, poder e uma possível fatia imensa de mercado. Eu realmente não vejo outro caminho a não ser contar com você.
— Discordo. Essa não é a melhor estratégia. Isso deveria ficar nas mãos dos sócios sêniores, não de associados ou júniores. Estamos falando da Zhang, é a líder do mercado em produtos de beleza e vocês querem colocar tudo a perder colocando gente que não tem experiência.
Eu sabia o que eles estavam tentando fazer. Tentando me arrastar pro conflito.
Olhei para o lado, onde a Dra. Baldez permanecia observando a situação, até que, finalmente, ela interveio, com sua voz calma e quase despretensiosa.
— Ricardo, Anna tem uma visão e um foco claro sobre o que quer e, nesse caso, não podemos ignorar o potencial lucrativo dele. Se perdemos por conta de inexperiência, vamos virar piada no meio jurídico. E mais, se ela diz que não se envolverá, é porque essa é a postura que a empresa sempre exigiu dela. E eu, como sócia majoritária, confio no seu julgamento.
O olhar de Ricardo para mim não mudou, mas ele sabia que com Roberta, era melhor ele não insistir muito, principalmente se ela discordava de algo. Entretanto, era possível notar a alteração no seu tom de voz se referindo a mim:
— É, mas você como mulher deveria ser mais prática nesse caso e não se deixar levar pelo seu emocional... Vocês, mulheres, tem muita dificuldade de resolver situações assim e eu sinceramente não entendo o motivo. — Ele provocou, sorrindo de maneira quase irônica.
Filho da puta.
Então não era sobre competência, era por eu ser mulher e casada com outra mulher?
Respirei fundo para não o mandar a merd*, mas também não ia deixar esse tipo de comentário passar.
— Ricardo, com todo respeito que um sócio sênior merece... — comecei, minha voz mais firme do que ele imaginava — Eu não aceito que um comentário sobre minha condição de mulher seja feito de maneira tão ridícula. Isso não é sobre gênero, é sobre competência. E não é sobre o meu relacionamento. E se for para falar sobre gênero, que seja de forma justa, porque a liberdade que você deu a si mesmo não tem espaço aqui.
Ricardo parecia estar se segurando para não perder a compostura, mas ele sabia que havia ultrapassado um limite. Foi quando outro conselheiro interveio, um dos mais antigos da firma, com sua voz grave, mas ponderada.
— Acho que chegamos a um ponto onde precisamos decidir isso de maneira formal. Vamos colocar isso em votação. Quem for a favor de Anna treinar os associados, levante a mão.
Então a reunião era para me forçar. Abri o meu tablet imediatamente no pdf do estatuto
— Com licença — digo, voltando o olhar para o conselheiro que propôs a votação — mas antes de seguirmos com qualquer deliberação, vale lembrar o que diz o artigo 23, parágrafo segundo, do nosso estatuto. Estou me recusando por obrigação profissional. E se insistirem nisso, levarei à Ordem dos Advogados. Afinal, o estatuto da empresa e o da Ordem servem para proteger a todos — inclusive de decisões apressadas e, como ficou claro hoje, contaminadas por preconceito. Isso fere minhas prerrogativas.
— Nossa... isso tudo para não ferrar com a sua esposa? — Ricardo é irônico
— Não, Ricardo. Isso é pra proteger a Florence-Baldez — enfatizo meu sobrenome com precisão — de qualquer decisão impensada que possa comprometer sua reputação no futuro. Somos conhecidos, antes de qualquer coisa, pela nossa ética. E é isso que continuará nos distinguindo.
— Engraçado... — Ele começa ironizando — A firma financia um curso para a prática da advocacia e a professora não quer utilizar no próprio local de trabalho. Francamente...
Os olhares se voltam para mim.
E ele continua.
— Ora, se o conteúdo é tão relevante, por que não pode ser aproveitado aqui dentro? Se não está à disposição dos nossos próprios associados, por que devemos financiar?
— Isso não tem relação com o que estamos discutindo — retruco, contendo o tom. — O curso foi aprovado em reuniões anteriores e validado por retorno de imagem e captação de talentos. É um projeto institucional.
— Mas que hoje já não serve aos interesses internos — rebate ele. — Vamos votar.
Alguns sócios se entreolham. Roberta tenta intervir, mas o estrago já está feito. A votação acontece. E, apesar de dois votos contrários, a maioria decide que a empresa deixará de arcar com os custos do curso.
Meu sangue ferve, mas mantenho minha postura impassível.
— Alguma outra pauta? — pergunto, já levantando.
— Nenhuma — responde César, um dos Conselheiros mais ativos, quase constrangido.
Pego minha garrafa d’água da mesa, ajusto o blazer branco sobre os ombros e caminho até a porta. Antes de sair, digo sem olhar para trás:
— Ética sempre tem um preço. E, felizmente, eu posso pagar o meu.
Caminho em direção ao elevador, aperto o botão de cobertura do prédio, não sem antes passar na copa e pegar um café. Quando eu era apenas uma associada, vinha muito aqui refletir. Principalmente quando precisava passar por alguma situação ou decisão difícil.
Me aproximo da grade e lá fora posso notar que a cidade está sempre com pressa, tudo em movimento. Mal eles sabem que um caminhão passou por cima de mim. Minhas mãos ainda estão um pouco trêmulas, não de medo, mas de exaustão. De sapos que eu tive que engolir.
Fecho os olhos por um momento, tentando lembrar por qual motivo comecei tudo isso.
Que loucura foi essa de colocar meu nome na porta de uma firma de advocacia?
Ah, tá. É mesmo. Eu lutei para chegar até aqui e não vou desistir. Eu sabia que ia fazer diferente. E estou fazendo.
Mesmo que doa. Mesmo que custe perder um pouquinho — No bolso e no ego.
Abro os olhos e o sol começa a ficar mais quente. Já deveria estar próximo a hora do almoço. Desço os elevadores em direção à rua e só então permito a mim mesma respirar.
👊🏻⚖
Cheguei em casa com uma dor de cabeça terrível. Além das inúmeras tentativas de Roberta falar comigo ao longo do dia, decidi depois do almoço me trancafiar em minha sala e resolver a questão da minha nova secretária. Ou, pelo menos, tentar. Já que lia os inúmeros currículos e não consegui encontrar ninguém que me agradasse.
Céus, eu odiava processos seletivos. E ter gente nova e estranha trabalhando pra mim era algo que eu não gostava, pois Adriana fazia de tudo — coisas pessoais, profissionais e as de cunho duvidoso.
Eu não estava preparada mesmo para isso. Odiava mudanças. Com isso, minha mente pipocou a tarde inteira. Andei de andar em andar também para ver se encontrava alguma recepcionista para ser promovida e não encontrei nada também. Só mais do mesmo.
Eram 19h da noite e eu estava chegando em casa. Relativamente cedo, pois eu só chegava na base de 20h30, 21h. Giro a chave de casa e a luz da sala acesa me ofusca. Apago imediatamente e Fernanda aparece no corredor descalça, com os sapatos na mão. Como quem tivesse acabado de chegar.
— Anna? Você em casa a essa hora? — Ela arqueia a sobrancelha, coloca os sapatos no chão e vem na minha direção, segurando meu rosto com leveza — Aconteceu alguma coisa?
Suspiro, colocando meu blazer de qualquer forma no cabideiro.
— Aconteceu... mas você já deve imaginar o motivo.
— A reunião do Conselho? Foi ruim?
Assinto.
— Foi patética, me colocaram contra a parede para treinar os associados de Civil, para que eles pudessem ir com mais força no Caso Zhang.
— E você aceitou? — Olhou fundo em meus olhos
— Não. Claro que recusei. Tentaram colocar em votação, usei minhas prerrogativas e tiraram o meu curso que a empresa financiava — me jogo no sofá, tampando os olhos — porque segundo o Doutor Ricardo, não faz sentido a empresa pagar por algo que não está sendo utilizado.
Fernanda tenta tocar o meu braço, mas eu não estou muito a fim de toque físico nesse momento e me esquivo.
— Já vi que quer espaço. — Ela diz, constatando o óbvio.
— Posso te perguntar uma coisa?
— Claro.
— Como conseguiu a Zhang?
Ela hesita. Só esse segundo de silêncio já diz tudo.
— Eu... Foi uma junção de coisas, contatos, indicações...
— Tá bem... — Digo, contrariada. Não engoli a resposta, mas não queria entrar em uma discussão agora, hoje eu precisava de paz. — E Cecília?
— Chegou da natação, falou que não ia tomar banho, pois segundo ela, quando ela nada na piscina, já está de banho tomado. — Fê revira os olhos e eu dou uma risada sincera.
— Essa menina... — Balanço a cabeça em negação
— Tive que ralhar com ela para ela poder tomar banho, tive que falar com severidade. Incrível como essa fase do “Cascão” não acaba nunca. — Fê dá um sorriso e de certa forma, ele me ilumina naquele momento.
— E você, Florence? Não vai tomar seu banho? Ou vai entrar na fase do Cascão também?
Dou uma risada e me levanto, mas sinto a mão de Fê me puxando para seu colo. Caio deitada em seus braços e ela me enche de beijos.
— Se Cecília não estivesse acordada, juro que enchia a banheira e fazia aquela massagem que você ama, mas como não posso agora, vou cuidar de você fazendo sua comida favorita e te dando um remedinho, pois sei que está com enxaqueca. Conheço suas feições.
Dou um sorriso para ela, impossível não me render a esse cuidado e carinho.
Tomo uma ducha rápida e quando finalizo, vou até a sala, encontro minha filha jogando em seu tablet.
— Princesinha, mamãe chegou! — Dou um sorriso e abro os braços para ganhar um abraço, mas Cecília não se move do sofá. — Filha?
— Mamãe, pera. Estou jogando.
— Não pode me dar um abraço? — Digo, magoada. — Ok.
Saio de fininho, mas logo ouço um barulho de passos rápidos na minha direção e uma criança sorridente se pendurando nas minhas pernas.
— Peguei, mamãe! — Ela diz, pendurada nas minhas pernas e sorrindo para mim... o sorriso de Fê.
— Ahhh! Socorro! Tem um polvo nas minhas pernas! — Finjo estar assustada
— Uma polva, mamãe. Polvo é menino. — Ela me corrige em sua inocência de criança.
— Ah, me desculpe, dona Polva! Não sabia que tinha virado especialista em animais marinhos! — brinco, tentando andar com ela pendurada nas minhas pernas.
Me deixo cair de joelhos no tapete da sala, fingindo estar rendida.
— Tá bom, tá bom, você venceu... mas cadê o meu abraço de verdade? Aquele bem apertado?
Ela desliza para o meu colo e me abraça com força e eu retribuo da mesma forma. Me sinto envolvida em uma paz naquele momento, era muito bom depois de um dia difícil no trabalho ter para quem voltar. Meu lar.
— Eu tava com saudade de você hoje, mamãe. — murmura no meu ombro.
— E eu de você, meu amor. — beijo seus cabelos bagunçados, sentindo a calma invadir meu peito, meus olhos marejam, mas eu precisava ser forte, então seguro o máximo.
Ela se afasta um pouco e olha bem séria pra mim:
— Mamãe, você pode me ajudar a desenhar um polvo? Quer dizer… uma polva?
— Claro que posso. Mas só se eu puder desenhar com lápis de cor rosa.
— Tá bom. Mas o rosa é seu e o roxo é meu!
Ela se levanta animada e sai correndo em direção ao seu quarto, enquanto eu a sigo, sentindo o coração mais leve.
Chegamos lá, pegamos os lápis de cores e depois descemos até a cozinha, desenhar na bancada, para fazer companhia à Fê, que nos recebe com um sorriso.
— As duas mulheres da minha vida já estão fazendo bagunça, né? — diz em tom jocoso.
Fernanda se inclina sobre a bancada, com um pano de prato jogado em seu ombro — isso me faz lembrar muito a minha sogra — e as mãos sujas de farinha. Ela amava cozinhar... quando eu viajava a trabalho, ela ia ajudar a mãe em seu restaurante por prazer. Voltava cheia de receitas novas e outras novidades.
— Que aventura é essa de vocês duas? — ela pergunta, enquanto apoia o cotovelo na bancada para observar melhor o que estamos fazendo
— Mainha, nós estamos desenhando a dona polva! — Cecília responde, empolgada.
— Dona Polva? — Fernanda ri, sentando-se ao meu lado na bancada.
— Sim! E ela usa coroa, porque é uma rainha! — Ela continua pintando alguns tentáculos e com seu gesto de colocar a língua para fora durante uma atividade, mostra o quanto está empolgada naquele momento — A mamãe vai desenhar o castelo dela no fundo do mar.
Olho para Fernanda e dou uma piscadinha.
— Uau… uma polva rainha? Acho que isso merece um lugar na galeria de arte da geladeira. — Fê comenta
— Só se for no centro da porta! — digo, fazendo uma linha ondulada que seria, na minha cabeça, o fundo do mar.
Fernanda observa em silêncio por alguns segundos, então se inclina e deposita um beijo no alto da cabeça de Cecília. Depois, se vira pra mim e murmura:
— Tô fazendo bife à milanesa, com batata frita... fica pro jantar?
Dou um sorriso calmo e assinto pra minha ruiva, que logo volta para o fogão empolgada em fazer minha comidinha favorita. Ela era o amor da minha vida. Mesmo que eu soubesse que estava me escondendo alguma coisa.
🍽👩👩👧
Depois do jantar, Fernanda apareceu na sala com um copo d’água e um comprimido na mão. As luzes da sala estavam baixas, havia mudado no controle. Cecília e eu estávamos deitadas no sofá, ela aninhada em meu peito, respirando em um ritmo calminho, ritmo de quem já tinha se rendido ao sono há um tempo.
— Aqui, amor. É pra sua enxaqueca — ela fala baixinho, se aproximando com cuidado — Ela dormiu?
Assinto com um leve movimento de cabeça, sem me mexer muito para não acordar nosso mini furacãozinho. Meus braços continuam em volta dela, como se pudesse protegê-la de um mundo que, às vezes, é duro demais.
Fernanda sorri. Aquele sorriso que me desmonta — não o de ironia, nem o de charme —, mas o verdadeiro, carregado de amor. Ela se senta na beirada do sofá e passa a mão com carinho nos cabelos de Cecília.
— A cumplicidade de vocês é linda… parece coisa de outras vidas. — sussurra
Respiro fundo e olho para ela, meu coração ainda estava em processo de voltar ao normal, desde o fim da tarde.
— Às vezes eu acho que ela sente tudo que eu sinto… como se fôssemos ligadas por alguma coisa — murmuro. — Hoje, mais cedo, eu quase desabei. Mas quando ela me abraçou daquele jeito… foi como voltar a respirar.
Fernanda toca minha perna de leve, cúmplice. Seus olhos buscam os meus com uma mistura de carinho e arrependimento silencioso.
— Eu percebi que seu dia foi difícil. Quis perguntar, mas… esperei. Não queria forçar. — Ela apoia o braço no encosto do sofá e repousa o queixo na mão, me observando.
— Obrigada por isso. — digo. — Por esperar. Por entender.
— Quer me contar agora? — ela pergunta, sem pressa.
Eu olho para Cecília mais uma vez antes de assentir devagar. Faço um carinho em suas costas, depois beijo o topo da cabeça e, com cuidado, me mexo para entregá-la nos braços de Fê, que se levanta com ternura para levá-la para a cama.
Enquanto espero, ajeito os travesseiros e tomo o remédio. A casa está em silêncio, e pela primeira vez no dia, minha mente também começa a ficar.
Logo Fernanda retorna e se acomoda ao meu lado no sofá, puxando uma manta sobre nós duas. Ela se aninha junto a mim, me puxando para encostar a cabeça no seu ombro. Eu deixo minha mão repousar sobre a dela e, com um suspiro cansado, começo a falar.
— Hoje... foi pesado. — começo, sentindo o peso do dia se assentar no meu peito. — Teve uma reunião no Conselho. Daquelas em que a gente sai se perguntando por que ainda está ali, sabe?
Fernanda murmura um “sei” baixinho, apertando de leve minha mão. Eu me viro um pouco para encará-la, buscando abrigo no olhar dela.
— Eu consegui impedir, por enquanto. Mas só o fato de sugerirem isso… me doeu. Como se minha ética, a minha lealdade, fossem descartáveis. Como se o nosso casamento fosse só um detalhe, uma barreira a ser contornada.
Fernanda inspira fundo e recosta melhor a cabeça no encosto.
— Eu sabia que esse caso ia mexer com a gente… mas não imaginei que iam levar até esse ponto. — ela diz, com pesar. — Eu sinto muito, Anna. De verdade.
— Eu sei. — murmuro, fechando os olhos por um segundo.
Ela desliza a mão até minha nuca e faz um carinho lento, sem dizer nada por um momento. O silêncio entre nós é confortável, diferente do que foi dias atrás. E é nesse silêncio que eu percebo que ainda temos espaço pra voltar, pra conversar, pra encontrar um jeito.
— Ainda bem que a gente tem isso aqui. — digo, finalmente. — Você, ela, esse sofá… essa casa. Quando tudo lá fora parece duro demais, é isso que me ancora.
— A gente também se ancora em você, sabia?
Fernanda afaga meu braço por um tempo, o polegar fazendo círculos preguiçosos, enquanto a TV preenche o ambiente com um som distante.
— Obrigada por cuidar da Cecilia hoje. E de mim também… mesmo sem saber que eu ia precisar tanto.
— Eu sempre sei quando você precisa. — responde, me beijando de leve, só um roçar de lábios. Mas eu não queria leve, não hoje.
Seguro o rosto dela com as duas mãos, com delicadeza, e a beijo de novo, mais profundo. Um beijo que diz "senti sua falta" e "me ama ainda, por favor". Ela retribui com a mesma urgência serena, o corpo se inclinando em minha direção.
Quando nos afastamos, estamos ofegantes, sorrindo feito duas adolescentes.
— Eu não sei como te amar pela metade, Fernanda. — confesso, com a voz rouca — Nunca soube. Você chegou na minha vida e virou tudo do avesso... e, ao mesmo tempo, no lugar certo. Obrigada por não desistir de mim... de nós.
Ela morde o lábio, emocionada.
— E você é a minha paz e o meu caos ao mesmo tempo, Anna. A mulher mais forte que eu conheço… e também a mais doce. Mesmo quando tenta esconder. — passa os dedos pela minha bochecha, parando na curva do meu lábio. — Eu me apaixono por você toda vez que você olha nossa filha do jeito que olha. Toda vez que segura o mundo nas costas e ainda tem espaço pra me abraçar. E eu nunca desistiria de você, amor. Você é a mulher da minha vida.
— Fica comigo. Pra sempre. Mesmo quando for difícil. — sussurro.
— Até quando eu não souber lidar comigo mesma, eu vou saber que é em você que eu quero ficar. — ela devolve, com os olhos úmidos.
— Não chora... — digo, limpando algumas lágrimas insistentes — tá tudo bem?
— Sim, é que... você fica me dizendo essas coisas lindas. — ela sorri pequeno — você sempre diz que me ama, mas não assim, com essa intensidade.
— Eu não sou muito romântica, é verdade — constato — mas você me faz melhor todos os dias. Você e nossa filha.
Ela se aninha mais ao meu corpo e mergulhamos em um silêncio confortável. Fernanda está deitada com a cabeça apoiada em meu peito, enquanto meus dedos se perdem mexendo em alguns fios ruivos da sua cabeça. A TV segue ligada, mas não estamos prestando atenção. O que importa de verdade está aqui, nesse momento.
— Você ficou quietinha... — comenta
Respiro fundo e, por um segundo, penso em guardar tudo dentro de mim. Mas não consigo. Não com ela.
— Fê… eu morro de medo de te perder. — digo, quase num sussurro. — Você é a mulher da minha vida. O meu amor. A minha paz. Eu não sei quem eu sou sem você. Promete que não vai me deixar nunca? Mesmo quando eu envelhecer, mesmo se eu não for mais… sei lá… suficiente?
Fernanda se senta devagar, o corpo colado ao meu, e segura meu rosto entre as mãos. Ela está rindo baixinho, do jeitinho dela, com ternura nos olhos.
— Ah, então é verdade… — diz, divertida. — Você anda conversando com a Bia sobre procedimentos estéticos, né?
Eu arregalo os olhos, surpresa, indignada de brincadeira.
— A Bia é uma fofoqueira! — resmungo, semicerrando os olhos.
— Não briga com ela, amor… — ela diz, rindo mais ainda. — Ela tava preocupada com você. Só isso. Queria entender por que você anda tão insegura.
Baixo o olhar por um instante, sem saber o que dizer. Mas Fernanda não deixa o silêncio pesar.
— Anna… não tem absolutamente nada de errado com você. Nada. Eu continuo apaixonada por você como há dez anos. Você é linda. Forte. Inteligente. Sexy pra caramba. — ela sorri, maliciosa. — E continua com o bumbum mais lindo — e mais gostoso de apertar — do planeta.
— Fernanda! — reclamo, ruborizando instantaneamente, cobrindo o rosto com as mãos.
Ela gargalha e puxa minhas mãos para longe do rosto.
— Ai, eu amo te fazer ficar assim… vermelhinha. Logo você, a pessoa mais sem-vergonha do mundo, toda tímida por minha causa. — diz, mordendo o lábio, ainda rindo.
— Você não presta. — sussurro, tentando parecer séria, mas não consigo conter o sorriso.
Ela me puxa para perto e me abraça forte.
— E eu não vou a lugar nenhum, Anna. Nunca. Você é minha casa. A gente pode brigar, discordar, errar. Mas se for com você, eu fico. Pra sempre. — diz, com a boca encostada na curva do meu pescoço.
Adormecemos ali, no sofá mesmo, seu rosto enterrado na curvatura do meu pescoço, enquanto meus braços abraçavam seu corpo protetoramente.
Fim do capítulo
Olha, vocês são demais! Eu estava com o capítulo 10 pronto há SEMANAS e aí vem vocês com esse discurso de momentos fofinhos e eu tive que mudar TUDO. Inclusive o 11, 12, 13, e assim por diante...
Eu vejo os feedbacks e isso é importante demais pra mim, eu adoro construir a história junto com vocês, com base no que vocês estão pensando, na nossa interação.
Bom, espero que vocês gostem desse capítulo, escrevi com todo amor e criatividade que existia em mim, embora não esteja muito romântica ultimamente kkkkkkk
qualquer coisa, meu direct no insta está sempre aberto para conversar sobre a história: @rodriguesnathh e eu juro que vou fazer um instagram de autora, só não tive tempo ainda rs
Comentar este capítulo:
HelOliveira
Em: 15/05/2025
Elas são perfeitas, amo quando elas estão nesses momentos fofinhos, mas o dia não foi fácil para a Anna, e aí da tem sensação dos problemas que esse caso vai trazer vai trazer para nossas meninas, mas com certeza vão vencer todas a barreiras, apostando grande rs
nath.rodriguess
Em: 15/05/2025
Autora da história
Esse caso vai ser bem impactante na relação delas! rs
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Mmila
Em: 14/05/2025
Depois dos momentos fofinhos deve vir pedrada por aí.
Mas essas duas formam o pé perfeito!
nath.rodriguess
Em: 15/05/2025
Autora da história
Já dei algumas pistas bem sutis nesse capítulo kkkkkk
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nath.rodriguess Em: 19/05/2025 Autora da história
Ah, nossa! Imagina para Anna que é dona do escritório e não pode fazer muita coisa, pois tem um conselho que vota por maioria? Ainda bem que não é a mesma área, né? Anna é do criminal e Fê do Civil, então basicamente elas não irão se enfrentar, mas a firma da Anna vai com tudo pra cima da Fê, é um caso milionário, não podem perder money.
Depois de tudo que Fernanda passou no antigo escritório, ela preferiu advogar por conta própria por ser mais tranquilo. Acontece que, ao pegar um caso com essa magnitude, ela vai entrar em um jogo de poder que ela odeia e isso trará consequências para o relacionamento das duas, principalmente por Fê estar escondendo um segredo da Anna.
Não percam os próximos capítulos ^^
Droga, dei spoiler. kkkkk