Capitulo 41 - Encarando o passado
Mariana
Fito o copo vazio de uísque a minha frente, o espelho está completamente em pedaços no chão do quarto. Tento com muito custo relembrar o que aconteceu na noite que dormi com Charlotte, mas tudo é apenas um grande borrão na minha cabeça. Meu celular toca mais uma vez, rejeito a ligação pela décima vez quando vejo a foto dela na tela.
Sinto como se metade do meu mundo tivesse sido tomado de mim. Camila me detesta. Sempre que fecho os olhos me lembro dela dizer que me odeia. E depois simplesmente vai embora. Desde então eu estou aqui, perdida em minha própria dor e escuridão.
Me levanto cambaleando, ignorando os cacos espalhados que cortam a sola dos meus pés descalços. Não sinto dor física — a dor dentro de mim é tão maior que anestesia o resto. Abro a janela, o vento frio da madrugada me atinge em cheio. Por um instante, penso em desaparecer. Talvez fosse mais fácil. Talvez fosse justo.
Pego o aparelho com mãos trêmulas, hesitando. Abro no número de Camila. Parte de mim quer ouvir sua voz, implorando por um perdão que sei que não mereço. A outra parte... sabe que isso só vai piorar tudo.
Com um impulso desesperado, lanço o celular contra a parede. O som do impacto ecoa pelo quarto vazio. Como eu. Um estilhaço de vidro corta meu braço, mas eu mal percebo. Encosto a testa no batente da janela, fechando os olhos com força, tentando afastar as imagens daquela noite, tentando apagar o gosto amargo do erro que cometi e simplesmente não tenho como arrumar.
Eu quebrei tudo. E talvez nunca mais consiga consertar. Um soluço rasga minha garganta. Deixo que venha. Deixo que a dor me atravesse sem resistir. Pelo menos dessa vez eu não finjo ser forte. Fico ali, encarando o céu escuro, sem saber como sair desse buraco que eu mesma cavei. Sem saber se, um dia, Camila vai conseguir me perdoar. Ou se eu vou conseguir me perdoar.
Minhas pernas fraquejam e eu deslizo até o chão, ainda encostada à janela. O quarto gira devagar, o gosto do uísque azedando na minha boca. Fecho os olhos, desejando simplesmente não existir por algumas horas.
E apago.
O mundo volta aos poucos, confuso, como se eu estivesse submersa e só agora conseguisse emergir. Sinto um toque firme em meu ombro.
- Mariana. - A voz é baixa, mas urgente. Conheço esse tom. É Diana. - Ei, abre os olhos. Anda, por favor.
Forço as pálpebras a se erguerem. Tudo ainda está meio turvo. Diana está ajoelhada ao meu lado, o rosto tenso de preocupação.
- Meu Deus, o que você fez com você mesma... - ela murmura, passando a mão pelo meu cabelo desgrenhado. - Você precisa sair daqui. Precisa sair desse buraco.
Tento me sentar, mas ela segura meu braço com cuidado.
-Calma. Respira primeiro. Estou aqui, ok? - Seus olhos encontram os meus, firmes, cheios de algo que eu não via há dias: esperança. - Eu sei que parece que o mundo acabou. Eu sei que dói como o inferno. Mas você precisa levantar. Não por ela. Por você.
Engasgo em um soluço.
- Eu estraguei tudo, Diana... Eu... eu perdi ela...
- Talvez. - Ela aperta minha mão, sem dó nem piedade. - Mas ficar se destruindo desse jeito não vai trazer a Camila de volta. Nem vai fazer você se perdoar.
Fecho os olhos com força, como se isso pudesse conter a avalanche que se acumula dentro de mim.
- Você vai levantar desse chão, vai tomar um banho gelado, vai limpar esse quarto, vai juntar cada caco… - ela aponta para o espelho destruído -... e depois vai olhar no espelho de novo. Não pra se culpar. Para se reconstruir.
Soluço outra vez, dessa vez com mais raiva de mim mesma do que tristeza.
- Mas e se ela nunca me perdoar?
- Aí você aprende a viver com isso. - Diana se encolhe de ombros, pragmática. - E segue em frente. Uma hora por vez. Um passo por vez. Mesmo que a vontade seja desistir.
Ela me puxa para um abraço apertado. Um abraço que não tenta apagar minha dor, apenas segura minha mão através dela.
- Você ainda pode ser melhor do que isso. Você ainda pode ser alguém que ela respeitaria. Mesmo que o amor tenha acabado, Mariana. Ainda dá tempo de salvar quem você é.
Demoro a ceder, mas quando finalmente encosto a cabeça no ombro dela, um pedaço pequeno — minúsculo — da minha vontade de lutar volta a pulsar. Talvez eu ainda tenha salvação. Talvez.
Três meses depois.
Saio do meu plantão e vou direto para casa. Hoje é aniversário de Lívia, e a festa será na minha casa por uma questão de espaço maior. Nos últimos três meses minha vida mudou completamente e eu simplesmente consegui me reerguer, em partes.
Larguei a empresa e simplesmente resolvi voltar a fazer o que amo, e isso tem me dado uma adrenalina que eu precisava depois que tudo aconteceu. Aos poucos sinto que voltei a tomar controle da minha vida. Menos é claro quando penso que irei ficar frente a frente com Camila hoje.
Fito minha imagem no espelho. Minhas mãos estão tremendo e eu sinto isso desde que Diana avisou que ela viria. Respiro fundo, tentando acalmar as batidas do meu coração que parece querer pular do meu peito.
Quando chego ao primeiro andar, sinto o peso da presença dela antes mesmo de vê-la. Meus olhos a procuram automaticamente, e quando finalmente a encontro, é como um soco no estômago. Camila está linda — cruelmente linda — de um jeito que me lembra tudo o que perdi. Lívia corre até mim, seu rosto radiante de travessura:
- A Cami está aqui. Tá linda igual a você.
Antes que eu consiga dizer qualquer coisa, ela se afasta, me deixando exposta no meio da multidão. Meus olhos e os de Camila se cruzam. Um segundo eterno. Ela desvia primeiro, desaparecendo na direção oposta.
Tento agir normalmente, conversando com convidados, sorrindo quando preciso. Mas meus olhos sempre a procuram. Sempre. Samuel, como um escudo, se coloca entre nós toda vez que o acaso tenta nos aproximar. E talvez seja melhor assim.
A festa segue animada. Sempre que meus olhos encontram os de Camila sinto Samuel protegendo-a como um cão de guarda. Com o avançar das horas alguns convidados acabaram indo embora, e isso inclui Samuel. Diana me lança um olhar indicando que Camila entrou.
Consigo chegar na sala antes que ela suma no último lance de escada. Subo os degraus apressadamente. Me apoio na parede, tentando parecer o mais casual possível, cruzo as mãos em uma tentativa de minimizar a tremedeira.
Por mais que eu tente me desculpar, Camila ainda está ferida. Seus olhos são irreconhecíveis, não me fitam mais com amor. Ela é puro ódio. E eu posso ver isso. Ela insisti em dizer que quero eu é apenas sex* e um ímpeto de raiva ela me agarra. O beijo é devastador, uma mistura de dor com o amargo da decepção.
- Camila, para. Não quero assim. – Tento me soltar.
- Você não quer sex*? Então é isso que vou te dar. – Afirma com ódio. Por um segundo eu desconheço aquela pessoa diante de mim e sinto medo.
Meu corpo é empurrado contra a parede. Ela rasga meu top com um único movimento. Seus olhos parecem duas chamas raivosas. Força um beijo que eu não tenho nenhuma intenção de manter, mesmo com minha língua insistindo no toque dela. Camila segura meu seio, buscando por algo que antes nos unia, mas neste momento cria um barreira invisível entre nós. Meu corpo inteiro tenciona. Não quero isso, não desse jeito. Com o ódio substituindo o amor que um dia existiu entre nós. Ela para, eu reajo de imediato, me sentindo invadida, ferida. Isso não é ela. Isso não é amor. Mordo seu lábio com força, para que ela pare com aquilo. Os olhos dela parecem se encher de sanidade. Afasta-se de mim, posso ver sangue em sua boca.
Só então eu percebo que tudo o que aconteceu antes não quebrou apenas a mim. Aquela Camila não é mais a pessoa pela qual me apaixonei. Eu a transformei no que ela é hoje. E essa constatação me invade com uma culpa absurda, esmagadora. Só então entendo, de verdade: nunca mais a terei de volta. Nunca mais terei a minha Camila de volta.
- Mariana, eu... - ela tenta argumentar, se afastando de mim.
- Não diz nada. Só vai embora daqui. - Minha voz é firme, mas meu coração, não.
Abro a porta com força, sem olhar para ela. Assim que Camila atravessa a porta, o chão parece sumir sob meus pés. Sou tomada por um pranto que sufoca a minha alma, a culpa e o remorso me dominando por completo, trazendo de volta a escuridão que eu lutei três meses para afastar.
Escuto batidas na porta. A voz de Diana surge ao longe. Eu fito minha imagem no espelho. Fecho o blazer tentando disfarçar minha nudez indesejada. Abro a porta, Diana tenta falar algo. Mas só consegue me olhar e permitir que eu a abrace.
- Ela foi embora. - Acaricia meus cabelos.
- Eu a perdi. - Constato. - A Camila que eu amei não existe mais.
- Sinto muito.
- Eu também.
Ao final da noite todos os convidados foram embora e eu volto para a minha cama depois de um longo banho. Manu já está dormindo. Observo seu sono sereno, sem nem ao menos ter ideia de como eu estou completamente despedaçada. Fecho os olhos deixando que lágrimas silenciosas deslizem sobre minha face. E assim adormeço, imersa mais uma vez na dor, mas desta vez sem a presença da escuridão, está parece ter engolido Camila e aquilo me causa um remorso absurdo.
Fim do capítulo
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