O Nome Errado Na Hora Errada
Apartamento de Silvia e Verena – 20h40
Verena entrou devagar, girando a chave com cuidado para não fazer barulho. Não por medo — o apartamento era seguro —, mas por cansaço. O salto batia com discrição no chão de madeira, e o perfume já desgastado da manhã quase não resistia ao ar seco da noite. Ela carregava a bolsa no ombro e o blazer no antebraço. O dia tinha sido longo. Longo demais.
— Finalmente em casa — disse, quase num suspiro, tirando os sapatos ao lado da porta.
— Finalmente meu amor — respondeu Silvia, com a voz viva, animada.
Verena seguiu até o sofá, encontrando a esposa sentada de pernas cruzadas, com uma taça de vinho na mão e o notebook equilibrado nos joelhos. Usava um moletom bonito e confortável, com o cabelo preso num coque despretensioso. Ela pausou o que estava vendo e sorriu ao vê-la.
— Oi, deputada. Sobreviveu ao dia?
Verena sorriu de leve, jogando o blazer no encosto da poltrona.
— Quase. Mas acho que perdi uns cinco anos de vida.
Silvia fez um biquinho e ergueu a taça como se brindasse à sobrevivência da esposa.
— Quer um pouco?
— Aceito. — Verena se aproximou, tirando os óculos e se sentando ao lado, bem rente, encostando a cabeça no ombro de Silvia por um instante. — Que cheiro bom... você fez janta?
— Pedi — ela riu. — Mas caprichei no prato, pelo menos. Tá ali na cozinha, te esperando. E aproveitando que você chegou, preciso te contar uma coisa.
Verena ergueu as sobrancelhas, já meio preocupada, recolocando os óculos.
— O quê?
— Calma, não é nada demais. — Silvia girou o corpo um pouco, animada. — Lembra da Luana e do Lucas? Eles vão se casar no fim do mês, né?
— Uhum. A Luana é a que sempre te chama de “meu cristalzinho comunista”, né?
— Essa mesma — Silvia riu. — Pois então, sábado agora vai rolar a despedida de solteira dela. Só as meninas. Vai ser numa casa de festas lá em Moema, baladinha particular. E adivinha o tema?
Verena sorriu com cansaço, fechando os olhos por um segundo.
— Tema?
— Colegial.
— Ah, não... — ela murmurou, entre divertida e exausta.
— Sim! Saias, gravatinhas, meias 7/8... a galera toda vai entrar na onda. Já tô até vendo, a Lu vai pirar.
— Imagino — Verena suspirou. — E você vai?
— Claro que vou, né? Mas... — Silvia apoiou a taça na mesa e virou-se um pouco mais para a esposa. — Eu queria que você fosse comigo.
Verena abriu os olhos, surpresa.
— Eu?
— É. Não precisa se fantasiar, relaxa. Só queria que você estivesse lá. A gente anda meio... sabe. Em horários diferentes. Sempre cansadas. E eu pensei que talvez pudesse ser divertido. Sair um pouco da rotina, rir, dançar. Nem que seja pra você ficar sentada no bar me vendo passar vergonha.
Verena ficou em silêncio por um momento. Passou a mão pelos próprios cabelos soltos, ajeitando as pontas com os dedos. O convite parecia inocente, amoroso até. Mas dentro dela, a guerra silenciosa com a própria consciência tornava qualquer situação mundana um campo minado.
Ainda assim, ela sorriu. Um sorriso pequeno, mas sincero.
— Tá bom. Eu vou.
Silvia se iluminou.
— Sério?
— Sério. Talvez eu precise mesmo... sei lá, me distrair.
— Vai ser ótimo. E quem sabe depois a gente estica a noite... só nós duas — Silvia disse com um olhar sugestivo, encostando a cabeça na da esposa, roçando os lábios na têmpora dela com carinho.
Verena fechou os olhos e assentiu, aceitando o beijo, mas sem se mover muito.
— Vai ter open bar?
— Óbvio.
— Então talvez eu aguente — brincou Verena, ainda com a voz baixa.
Silvia riu, se levantando pra ir buscar a comida pra ela.
Verena ficou sozinha por um instante, observando o próprio reflexo na tela de LED da TV desligada. Era só uma festa.
Mas ela sabia — dentro dela — que cada lugar em que ia, cada olhar, cada escolha, cada passo fora da linha... podia ser o estopim. E ela estava muito, muito perto da borda.
Casa de Festas em Moema – Sábado, por volta das 22h30
A fachada moderna da casa de festas, com sua entrada discreta e luzes coloridas piscando atrás dos vidros fumê, era só um prenúncio do que rolava lá dentro. Logo que entraram, o som grave das caixas preenchia tudo. A luz roxa e rosa piscava no ritmo de um remix de “Toxic”, da Britney Spears, e o salão fervia de gente.
Verena entrou ao lado de Silvia, os olhos varrendo o ambiente com aquele ar analítico que ela não desligava nem em festa. Vestia uma camisa branca impecável, calça bege, sapatênis claro. O cabelo solto, bem cuidado, como sempre. Silvia, ao lado, estava visivelmente mais no clima: sainha preta justa, camisa branca com nozinho na cintura e meias 3/4. Um toque sexy, mas elegante.
— Nossa, tá bombando, hein? — Silvia falou já quase gritando perto do ouvido da esposa, por causa do som. — DJ mandando ver.
— E eu achando que ia ser só uma musiquinha ambiente, um vinho barato e joguinho de tabuleiro, — respondeu Verena, com um meio sorriso, olhando em volta. — Tô começando a achar que vim muito arrumada.
Silvia olhou pra ela de cima a baixo, mordendo levemente o lábio inferior.
— Arrumada? Você tá parecendo CEO em visita a um colégio técnico. Só faltou a pastinha de couro.
Verena riu, balançando a cabeça.
— Eu vim pronta pra reunião de pais e mestres.
Assim que passaram pela entrada, deram de cara com Luana, a noiva da noite, já com drink fluorescente na mão e cílios postiços gigantes. Abraços, cumprimentos rápidos, algumas brincadeiras sobre o look “sério demais” da deputada, e então... surgiu Rafaela.
Do nada, como um furacão.
— Ah, não! Não mesmo! — Rafa gritou ao ver Verena, os olhos arregalados e a voz um pouco mais alta que o necessário. — Que porr* é essa, Verena? Você veio trabalhar?
Ela usava uma camisa aberta por cima de um top, saia de pregas e tênis — meio colegial, meio rave. Cabelo preso num coque desfeito, batom vermelho meio borrado. Um copo já pela metade na mão.
— Rafaela, boa noite pra você também, — disse Verena com calma, já sentindo a encrenca.
— Boa noite é o cacete. Toma isso aqui, — Um garçom com uma bandeja de cervejas passou e Rafa enfiou uma long neck de Heineken gelada na mão da amiga. — E levanta esse colarinho aí. Isso aqui é uma festa, não o conselho da Alesp.
— A festa mal começou e você já tá bêbada, é isso?
— Bebi em casa. Tava no esquenta da noiva. E agora você vai entrar no clima, porque ninguém merece dançar com uma planilha.
Antes que Verena pudesse retrucar, Rafaela já estava puxando a gola da camisa dela pra frente e afrouxando o primeiro botão.
— Rafaela... — ela protestou, segurando o riso. — Vai com calma.
— Calma nada. Só um botãozinho. Pronto. — Rafa sorriu satisfeita e pegou uma gravata azul escura que tirou do bolso da saia. — Último toque. Segura a pose de estagiário sexy.
Ela pendurou a gravata frouxa no pescoço da Verena, de lado, toda torta.
Silvia assistia tudo de perto, cruzando os braços com aquele sorrisinho enviesado. Quando Rafa finalmente soltou a esposa e saiu dançando de novo com o copo na mão, Silvia se inclinou devagar, quase no ouvido de Verena, e falou baixo, só pra ela:
— Tá... eu não tô aguentando ver você assim.
Verena olhou de canto, sem saber se ria ou se puxava a gravata fora.
— Assim como?
— Assim... com essa cara de quem finge que não sabe o quanto tá gostosa.
Verena deu uma risada curta, meio sem graça, mas claramente satisfeita. Envolveu a cintura de Silvia com um braço e a puxou pra perto, dando um beijo leve na lateral do rosto dela, bem no osso da bochecha.
— Então vamos fingir que eu não sei. E você finge que não tá quase me arrastando pro banheiro. — Sussurrou com um sorriso discreto.
Silvia mordeu o lábio, mas antes que pudesse responder, alguém as chamou. Verena soltou a esposa devagar, deu um gole na cerveja e ajeitou, com as pontas dos dedos, a gravata frouxa.
— Acho que agora eu tô... menos CEO?
— Agora tá... perigo público, — Silvia murmurou, já virando de costas pra puxar a esposa pela mão.
Verena riu e se deixou levar. A noite ainda estava só começando.
Casa de Festas em Moema – Por volta da 00h15
O salão já estava mais cheio, a música cada vez mais intensa. O DJ emendava remix atrás de remix — de Dua Lipa à Rihanna, tudo com batidas pesadas que faziam o chão vibrar. As luzes giravam em cores neon, iluminando rostos suados, copos erguidos e corpos se movendo sem pausa.
Verena já tinha tomado sua segunda cerveja. Não estava bêbada, mas aquela leveza quente no corpo denunciava que estava mais solta que o normal. A gravata pendurada frouxa no pescoço, dois botões da camisa abertos, mangas dobradas até os cotovelos — era o visual mais descontraído que alguém da Alesp veria nela, se ousasse entrar ali.
Silvia estava colada nela. Literalmente.
Andavam pelo salão de mãos dadas, mas a cada parada para cumprimentar alguém — uma amiga da noiva, um conhecido do casal —, Silvia fazia questão de se aproximar por trás, apoiar a mão na cintura da esposa, dar um beijo no ombro ou enroscar os dedos nos passantes da calça bege dela, como quem marca território.
— Tá tudo bem? — Verena perguntou com um sorriso enviesado, percebendo.
— Aham, — Silvia respondeu, dando um gole no seu drink rosa. — Só... observando.
— Observando o quê?
— O mundo babando na minha mulher, — ela respondeu de imediato, com aquele brilho competitivo nos olhos.
Verena riu e virou de lado, abraçando Silvia pela cintura com uma calma calculada.
— Que exagero.
— Exagero? — Silvia se inclinou, passando os lábios pelo pescoço da esposa. — Você tem noção de como tá agora?
— Tenho... alguma ideia.
Rafa apareceu dançando entre elas, como quem não viu nada. Olhou pras duas, levantou o copo e gritou:
— É ISSO, porr*! Vocês são o casal mais tesudo dessa festa, desculpa sociedade!
Silvia riu, meio sem graça, mas satisfeita. Verena levantou as sobrancelhas.
— Rafaela, você tá precisando de água.
— Eu tô precisando é de uma terceira via nesse relacionamento, — ela piscou. — Mentira, respeito vocês. Mas assim… se quiserem testar coisas novas, tenho uma listinha aqui. — Bateu no bolso da saia, rindo alto.
Silvia gargalhou, puxando Verena mais pra perto, como quem diz “nem vem”. E ali, na beira da pista, envolvidas naquele clima quente, Rafa foi dançando de volta pro centro, e as duas ficaram sozinhas por um momento, as luzes girando em tons de azul e lilás.
Verena virou o rosto devagar, olhando Silvia bem de perto.
— Você tá com ciúmes?
— Um pouquinho. — Silvia respondeu com a voz rouca, os olhos nos lábios da esposa. — Mas é que... você assim, meio bagunçada, meio perigosa... dá vontade de fazer besteira.
Verena deu um sorriso pequeno, daqueles que terminam em mordida no lábio. A mão dela subiu pela lateral da coxa de Silvia, discretamente, até parar no quadril. E foi puxando devagar, colando os corpos. As bocas se aproximaram — não havia mais espaço entre elas — e o beijo veio intenso, com a urgência abafada que só quem vive entre política e frustração sabe dar.
Silvia se agarrou nela como se fosse esquecer do mundo. As mãos deslizaram pela camisa já amarrotada de Verena, e os dedos se fecharam no cinto bege, com força.
— Tem uma sala lá em cima, — Silvia sussurrou, ofegante, encostando a testa na da esposa. — As madrinhas deixaram as bolsas lá. Tem um sofá.
Verena ergueu uma sobrancelha.
— Vai me sequestrar?
— Tô pensando seriamente, — Silvia respondeu, cravando os olhos nela.
Mas antes que qualquer passo fosse dado, uma amiga do casal passou e puxou Silvia pelo braço, rindo, chamando-a para tirar uma foto com as outras convidadas. Silvia olhou pra Verena com uma cara de “vou, mas já volto”, e saiu quase arrastada.
Verena ficou sozinha ali por um instante, com a garrafa vazia na mão e o coração acelerado. Passou a mão no cabelo, respirou fundo. E então, ali no meio do calor da festa, com as luzes pulsando e a boca ainda quente do beijo, uma imagem atravessou sua cabeça feito flecha: o olhar assustado de Valentina naquela semana.
“Tem alguma coisa errada?” — a voz da menina ecoou em sua memória. Aquela vulnerabilidade, aquela hesitação… E, contra sua vontade, a lembrança ficou. Misturada com o cheiro de cerveja, perfume doce de Silvia, e o calor do desejo que a festa trazia.
Balançou a cabeça, como se quisesse espantar o pensamento. Voltou a focar na música, nas luzes, no agora. Mas uma parte dela… já não estava mais ali.
Casa de Festas em Moema – 00h45
Verena encostou-se à parede lateral da pista, longe das caixas de som, e tentou se concentrar no ambiente ao redor. As luzes continuavam dançando, e a fumaça do gelo seco criava uma névoa branca por onde passavam pernas e sorrisos.
Rafa já dançava com uma turma no centro da pista, fazendo dancinhas sincronizadas com duas mulheres que provavelmente tinham passado o dia no TikTok. Silvia ainda não voltara — provavelmente envolvida em mais fotos, poses engraçadas com copo na mão e algum filtro de “despedida das madrinhas”.
Verena passou a mão pelos cabelos, jogando-os pro lado com um certo charme despreocupado. Mas sua expressão estava longe de despreocupada. Estava com o olhar perdido, a cerveja quente na mão, e o gosto de beijo ainda na boca. Um beijo ótimo. Um beijo certo. Com sua esposa.
Mas então por que, diabos, aquela lembrança insistia em voltar?
Ela fechou os olhos. E lá estava Valentina.
“Desculpa… eu achei que tava tudo certo.”
“Tem alguma coisa errada?”
O bilhete.
A letra pequena, tímida, de alguém que jamais teria coragem de dizer aquilo em voz alta. Mas que disse. No papel. Sem querer.
Ou teria sido... querendo?
Verena abriu os olhos, respirando fundo, como se aquilo afastasse o pensamento. Levou a garrafa à boca, mas estava vazia. Nem percebeu quando acabou.
Atravessou o salão, ainda meio distante, e pegou outra cerveja no balcão. O bartender sorriu, mas ela nem viu direito. Estava em automático.
Sentia a pele quente, o corpo leve, mas a cabeça pesada. Um peso estranho, desconfortável, que não combinava com o momento.
Silvia apareceu minutos depois, radiante, com um copo de drink novo na mão e a blusa levemente escorregando do ombro.
— E aí, sumida? — ela brincou, colando na esposa por trás e sussurrando no ouvido. — Me perdeu por cinco minutos e já ficou pensativa? Não acredito.
Verena disfarçou com um sorriso curto.
— Tava esperando você me sequestrar, mas achei que tinha desistido.
Silvia deu uma risada baixa, mordendo o lóbulo da orelha dela.
— Eu nunca desisto. Só fui montar o cenário, sabe? Tem um sofá lá em cima me esperando. E tem você aqui... assim, suada, largada, com essa gravata ridícula que a Rafa pendurou no seu pescoço. Não sei como você ainda tá vestida.
Verena virou de frente pra ela, apoiando as mãos na cintura de Silvia.
— É que eu tô em campanha. Não posso perder a dignidade por completo.
— Besteira. Eu sou a sua campanha agora.
As duas se encararam por um segundo. O desejo ainda estava ali. Claramente. Mas Verena hesitou.
Silvia percebeu. Franziu de leve a testa, e encostou a mão no rosto da esposa.
— Tá tudo bem?
Verena sorriu, apertando os olhos como quem quer convencer a outra — e a si mesma.
— Tô ótima.
Silvia mordeu o lábio, desconfiada, mas preferiu não insistir. Entrelaçou os dedos nos dela.
— Vamos dançar, então?
— Vamos.
Elas voltaram à pista, onde Rafa já fazia coreografia com um grupo de mulheres empolgadas.
Mas mesmo no meio da dança, dos flashes, dos gritos e do álcool... Verena não conseguia mais se desligar. Seu corpo reagia à festa, aos toques de Silvia, ao ritmo. Mas dentro dela, alguma coisa estava diferente.
Como se estivesse em dois lugares ao mesmo tempo.
Como se tivesse deixado uma parte de si num corredor frio da Alesp, frente a frente com um olhar assustado.
Como se uma verdade perigosa estivesse à espreita… esperando o momento certo pra se mostrar.
E isso… era ainda mais apavorante do que ser pega.
Casa de Festas em Moema – 01h35 da manhã
As luzes rodavam em tons de roxo e azul, refletindo nos vidros da pista cheia. A música seguia num remix envolvente, batida forte, cadência hipnotizante. O cheiro de cerveja gelada, perfume adocicado e suor leve pairava no ar — como todo sábado de festa boa em São Paulo.
Verena estava atrás de Silvia, os braços firmes em volta da cintura da esposa, a garrafa de Heineken ainda na mão esquerda, úmida de condensação. A camisa social branca já com dois botões abertos, gola frouxa com a gravata azul pendurada de lado. Ela dançava colada, os quadris acompanhando o ritmo de Silvia, que tentava manter algum resquício de compostura, mas... estava cada vez mais difícil.
A boca de Verena se aproximava da orelha dela entre um passo e outro.
— Você dançando assim me faz esquecer que tem gente olhando…
Beijou de leve a curva do pescoço.
— E essa saia... tá me torturando, Silvia.
Silvia sorriu, tensa, mordeu o lábio, mas manteve o rebol*do lento, sensual.
— A culpa não é minha se você resolve vir de CEO disfarçada de estudante — disse baixo, sentindo os pelos do braço arrepiarem com mais um beijo no pescoço.
— CEO que vai te levar pra uma reunião privada… — Verena disse baixo, rindo com a própria ousadia.
Silvia virou o rosto, olhando a esposa por cima do ombro. O olhar dela era de pura faísca.
Sem dizer nada, puxou a esposa pela mão com firmeza, atravessando parte da pista e contornando uma parede lateral de vidro. Chegaram a um canto com vasos grandes de samambaia e uma janela entreaberta. A iluminação era mais baixa ali, com luz âmbar subindo de baixo pra cima, criando sombras que desenhavam o rosto das duas de um jeito quase cinematográfico.
Verena encostou Silvia contra a parede, ofegante.
— Eu não acredito que a gente vai se agarrar num canto escuro como dois adolescentes
Verena sorriu torto, a voz rouca.
— Só tô tentando compensar a falta da fantasia.
Silvia gargalhou, e antes que respondesse, sentiu a mão livre de Verena puxar seu cabelo com firmeza, a boca já esmagando a dela com fome. Foi um beijo quente, profundo, de bocas se encaixando com força, língua e suspiros entrelaçados como se precisassem se morder pra acreditar que estavam ali.
Verena manteve a long neck na mão esquerda, mas a direita apertava os cabelos da esposa com desejo. Silvia se agarrou ao pescoço da deputada, arranhando a nuca com as unhas, puxando-a ainda mais.
As duas pareciam devorar uma à outra com os rostos colados, corpos colados, respirações embaralhadas. Um beijo que durava mais que o tempo e pedia pausa só pra buscar ar. Mas elas não paravam. Quando separavam os rostos, era só por segundos — até se esmagarem de novo, agora mais afoitas, mais bêbadas de tesão.
— Uau... — Silvia sussurrou, completamente sem fôlego, com a testa colada na de Verena. — Você me deixa sem juízo.
Verena deu um sorriso lento, aquele sorriso dela que vinha com ego inflado e olhar mole.
— Então deixa eu te deixar sem mais alguma coisa.
Antes que pudesse continuar, uma voz soou de algum ponto perto dali.
— Puta merd*! —Rafa, surgiu ao lado com um copo de drink vermelho — Que beijo é esse, deputada? Tá concorrendo ao Prêmio Multishow agora? Tô interrompendo o soft porn ou já posso voltar a fingir que não vi nada?
Silvia, com o rosto vermelho, escondeu-se no ombro da esposa, rindo.
Verena só ergueu a garrafinha e disse:
— É que o DJ não tava tocando Beyoncé. A gente improvisou.
— Improvisou demais, deputada — Rafa piscou. — Vamos sair antes que a dona da festa cobre aluguel por uso do cantinho VIP.
Silvia puxou Verena de volta pra pista, ajeitando o cabelo.
— Se alguém perguntar...
— A gente tava admirando as plantas — Verena completou, rindo.
E voltaram. Mas os olhos… ainda estavam incendiando.
Fim da festa – 03h08 da manhã, Casa de Festas em Moema
A pista já começava a esvaziar, com algumas pessoas meio tombadas nos sofás ou se despedindo na calçada, onde os carros de aplicativo chegavam um atrás do outro. Do lado de fora, um vento leve passava entre as árvores da rua silenciosa.
Rafa já estava sentada no meio-fio, com o salto na mão e o cabelo preso de qualquer jeito. Quando viu Verena e Silvia saindo meio cambaleando, de mãos dadas e rindo como duas adolescentes, ela logo gritou, voz arrastada de quem também não estava sóbria:
— Eitaaa, vai começar a lua de mel agora, é? — balançou a long neck na direção das duas. — Já sei até como termina isso: uma noite de gemidos e uma manhã de café frio!
Silvia riu, jogando o cabelo pro lado.
— Cala a boca, Rafa. Vai dormir!
— Só se for no Uber de algum desconhecido, porque minha carona oficial já tá ocupada ali… — apontou pra uma amiga que caia na conversa mole de um rapaz.
Verena passou o braço pelos ombros de Silvia e olhou pra Rafa com aquele meio sorriso bêbado, travesso.
— Não se preocupa, gatinha. A nossa lua de mel tem pós-graduação.
Rafa gargalhou.
— Só não vale gritar meu nome no meio, hein? — piscou. — Boa noite, casal calor humano!
As duas entraram no carro de aplicativo ainda rindo, Silvia encostando a cabeça no ombro de Verena recebendo, beijos leves da esposa.
Apartamento do casal – 03h44 da manhã
A porta bateu atrás delas com um leve estrondo. Verena empurrou Silvia contra a parede do hall da sala, as luzes ainda apagadas, mas a claridade da rua entrava pelas janelas largas. A gravata azul já pendia pra fora do bolso da calça, a camisa branca com quase todos os botões abertos, revelando parte do sutiã preto de renda que Silvia insistira que ela usasse.
Silvia já ria entre os beijos.
— Você vai me carregar até o quarto ou a gente fica na sala mesmo?
— Onde eu encostar, vai ser cama agora — Verena murmurou, puxando o zíper da saia da esposa com uma das mãos enquanto a outra subia pela coxa dela.
Silvia agarrou o rosto da esposa, beijando com mais força, língua entrelaçada, ofegante. Os corpos se colavam, o calor dos drinks, da pista, do toque — tudo somando.
A camisa da Verena já estava quase caída dos ombros. Silvia puxou, jogando-a no chão. A mão dela agora já por dentro da calcinha da esposa, enquanto caminhavam tropeçando até o quarto, rindo, beijando, mordendo o pescoço uma da outra. Quando chegaram à beirada da cama, Silvia caiu de costas, puxando Verena por cima.
— Vem… agora. — ela sussurrou, arfando.
Verena subiu por cima dela, colando os quadris, beijando o pescoço com avidez, o coração acelerado, a mão firme apertando o quadril da esposa.
Mas ali, no meio daquele furor, veio a imagem.
Aquela boca mais jovem.
Os olhos intensos, assustados.
O bilhete.
O jeito como Valentina baixava os olhos.
Como corava.
Como fugia.
E cada vez que o rosto dela surgia na mente, Verena apertava com mais força. A mão que subia entre as coxas da Silvia avançava com urgência. Os beijos se tornavam mais desesperados, o quadril se movia mais rápido. Ela queria afogar aquilo. Calar aquela imagem. Apagar.
Silvia gemia, puxava o lençol com força, jogando a cabeça pra trás.
— Vem logo... — murmurou. — Me leva...
Mas Verena já não ouvia.
Os olhos fechados com força, a respiração acelerada. Ela beijava com tudo, o pescoço, os ombros, os lábios. Queria fugir. Esquecer. Até que — sem perceber, sem pensar — soltou no meio de um sussurro rouco, com a boca ainda encostada no queixo da esposa:
— Valentina...
O mundo congelou.
Silvia travou de imediato. As pernas travaram ao redor do corpo da esposa. As mãos que estavam nos cabelos da Verena empurraram com força o peito dela.
— O quê?
Verena abriu os olhos, confusa, tentando entender o que acontecia.
— O quê? — Silvia repetiu, empurrando-a levemente. — Você falou... Valentina?
Verena ficou em silêncio. O rosto perdeu o calor de segundos antes. O olhar se perdeu como quem voltava à realidade sem querer.
— Silvia... eu não— não foi... — tentou se explicar, engolindo em seco. A mão que apertava o quadril agora tremia.
— Você tava me tocando! — Silvia se ajeitava, ajeitando novamente a blusa, a voz rouca entre raiva e incredulidade. — E falou o nome de outra mulher?! Valentina, Verena?! Quem é Valentina?
Verena esfregou o rosto com as duas mãos. O nome ainda ecoava dentro dela como um soco.
— Eu não... Silvia. Eu não falei nome de ninguém! Eu tô bêbada. Cansada... não tem nada a ver. Você entendeu uma coisa, mas eu...
Silvia se afastou, ainda em pé, tentando controlar a respiração.
— Eu não tô acreditando nisso.
Ela olhou para a esposa, como se buscasse uma explicação nos olhos dela. Mas tudo o que viu foi confusão, culpa e uma vergonha mal disfarçada.
Verena tentou se aproximar, mas Silvia ergueu a mão:
— Não. Eu... não sei nem o que pensar agora.
E saiu, indo pro banheiro, batendo a porta com força, mas deixando um silêncio pesado para trás. Verena ficou ali, sentada no meio da cama, o peito ofegante. As mãos ainda tremendo. Observava o lençol bagunçado, o calor ainda ali, mas o olhar estava perdido, apático. O nome ainda vibrava nos lábios dela. Valentina.
Apartamento de Verena e Silvia – Manhã seguinte, por volta das 8h
O sol entrava devagar pelas frestas da persiana do quarto de visitas, iluminando de leve o rosto de Silvia, que despertou com uma sensação desconfortável no peito. Seus olhos se abriram devagar, pesados da bebida e do sono picotado. Por um momento, ela quase esqueceu onde estava. Mas bastou virar a cabeça e ver o criado-mudo vazio e a parede cinza claro pra se lembrar de tudo.
Valentina.
Ela se sentou na cama, vestida com uma blusa de alcinha e o cabelo meio desgrenhado. Respirou fundo.
— Você só pode estar brincando comigo… — murmurou pra si mesma, com a voz rouca.
Passou as mãos pelo rosto, tentando organizar os pensamentos. Não sabia o que pensar. “Foi só um nome... certo? Podia ser um erro. Podia...” — mas sabia que não era tão simples assim. Silvia conhecia a esposa, sabia quando ela estava fugindo de alguma coisa. E o nome saiu num momento em que ninguém fingia nada. Não tinha desculpa que explicasse tão fácil.
Levantou, foi até o banheiro do corredor e lavou o rosto com água fria. Na pia, ainda havia restos da maquiagem borrada. Encarou a própria imagem no espelho com certa irritação.
— Eu devia ter perguntado direito... devia ter feito ela falar.
Seguiu pra cozinha devagar. O cheiro de café já invadia o ar, misturado com o som abafado de folhas sendo folheadas. Quando entrou na cozinha, encontrou Verena sentada à mesa, com os cabelos soltos, uma camisa preta de algodão e uma cara de quem tinha dormido mal. Um copo com água com gás e limão do lado do café — a clássica tentativa de desinchar.
Silvia parou na porta, só observando.
Verena sentiu o olhar. Levantou os olhos devagar, com a expressão quase neutra, mas os olhos… estavam tentando prever a tempestade.
— Bom dia — disse, com a voz seca, tensa.
— Se você acha que isso é “bom”, então tá — Silvia respondeu, cruzando os braços.
Verena largou a caneta que tinha na mão.
— Silvia… — começou, mas logo parou. — Eu… ontem… eu tava bêbada. Eu nem sei o que...
— Nem sabe o quê? — interrompeu, com uma risada irônica. — Nem sabe por que falou o nome de outra mulher? Ou nem sabe quem é Valentina?
Verena respirou fundo, abaixando os olhos. Tentou buscar a calma.
— Eu não sei de onde isso veio. De verdade. Foi um erro. Um… lapso. Eu juro.
Silvia apertou os lábios e balançou a cabeça devagar, descrente.
— E eu sou idiota, né? Acreditando que as coisas estavam melhorando.
O silêncio tomou conta por um instante. Verena quis levantar, abraçar, pedir desculpas com o corpo — mas algo nela não conseguia. Era como se o nome ainda ecoasse dentro dela, preso na garganta.
— Silvia. Eu sei que... eu errei feio. Mas eu nem sei o que tava dizendo. Por favor, nós estamos indo bem. Me diz o que tenho que fazer, eu faço qualquer coisa — arriscou.
Silvia riu de novo, mas dessa vez sem humor.
— Eu quero que você me diga quem é Valentina, Verena. É só isso.
Verena engoliu seco.
— Ninguém.
— Ninguém? — Silvia inclinou levemente a cabeça, como se tentasse estudar a esposa. — Então ótimo. Não deve ser tão difícil esquecer, né?
E saiu da cozinha sem esperar resposta.
Gabinete de Verena – ALESP, manhã da segunda-feira
O ar-condicionado zumbia fraco. Verena estava com o blazer pendurado na cadeira, os olhos fixos em um documento que não fazia mais sentido. Já tinha lido três vezes a mesma linha sem conseguir processar.
Rafaela entrou sem bater, segurando um copo de café.
— Bom dia, chefe do caos — disse com aquele sorrisinho debochado de quem já sabe que algo deu errado.
Verena mal levantou os olhos.
— Que energia é essa numa segunda-feira?
— Ué, queria o quê? Depois daquela festa? Foi quente, hein. E aí, como terminou a noite, hum?
Verena forçou um sorriso.
— Rafa…
— Só tô perguntando porque… né… você saiu com a Silvinha parecendo que ia acabar com o estoque de preservativo do mundo. — E riu sozinha.
Mas Verena não acompanhou.
— Que foi? Brigaram? — Rafa perguntou, estranhando o silêncio.
Verena não respondeu. Passou a mão no rosto, respirou fundo.
— Só... não quero falar sobre isso.
Rafa fez uma careta, mas entendeu o recado.
— Tá. Mas ó… o clima tá tenso até no café lá de baixo. Aquela matéria da corrupção da merenda escolar mexeu com geral, viu? Teve gente que nem apareceu hoje.
Verena fechou os olhos por um segundo.
“Essa porr* ainda vai respingar em mim…”
— Vou subir o relatório novo da semana, tá? E o Eduardo já tá te esperando pra reunião de revisão de pauta.
Verena suspirou, exausta.
— Manda ele esperar. Preciso respirar primeiro.
Rafa arqueou a sobrancelha. Apenas levantou as mãos e saiu devagar, em silêncio.
Casa da Valentina – Ipiranga – Segunda-feira, 6h45 da manhã
A luz fraca da manhã entrava pela janela com cortina azul clara do quarto de Valentina, misturando-se ao som do despertador do celular, que tocava baixinho a música instrumental que ela usava para tentar não odiar as manhãs. Ela estava encolhida no canto da cama, com o cobertor só até a cintura e o uniforme da escola já pendurado na cadeira de madeira ao lado da escrivaninha.
Aos poucos, a casa começava a acordar. Da cozinha, vinham os sons familiares: a torneira abrindo, o barulho da frigideira no fogão e a voz da mãe dela, Ana Paula, cantarolando um hino evangélico com a voz ainda um pouco rouca de sono.
— Valen, já acordou, filha? — ela gritou, sem ver, de onde estava.
— Acordei, mãe… tô levantando — respondeu com aquela voz arrastada de quem ainda tava em transe com o travesseiro.
Valentina se arrastou até o banheiro, prendeu o cabelo num coque meio torto, escovou os dentes com os olhos ainda semiabertos e depois se olhou no espelho por um segundo. Respirou fundo. Os olhos ainda tinham um vestígio de inchaço — não chorava, mas também não dormia direito há dias.
Quando voltou pro quarto, pegou o celular e viu uma notificação de mensagem no grupo do estágio. Era só um lembrete bobo sobre horário, mas bastou ver o nome do grupo pra pensar nela. Verena. O coração deu aquela pancadinha leve, incômoda, como se dissesse: Você precisa parar com isso.
Ela se vestiu devagar, pegou o caderno, a mochila já semi-pronta e foi pra cozinha. Isadora já estava à mesa tomando Nescau com pão na chapa.
— Bom dia, Zaza — disse, bagunçando o cabelo da menina.
— Bom dia, mas não bagunça meu cabelo! — reclamou, ajeitando o coque com uma mão e com a outra segurando a caneca com a boca de leite.
Carlos, já estava saindo, colocando a marmita na mochila com estampa de tecido jeans. Beijou a testa das filhas, um selinho na esposa e deu aquele aviso padrão de toda manhã:
— Se cuidem, tá bom? Valentina, nada de andar com o celular na mão por aí.
— Tá, pai… eu sei — ela sorriu, já pegando o pão pra comer no caminho.
— E não esquece que amanhã tem o culto à noite, hein — gritou a mãe, colocando um pano de prato no ombro.
Valentina respondeu só com um “tá” abafado, já comendo e pegando o fone do bolso da mochila.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro – 9h15 da manhã
Laboratório de Informática – aula de tecnologia e sociedade
O som dos computadores sendo ligados preenchia a sala. O ventilador de teto fazia aquele barulho intermitente e irritante de sempre, como se estivesse se desfazendo a cada giro. A professora digitava uma senha no computador da frente e já projetava na lousa o tema da aula: "A influência da tecnologia na formação de opinião pública."
Valentina estava sentada na segunda fileira, ao lado de Carol, que ficava à sua esquerda. Os computadores eram antigos, monitores grandes, gabinetes com fitinhas de cor diferentes pra identificar. O dela tinha uma laranja.
A aula começou, mas a professora falava com aquele tom monocórdio e robótico, com pausas longas demais entre as frases. Valentina tentou prestar atenção, mas a mente já estava longe, muito antes da primeira aba ser aberta.
Com o navegador já iniciado, ela digitou o nome da deputada quase no automático: Verena Castilho discurso completo ALESP. O link apareceu com uma foto dela em destaque, de blazer escuro e olhos fixos na tribuna, falando com aquele ar que sempre fazia Valentina prender a respiração.
Clicou. O vídeo começou. Sem som, por segurança. Valentina ficou olhando só pra imagem, o rosto dela se mexendo enquanto falava. Os olhos vibrantes, os gestos firmes. Ela apoiou o queixo na mão esquerda, fingindo que estava lendo, mas não conseguia parar de olhar.
Foi então que Carol, ao lado, espiou e soltou um sussurro em falso choque:
— Que isso, amiga?! Tá pesquisando a foto da chefe agora? — disse com um sorrisinho sacana e um leve cutucão com o cotovelo.
Valentina travou. Minimizou a aba no reflexo, sem nem respirar. Deu uma risada curta e desconfortável, tentando disfarçar:
— Aff, Carol… é só uma pesquisa boba… nada demais. Vai, presta atenção na aula.
— Tô prestando, ué! — sussurrou rindo. — Mas quem não tá é você, né? A cabeça foi pra Alesp e nem avisou.
Valentina fingiu uma cara de reprovação, mas o rubor no rosto denunciava tudo.
— Ai, cala a boca.
— Juro que se você começar a imprimir foto dela e colar no caderno eu vou rir tanto… — sussurrou Carol, abrindo o Word com o exercício da aula.
Valentina tentou sorrir, mas sentia o estômago dar voltas. A imagem de Verena no vídeo ainda estava viva ali no canto da tela, congelada. Mesmo minimizada, parecia encarar de volta.
Ela abriu o Word também, mas tudo que conseguia pensar era:
"E se ela soubesse que eu tava vendo isso agora?"
Assembleia Legislativa de São Paulo – Sala de apoio dos estagiários – 13h10 da tarde
Valentina entrou no prédio com o crachá pendurado no pescoço e o fone enrolado no dedo. O clima estava abafado e o corredor da Alesp parecia ainda mais comprido do que o normal. As luzes fluorescentes zumbiam discretamente sobre a cabeça dela, e os saltinhos leves da sua sapatilha batiam ritmados no piso.
Ela andava com aquela calma que quase ninguém mais ali tinha. Um jeito contido, discreto, mas com uma elegância meio involuntária — como se o mundo todo pudesse estar correndo, mas ela ainda tivesse tempo de respirar.
— Boa tarde, Valentina — cumprimentou um dos seguranças com quem ela já trocava bom-dia todo dia.
— Boa tarde! — respondeu com um sorriso leve, enquanto ajeitava a mochila no ombro e seguia pro elevador.
Poucos minutos depois, já estava na sala de apoio, onde os estagiários se espalhavam entre as mesas e cadeiras com rodinhas, algumas mochilas jogadas no chão e garrafinhas d'água personalizadas ocupando quase todo o espaço disponível.
Valentina sentou-se em sua estação, ao lado da estante de pastas e próximo à janela parcialmente aberta. Tirou o fichário, ligou o computador, digitou a senha e respirou fundo. Mais um dia.
Passaram-se só uns três minutos até Léo, com aquele jeito espalhafatoso e divertido, empurrar a cadeira dele com força pra perto da dela, deslizando com gosto pelo chão de vinil.
— Amiga... — começou com o olhar malicioso, como quem já preparava o caos.
Valentina nem olhou, só riu de canto, balançando a cabeça devagar.
— O que foi agora, Léo? — perguntou, já esperando alguma besteira.
Ele virou o celular dele na direção dela e sussurrou animado:
— Você não vai acreditar no que eu achei! Olha isso aqui.
Na tela, uma foto. Verena, camisa branca levemente amarrotada, com os dois primeiros botões abertos. A gravata azul pendia frouxa no pescoço, e ela segurava uma garrafinha de Heineken com uma mão enquanto a outra estava firme na cintura da esposa. Silvia usava uma saia preta colado ao corpo, os cabelos soltos, divididos entre os ombros e um sorriso meio enviesado de quem não queria parecer afetada, mas estava — completamente. Do lado delas, Rafaela com uma long neck na mão e uma pose debochada, e outras três mulheres que Valentina nem reconheceu, nem tentou.
— Uma amiga de uma amiga da minha faculdade tava na festa e postou no story, acredita?! E eu? Dei aquele print maroto, claro. Vontade de jogar essa foto no grupo, mas e o medo de dar b.o.?
Valentina forçou um sorriso, mas o estômago revirou. Verena estava sorrindo, descontraída, com aquele charme que parecia impossível de desligar. O cabelo solto, a pose quase descuidada, mas calculadamente linda. Como pode alguém ser tão linda, pensou, e logo se odiou por ter pensado.
Enquanto encarava a imagem, o rosto de Verena parecia ainda mais próximo, mais real. O jeito que segurava a garrafa, o modo como encostava na esposa — quantos beijos, quantas risadas... quantos abraços iguais aos que ela sonhava em receber? O coração disparou. As mãos suaram.
— Tá pálida, amiga — Léo comentou, encarando ela de canto. — Gente, a Valentina bugou.
— Não bugei não… só tava olhando— ela tentou, franzindo os olhos pro aparelho como se estivesse observando a arte moderna mais complexa da história da fotografia.
— Aham. E eu sou formado em Oxford. Valentina, essa é a típica cara de quem queria ser a garrafinha de Heineken ali, viu? — provocou, segurando o riso.
Ela tapou o rosto com as mãos, o vermelho das bochechas já entregando tudo.
— Ai, Léo, você é insuportável.
— Mas fala aí… se ela desse mole pra mim, eu pegava fácil. Só que como ela não gosta de homem… — fez uma careta dramática e levantou os braços — sobrou pra você, amiga.
— Cala a boca! — riu nervosa, empurrando ele de leve com o ombro.
Valentina mordeu o lábio e voltou os olhos pra tela do computador. A aba da planilha já estava aberta, mas nada fazia sentido agora. Na cabeça, só aquela imagem.
Ela nunca vai me ver assim. Nunca. E eu preciso parar.
Respirou fundo e se forçou a digitar qualquer coisa. Mas as letras se embaralhavam com o som imaginário do riso da deputada, que ainda vibrava na memória.
Casa de Verena e Silvia – Início da noite – 18h40
A porta do apartamento se fechou atrás de Verena com um estalo seco.
Ela soltou a bolsa sobre o encosto do sofá com menos cuidado do que o habitual. O blazer caiu junto, e o som abafado do tecido no couro ecoou na sala silenciosa.
Silenciosa demais.
Deu três passos e parou. O olhar passeou pelo ambiente escuro, só iluminado pelas luzes tênues da rua que atravessavam as frestas da persiana. Viu a bolsa da esposa encostada no aparador da entrada, e o casaco dela jogado sobre uma das cadeiras da mesa de jantar.
— Silvia...? — chamou, num tom baixo, sem resposta.
A cozinha estava apagada. A geladeira fazia um zumbido constante, solitário. A pia limpa, sem nenhum copo. Nenhum som de água, de passos, de televisão ligada como era comum quando a esposa estava em casa. Nada.
Verena franziu o cenho, os passos agora mais apressados em direção ao corredor. O coração bateu um pouco mais forte. Ela tá em casa, mas não responde?
Parou diante da porta do quarto delas e girou a maçaneta.
Trancada.
Girou outra vez. Trancada.
— Silvia? — chamou, já surpresa. A voz mais firme.
Bateu uma vez. Depois duas.
Silvia ouviu do outro lado, mas permaneceu impassível, encostada na cabeceira da cama com um livro aberto sobre o colo. O cabelo solto, o moletom largo, o cobertor puxado até a cintura. A luz do abajur projetava uma sombra amarelada nas paredes. O silêncio era proposital. O friozinho da noite só servia pra deixá-la ainda mais reclusa.
Ela percebeu. Ela entendeu, mesmo sem entender.
Do lado de fora, Verena já batia com mais força.
— Silvia? Que que tá acontecendo, amor? — a voz embargada. — Tá tudo bem?
Pela primeira vez, Silvia respondeu. A voz saiu calma, mas levemente cortante.
— Tô bem, Verena.
A deputada encostou a testa na porta. Respirou fundo. De olhos fechados, sussurrou mais uma vez:
— Abre a porta pra mim, vai... só pra gente conversar.
Lá dentro, Silvia manteve o olhar firme na página do livro, mas não lia mais nada. A lembrança ainda queimava na memória. A pele arrepiava só de lembrar o som do nome, aquele nome, escapando da boca da esposa.
Valentina.
— Eu quero ficar sozinha! — Respondeu, mais baixo.
Verena fechou os olhos com força, engolindo seco. A culpa era um peso nos ombros, e aquele silêncio do outro lado da porta parecia gritar. Não se moveu. Permaneceu diante da porta, cabeça baixa, os dedos agora apoiados contra o batente. Bateu de leve outra vez, a voz saindo mais baixa, quase em súplica.
— Pelo menos... deixa eu pegar uma roupa. Só quero tomar banho e... — hesitou — tentar dormir. Eu tô exausta.
Do outro lado, Silvia cerrou os olhos, respirando fundo. O coração acelerado, mesmo tentando parecer inabalável. "Não vou abrir. Não vou olhar. Ela tem que sentir."
Fechou o livro de forma seca e se levantou, andando até o guarda-roupa. Puxou a porta com força e enfiou a mão na primeira prateleira que viu. Pegou uma camiseta velha da própria Verena e uma calça de moletom surrada — uma das favoritas dela. A calcinha parecia queimar sua mão, enrolou na blusa. Silvia olhou para a peça por um segundo a mais do que queria, e odiou o fato de ainda se importar.
Com a roupa nas mãos, foi até a porta.
Verena, do lado de fora, encostava os dois braços no batente, cabisbaixa.
A maçaneta girou com firmeza, e antes que ela pudesse sequer esboçar uma palavra, Silvia abriu só o suficiente para enfiar o braço e jogar as roupas contra o peito da esposa.
— Aqui. É o suficiente pra você tomar banho — disse, com a voz baixa, controlada, sem sequer encará-la diretamente.
Verena segurou as peças meio sem saber o que fazer. Quando a porta começou a fechar, ela esticou o braço com um impulso, tocando de leve a beirada, impedindo que fechasse de vez.
— Sil... por favor... a gente pode só conversar? — disse, com a voz doce, carregada de culpa, mas ainda com aquele charme que era quase automático — Eu sou péssima com palavras, mas você me conhece. E sabe que... se eu pudesse apagar tudo, eu já teria feito isso. Desde... desde o segundo em que eu... — se calou, abaixando os olhos — ...em que eu errei com você.
Silvia apertou os olhos. Um segundo. Dois. O perfume da esposa estava ali, grudado nas roupas que ela mesma escolhera. A voz dela ainda a estremecia. Mas não bastava. Não ainda.
— Vai tomar seu banho, Verena. — respondeu apenas, mais firme agora.
E então fechou a porta devagar, mas com decisão.
Verena ficou parada ali, encostando a testa na madeira de novo, o cheiro das próprias roupas no peito, os ombros pesando como se tivesse acabado de sair de uma luta.
E perder.
Casa da Valentina – Final de tarde
O céu começava a escurecer, tingindo de laranja as paredes modestas do quarto. Uma brisa leve entrava pela janela entreaberta, fazendo a cortina balançar suavemente. Valentina estava deitada de lado em sua cama de solteiro, dividindo o colchão apertado com Carol, que tinha acabado de chegar depois do estágio da amiga. As duas riam baixinho, quase em sussurros, tentando evitar que os risos chegassem até a cozinha, onde Isadora ajudava Ana Paula com o jantar.
— Ó, esse aqui é o Gustavo, da sala do fundão do colégio estadual ali da Vila. Você acredita que ele me mandou um “oi” com emoji de fogo? — Carol exibia a tela do celular e dava risada. — Tô quase agarrando, miga, só falta ele pedir a cor da minha calcinha!
Valentina fez uma careta, apertando os olhos, como se aquilo fosse escandaloso demais pra processar.
— Carol! Credo! — levou a mão à testa, fingindo desespero.
— Ai, ai, a puritana de Itaquera... — Carol provocou, dando um empurrãozinho no ombro da amiga. — Tá, mas e você? Fala aí! Nenhum desses carinhas te dá vontade? Nem um selinho?
Valentina revirou os olhos, se encolhendo no travesseiro.
— Claro que não! Que pergunta, Carol... eu hein...
— Ahhh... — Carol fez uma pausa, o olhar ficando mais esperto, quase como quem tramava algo. — Então quer dizer que você é imune ao charme de todos os adolescentes bobões da zona leste?
Valentina só deu de ombros, mas o silêncio entre as duas entregou mais do que mil palavras.
Carol, que não era nada boba, desbloqueou o celular de novo. Fingiu procurar algo nas redes, deslizando com o polegar, até parar em uma foto específica. Sorriu de canto.
— Tá bom. Então e essa pessoa aqui? — virou o celular de lado, exibindo a imagem de Verena Castilho no meio de um discurso, microfone na mão, blazer claro impecável, os cabelos soltos e com aquele olhar determinado que fazia todo mundo prestar atenção. Era a mesma imagem que Carol já tinha visto antes, numa daquelas escapadas de atenção durante as aulas.
Valentina arregalou os olhos. O choque foi instantâneo. As bochechas, que já tinham um leve rubor natural, ficaram rubras de vez. Engoliu em seco e desviou o olhar tão rápido que foi praticamente uma confissão muda.
— Valentina... — Carol sentou na cama num pulo, segurando a risada. — Nãããão, miga, eu não acredito no que eu tô vendo. Eu sabia! Sabia! Eu vi você pesquisando ela no computador, vi o coraçãozinho com o V no caderno de português! EU NÃO TÔ LOUCA!
Valentina levou o travesseiro ao rosto, tentando se esconder.
— CAROL, cala a boca! Não é nada disso! — murmurou abafado.
— Aham. Não é nada disso e você tá parecendo um pimentão — provocou, rindo, com os olhos brilhando de diversão. — Gente, amiga, você tá apaixonadinha pela sua chefe! Eu vou morrer!
— Eu não tô apaixonadinha por ninguém! — rebateu Valentina, se sentando rápido, tentando manter alguma dignidade. — E ela nem é minha chefe! Ela... ela é só a deputada responsável pelo setor... é diferente...
Carol cruzou os braços, com aquela expressão de quem já tinha vencido a discussão.
— Sei. A deputada responsável pelo seu coraçãozinho batendo a mil por hora, isso sim. Valentina, na moral... isso é muito sério.
Valen abaixou os olhos, mordendo de leve o lábio inferior.
— Eu sei... — sussurrou, pela primeira vez parecendo não estar apenas desconversando.
Carol parou de rir. De repente, a amiga parecia tão pequena e vulnerável naquela cama apertada. Encostou o ombro no dela.
— Ô, Valen... eu tô zoando, mas... cê sabe que pode confiar em mim, né?
Valentina assentiu, sem conseguir falar.
O silêncio entre as duas ficou pesado por um instante, mas confortável. E quando Ana Paula chamou da cozinha dizendo que a janta estava quase pronta, as duas se entreolharam e sorriram como quem voltava de uma viagem longa.
— Bora comer, antes que a Isa apareça aqui dizendo que raspou a panela de arroz. — Carol puxou Valentina pela mão, e as duas levantaram rindo.
Gabinete de Verena – 14h43
Verena revisava uma nota técnica quando ouviu passos apressados e a porta da sua sala sendo aberta sem aviso. Rafaela entrou com o celular numa mão e um envelope pardo na outra.
— Adivinha quem tá viralizando?
Verena não tirou os olhos do monitor.
— Alguém do PL dançando “Vai Malandra” na comissão?
— Não, minha linda. Você.
Silêncio.
Rafaela girou o celular, mostrando o vídeo. Verena reconheceu o cenário imediatamente: a festa de despedida de solteira da Luana. Totalmente privada. A gravação era curta, tremida, mas nítida o suficiente pra identificar cada rosto.
Ela mesma, com a gravata azul frouxa no pescoço, a camisa parcialmente aberta, cabelos soltos, rindo enquanto abraçava Silvia pela cintura. As duas dançavam, se beijavam. E ao fundo, Rafaela também aparecia, segurando uma taça e fazendo uma cara debochada. A legenda no repost de um perfil de direita evangélica dizia:
“Deputada do povo? Essa é a moral da esquerda! Quem gravou tem consciência. Exigimos respeito!”
Verena largou a caneta. A expressão endureceu.
— Quem postou isso?
— Um perfil conservador famoso, mas quem filmou ainda é um mistério. Eu tô tentando puxar quem foi, mas alguém de dentro daquela festa te ferrou, Verena. E não foi sem querer.
— Aquilo era uma festa fechada! — estourou, levantando. — Só tinha mulher ali. Gente nossa. Não era pra ter câmera, não era pra ter...
Rafaela ergueu o envelope pardo.
— Então segura mais essa.
Verena pegou, já exausta, e abriu. Lá dentro, documentos impressos. Nenhuma acusação direta, mas cópias de relatórios, movimentações financeiras, CNPJs suspeitos. Tudo alinhado de um jeito meticuloso. Como quem sabe o que procurar. A ONG de fachada. A tal que elas criaram anos atrás pra canalizar verba pra educação alternativa.
Verena sentiu o estômago revirar.
— Isso aqui... isso aqui não prova nada.
— Mas mostra que alguém tá olhando. E de muito perto.
— Quem trouxe?
— Ninguém sabe. Deixaram na portaria com um envelope interno de “urgente para a deputada”. A segurança deixou subir.
Verena lançou um olhar furioso.
— Você não conseguiu descobrir quem entregou?
— Eu perguntei! Mas ninguém viu quem foi. Disseram que tava no balcão, como se alguém tivesse deixado e ido embora.
Verena se aproximou com um passo firme.
— A gente montou esse esquema juntas, Rafa. Eu preciso saber quando tem alguém cavando, entendeu?
Rafaela ergueu o queixo, firme.
— E eu preciso que você me conte quando alguma coisa muda no jogo. Porque você tá diferente. Desde o dia do surto. Desde que a estagiária chegou.
Silêncio tenso.
Verena fechou o envelope com mais força do que precisava.
— Eu tô cansada, Rafa. E cercada de gente burra ou canalha. E não tenho tempo pra delírios emocionais de ninguém, nem os meus, nem os seus.
— Jura? — Rafaela cruzou os braços. — Então finge melhor, porque tá na cara que você tá caindo. E quando você cair... eu só espero que não me leve junto.
Verena encarou por longos segundos, depois voltou à mesa, pegando uma caneta e o celular. Seu queixo tremia de leve. Mas ela não respondeu.
Sala de aula – Escola Estadual, por volta das 9h da manhã
O ambiente tinha aquele zumbido comum de manhãs de sexta-feira: janelas semiabertas deixando entrar um ar fresco tímido, ventiladores fazendo barulho sem refrescar ninguém, alunos falando baixo entre si enquanto o professor passava orientações. Na lousa, tópicos sobre cidadania digital. Era aula de Sociologia, mas a proposta do dia era uma pesquisa em dupla no laboratório de informática.
Valentina estava com o olhar fixo na tela do computador, os dedos hesitantes no teclado. A pesquisa já estava feita, mas ela fingia que ainda procurava dados — qualquer coisa pra não falar muito. Sentia o rosto quente desde que chegara. Ela sabia o que era. Já tinha visto. Tinha assistido ao vídeo pelo menos três vezes no grupo do estágio, antes de bloqueá-lo. As imagens não saíam da mente. A gravata frouxa. O jeito como Verena segurava Silvia pela cintura. As mãos subindo pela blusa. Os beijos lentos. A naturalidade.
Ela engoliu em seco.
Carol, sentada ao lado, de chinelo no pé e cabelo preso num coque improvisado, digitava devagar, mastigando um chiclete. Mas de vez em quando, olhava de lado. Já tinha percebido o jeito calado da amiga, e conhecia aquele olhar meio perdido que ela fazia quando estava remoendo alguma coisa.
— Fala, deputadinha.
Valentina tentou sorrir.
— Você não cansa né...
A amiga olhou discretamente a tela do computador.
— Hmmm... e aí, já acabamos?
— Tô quase terminando.
— Você viu o vídeo, né?
Valentina parou. Um segundo. Dois.
— Qual?
Carol bufou.
— Ah, Valen... fofa, mas péssima atriz. Tá todo mundo vendo. “Beijaço lésbico da deputada comunista”, ou algo assim. Tá viralizando no Instagram e no X. Minha coordenadora quase engasgou com o café.
Valentina não soube o que dizer.
Carol puxou o celular do bolso e virou a tela.
— E aí? Te afeta ou não?
Era a mesma cena. A mesma gravata. O mesmo toque. A mesma Verena.
Valentina sentiu as bochechas arderem. O estômago embrulhado.
— Não é nada demais... — tentou dizer. — Só um vídeo bobo.
Carol piscou devagar. Sem tirar o sorriso de canto.
— Valen... é sobre a Silvia ou sobre ela?
Valentina desviou o olhar, a garganta seca.
Carol se inclinou, mais baixa.
— Você gosta dela, né?
Valentina tentou negar. As palavras não saíam. Apenas fechou os olhos por um momento e, num fio de voz:
— Não tem nada a ver.
Carol ficou séria.
— Amiga, você pode me contar o que quiser, eu nunca vou te julgar.
Valentina assentiu, muito devagar. Sentiu a garganta fechar, queria contar, queria chorar. E sobretudo, queria não ter visto aquele vídeo.
Carol apertou sua mão discretamente debaixo da mesa.
— Tá tudo bem Valen. Eu sempre vou tá aqui.
Apartamento da Verena – Início da noite, cerca de 18h40
Verena destrancou a porta com menos pressa do que de costume. O corpo cansado, os ombros tensos, e a mente latejando por causa do dossiê, da discussão com Rafaela, do vídeo vazado e… dela. Da garota que não saía mais da sua cabeça.
Entrou, jogando a bolsa sobre a mesinha próxima ao sofá, e só então notou um detalhe que a pegou desprevenida.
A luz da cozinha estava acesa.
Ficou parada por um momento, olhando a claridade tímida escapando da porta semiaberta. Nos últimos dias, já havia se acostumado a entrar e encontrar a casa no escuro, em silêncio — mesmo com Silvia lá dentro.
Seguiu os passos com cuidado, como se pisasse num território desconhecido.
Cozinha
Silvia estava ali, de costas, mexendo algo numa panela. O cabelo preso num coque bagunçado, vestia um moletom simples e calça de pijama. Os movimentos eram rápidos, quase mecânicos. Tentava terminar tudo antes de ter que encarar a mulher que, há poucos meses, ela jurava amar acima de qualquer coisa.
Verena parou no batente da porta, sem saber o que dizer. O cheiro de alho e cebola fritando se espalhava, mas o ambiente era gelado.
— Você tá fazendo janta? — arriscou, com um sorriso cansado.
Silvia nem se virou. Continuou mexendo a panela com uma colher de pau.
— Tô fazendo a minha janta.
A resposta veio seca, afiada como lâmina.
Verena apertou os lábios e respirou fundo. Pousou uma mão no batente, tentando manter o tom de voz calmo.
— Eu cheguei mais cedo hoje. Pensei em descansar um pouco… — seu olhar caiu, incerto — No quarto de visitas.
Silvia desligou o fogo, sem responder. Pegou um prato e começou a se servir.
O silêncio era mais violento do que qualquer grito.
Verena observava. Tentava entender como tinham chegado ali, tão longe uma da outra, tão distantes num espaço tão pequeno. Fechou os olhos por um segundo. Respirou fundo. Não queria brigar. Não agora.
— Eu… preciso te falar uma coisa. — começou, com a voz baixa, meio hesitante.
Silvia soltou uma risada seca, ainda organizando a comida no prato.
— Se for sobre o vídeo, eu já sei.
A deputada mordeu a parte interna da bochecha.
— Isso… também te afetou, eu imagino.
Agora Silvia se virou. Com o prato na mão, os olhos úmidos, mas firmes. Havia um fogo ali dentro — e ele queimava.
— Você imagina? — perguntou, com ironia amarga. — Verena, eu sou sua esposa. Não sua sombra. Acha mesmo que um vídeo nosso se espalhar feito fofoca de subcelebridade não ia me afetar?
A deputada abaixou o olhar.
Silvia continuou:
— Sabe o que foi pior? Não foi o beijo. Não foi a exposição. Foi ver você naquela festa como se eu não existisse. Com aquele olhar vazio, se enfiando em mais uma garrafa de cerveja, sorrindo pra foto como se estivesse... sendo obrigada a estar ali pra me agradar. — engoliu seco. — Acha que não percebi? Que não senti o seu corpo ausente no meu? Que eu não reparei que, mesmo com a sua mão na minha cintura, você tava... longe?
Verena inspirou fundo, a garganta seca. O maxilar tenso.
— Você não sabe o que tá falando...
— Eu sei exatamente o que eu vi. — rebateu Silvia, mais alto agora. — Eu te conheço, Verena. E você não tava ali comigo. E quer saber? Isso dói mais do que qualquer escândalo.
A deputada apertou os punhos. A raiva e a culpa se embolando num nó quase insuportável.
Silvia se aproximou, a voz falhando de emoção.
— Eu me humilhei tentando fazer você olhar pra mim. Tentei ignorar a forma como você se calava, como me beijava com pressa, como evitava meus olhos... e mesmo assim, eu fiquei. Porque eu te amo. Mas você… — balançou a cabeça, rindo sem humor — Você nem sabe mais o que sente, né?
Silvia deu um passo pra frente.
— E aí, depois de tudo isso, depois de me ver forçando um carinho, forçando um toque, me doando inteira pra tentar te resgatar… — os olhos marejados agora queimavam — Você ainda teve a cara de pau de dizer o nome de outra mulher na nossa cama.
Verena gelou.
Silvia cravou o olhar.
— Quem é Valentina?
A pergunta ficou no ar como uma sentença.
— A quanto tempo eu sou a idiota aqui dentro? A mulher que você beija pra manter as aparências, enquanto pensa em outra? — a voz dela agora era alta, ferida, desesperada. — Quantas vezes, Verena? Quantas vezes eu dormi achando que tinha você, quando na verdade já tava dividindo a cama com outra?
Verena recuou um passo. Os ombros contraídos, a boca entreaberta, sem ar. A vergonha e a culpa se misturavam a um ódio fervente de si mesma — e da forma como Silvia colocava tudo pra fora.
— Silvia, você tá... — tentou se defender, mas a esposa cortou.
— Eu tô o quê? Paranoica? Histeriquinha? Me poupe, Verena! Não sou burra! — Agora os olhos dela brilhavam de raiva. — Você acha que eu não percebo o nervosismo, a distração, os silêncios? Acha mesmo que eu não senti seu corpo travar quando eu te toquei, como se você tivesse culpa?
Verena fechou os olhos com força.
Silvia avançou mais um passo.
— Me diz! Fala a verdade de uma vez! Você tá com ela? Quem é essa mulher Verena, tenha a decência de pelo menos assumir.
— CHEGA! — o grito rasgou o ar, alto, bruto, fazendo Silvia dar um passo pra trás, assustada.
A colher caiu no chão. O prato quase escorregou das mãos.
Verena respirava com dificuldade, o peito subindo e descendo rápido. A mão ainda no batente da porta, os olhos fixos no chão.
— Eu já tô no limite, Silvia. Eu… tô tentando manter tudo de pé. O gabinete, a minha imagem, as cobranças, a pressão, e agora esse maldito vídeo, essas merd*s todas acontecendo! E você ainda quer que eu finja que tá tudo bem? Eu já expliquei, não existe mulher nenhuma, você entendeu errado alguma coisa que eu falei. Eu tava... bêbada.
Silvia o olhava, em silêncio. O susto misturado à mágoa.
— Eu não quero que você finja nada. Eu só queria que, uma vez na vida, você olhasse pra mim de verdade.
Verena piscou rápido. O silêncio voltou a pesar. Ela virou o rosto, sem saber o que responder, sem saber nem quem era direito naquele momento.
Silvia então saiu da cozinha, levando o prato, sem dizer mais nada, deixando Verena ali, encostada na parede. Perdida.
Fim do capítulo
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Em: 16/05/2025
Quando tudo parece desmoronar diante de nossos olhos. Tudo pare escorregar de nós
Fala, ação, sentimento...
As mentiras não perduram, muitas vezes o que persiste é o apego, a doença, o vazio.
Disso nossos relacionamentos estão cheios...
Fico feliz quando entro aqui no Lettera. Venho direito procurar esse romance.
Nada me deixa maia feliz e cheia de empolgação que um romance bem escrito e desenvolvido. Cheio de drama, romance e uma pitada de proibido.
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Em: 16/05/2025
Quando tudo parece desmoronar diante de nossos olhos. Tudo pare escorregar de nós
Fala, ação, sentimento...
As mentiras não perduram, muitas vezes o que persiste é o apego, a doença, o vazio.
Disso nossos relacionamentos estão cheios...
Fico feliz quando entro aqui no Lettera. Venho direito procurar esse romance.
Nada me deixa maia feliz e cheia de empolgação que um romance bem escrito e desenvolvido. Cheio de drama, romance e uma pitada de proibido.
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Em: 15/05/2025
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Em: 15/05/2025
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Em: 15/05/2025
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Zanja45
Em: 14/05/2025
Autora, o que foi isso que Verena fez? Imperdoável,viu? Chamar a esposa de Valentina? Ela decretou a sentença dela, morte na certa. - Silvia que já havia percebido a ausência dela, mesmo estando presente fisicamente, não podia ter levado um golpe tão baixo, mesmo sem Verena querer. - Olha a culpa foi de Rafa, ela que jogou essa fala que não trocasse os nomes. Kkkkk! Pasma! Meu Deus, estou com peninha de Verena, mas Silvia agiu na razão dela ao dar um chega pra lá em Verena, colocando ela pra dormir no quarto de hóspedes. - Nada de jántinha pra Verena, ela vai ter que se virar pra fazer a dela.
anonimo2405
Em: 17/05/2025
Autora da história
Imperdoável, realmente rsrs. Talvez se ela tivesse falado o nome da Rafa seria menos difícil. Ou não rsrs. Enfim, a Silvia, sinceramente, não sei como ela ainda consegue manter o casamento assim. Na verdade, até dá pra entender, ela ainda ama muito a Verena, se tá sendo correspondida é outra história. Mas deve tá sendo bem difícil pra ela também. Acho que a Verena vai dormir um bom tempo no outro quarto. E vai ter que aprender umas receitas ou comer de delivery rsrs.
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N@ty
Em: 14/05/2025
Quando tudo parece desmoronar diante de nossos olhos. Tudo pare escorregar de nós
Fala, ação, sentimento...
As mentiras não perduram, muitas vezes o que persiste é o apego, a doença, o vazio.
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Fico feliz quando entro aqui no Lettera. Venho direito procurar esse romance.
Nada me deixa maia feliz e cheia de empolgação que um romance bem escrito e desenvolvido. Cheio de drama, romance e uma pitada de proibido.
anonimo2405
Em: 17/05/2025
Autora da história
Oii! Pois é. Quando fica só o apego, fica complicado. As duas partes sabem, mas é difícil sair. Mas acho que deve ser pior ainda quando um lado ainda ama, ainda gosta. Mas as mentiras, de fato, elas sempre aparecem, mais cedo ou mais tarde.
Ah, eu também fico muito feliz por saber que está gostando. É muito gratificante e motivador ler comentários assim. :)
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anonimo2405 Em: 19/10/2025 Autora da história
Oiee, boa noite!
Nossa, nem me fale, ela não merece isso. Gosto muito dela e as vezes fico torcendo pra ela descobrir logo, pra assim ela sair desse casamento e Verena sofrer bastante rsrs. Porque, isso que ela faz é cruel. Ainda mais com uma pessoa como a Silvia.