O Quase Beijo
Final de tarde – Terça-feira Apartamento de Verena e Silvia – Zona Oeste de São Paulo
A terça tinha sido exaustiva para ambas. Silvia passou o dia inteiro no escritório, mergulhada em processos que pareciam não ter fim. Verena, por outro lado, enfrentou um turbilhão no gabinete — pressão de lideranças partidárias, um embate acalorado na comissão de educação, e uma tentativa mal ajustada de se concentrar... que falhou toda vez que o nome “Valentina” lhe cruzava a mente.
Ainda assim, ambas estavam de volta em casa agora, tentando transformar o resto da noite em algo leve. Silvia andava repetindo há semanas que queria muito que Verena fosse com ela à missa noturna de terça-feira. “É só uma horinha, amor… me faz companhia.”
Verena nunca dizia um “não” direto. Dizia “a gente vê”, ou fingia dormir no sofá. Mas naquele dia, talvez pelo cansaço, ou pelo clima estranho que pairava entre elas desde a festa, ela simplesmente disse:
— Tá bom… eu vou.
Silvia sorriu na hora, mas não comentou nada. Apenas levantou da cama, com aquele ar contido de quem estava, sim, muito feliz. E foi direto escolher sua roupa.
Verena ficou parada alguns segundos, sentada à beira da cama, os cotovelos apoiados nos joelhos, olhando o chão. Aquilo era um gesto tão simples, mas custava tanto pra ela. Não que odiasse religião… mas aquele ambiente, as falas, os olhares, mexiam com memórias e feridas que ela preferia deixar quietas. Ainda assim, lá estava ela.
Pouco depois, no quarto, Silvia terminava de se vestir: saia midi azul-marinho, blusa branca delicada com pequenos detalhes em renda, cabelo preso em um coque elegante e discreto. Tinha escolhido brincos pérola, os preferidos da mãe.
Verena saiu do banheiro com a camisa branca já abotoada, só faltando colocar os sapatos. Usava uma calça bege de alfaiataria, o cinto combinando, e os óculos de grau de sempre. No pulso, o relógio clássico. Ainda passava um perfume leve enquanto Silvia a observava, com um sorriso sereno.
— Você tá linda, sabia? — comentou, se aproximando.
Verena apenas arqueou uma sobrancelha, com aquele charme contido que fazia todo mundo suspirar.
— Você também. — respondeu, ajustando o punho da camisa. — E antes que diga… eu vou me comportar. Nada de piadinhas com o padre.
Silvia riu, e foi até ela ajeitar a gola da camisa.
— Eu só queria você do meu lado hoje. Como nos velhos tempos... lembra que a gente veio nessa igreja com meus pais, uma vez?
Verena assentiu, olhando o espelho por cima do ombro da esposa. Lembrava sim. E lembrava do quanto ficou desconfortável naquele dia.
— Lembro. Mas hoje vai ser diferente. Tô aqui por você, tá?
Silvia segurou seu rosto por um breve instante, com ternura.
— Isso já é tudo pra mim.
Verena apenas beijou sua testa e pegou a carteira.
Igreja de Santa Isabel – Início da noite, terça-feira
O interior da Igreja de Santa Isabel era acolhedor e imponente ao mesmo tempo. As paredes antigas, levemente descascadas pelo tempo, guardavam séculos de fé, e o som suave do coral afinado preenchia os espaços com uma harmonia quase celestial. Uma luz amarelada descia dos vitrais e refletia nas colunas, dando ao ambiente um ar de reverência tranquila.
Verena sentou-se ao lado de Silvia em um dos bancos de madeira próximos ao corredor central. As duas estavam lado a lado, mas não muito próximas. Silvia mantinha as mãos cruzadas sobre o colo, os olhos fechados, os lábios se mexendo em prece silenciosa. Parecia em paz.
Verena, por outro lado, lutava para encontrar uma posição confortável. As costas eretas, as mãos apoiadas nos joelhos, o olhar firme na imagem de Santa Isabel no altar, mas os pensamentos... longe. Muito longe.
Não era que ela não respeitasse aquele espaço. Pelo contrário, entendia sua importância, e ainda mais agora, vendo como aquilo acalmava Silvia. Mas era como se estivesse sempre de fora, como se todo aquele ritual delicado – os cantos, as leituras, os gestos repetidos – pertencessem a um mundo que nunca a acolhera de verdade.
Silvia, em um momento de ternura, virou o rosto e encontrou Verena ali, quieta, os olhos vagando. Sorriu com leveza e, sem dizer nada, segurou sua mão. A deputada deixou, sem hesitar. Entrelaçou os dedos, quase como um pedido de desculpas silencioso por tantas recusas anteriores.
O padre subiu ao púlpito e iniciou a homilia, falando sobre escolhas e perdão. Verena sentiu um aperto estranho no peito. "Escolher estar aqui é também uma forma de amar", disse o padre. Silvia assentiu levemente com a cabeça, como se aquela frase fosse uma resposta direta do céu.
Verena tentou acompanhar, mas seu olhar, involuntário, caiu sobre uma jovem sentada algumas fileiras à frente. O cabelo preso em um coque simples, a postura tímida, a Bíblia no colo. A semelhança com Valentina era desconcertante. Fechou os olhos por um instante, buscando afastar aquela imagem. Respirou fundo. Não era hora nem lugar.
Silvia notou o suspiro, apertou um pouco mais a mão da esposa e sorriu de novo, achando que talvez ela estivesse apenas emocionada.
Quando se levantaram para o "Pai Nosso", Verena hesitou por um segundo. Mas acompanhou. Seus olhos, agora, estavam em Silvia. A mulher que tinha escolhido. A mulher que, apesar de tudo, ainda a queria por perto.
E, por um momento, só por um momento, Verena se sentiu em paz também.
Templo da Igreja Evangélica — Ipiranga / Domingo à noite
O som suave de um teclado preenchia o ambiente iluminado por luzes brancas, enquanto os fiéis ainda entravam calmamente no templo. O pastor já se posicionava ao lado do púlpito, conferindo seus apontamentos com a Bíblia aberta. As cadeiras de plástico, enfileiradas de forma simples, davam à igreja um ar de acolhimento. Alguns jovens se ajeitavam com violões no pequeno altar elevado, afinando instrumentos antes do louvor.
Valentina estava na terceira fileira, sentada entre os pais dos pais. Vestia uma blusa azul clara, saia jeans até abaixo do joelho e o tênis branco já meio surrado de sempre. O cabelo preso num coque simples deixava à mostra os brincos discretos de argola dourada que usava em cultos. Tinha nas mãos a Bíblia de capa preta com seu nome gravado em dourado, e ao lado, a bolsa com a carteira de identidade e um bloquinho de anotações.
Ana Paula vinha ao seu lado esquerdo, abraçava Isadora, que já dava sinais de sono, mas tentava parecer firme, balançando a Bíblia infantil nas mãos. Todos estavam juntos naquela noite de culto de terça-feira — uma tradição da família que raramente se quebrava.
O louvor começou e as vozes preencheram o ambiente com força. Todos cantavam de olhos fechados, muitos com as mãos erguidas. Ela tentou se concentrar, cantar, mas sua mente... estava longe.
As imagens da festa voltavam como flashs insistentes: o sorriso torto de Verena, a calça molhada de refrigerante, o toque rápido de suas mãos… e por fim, o beijo. Aquele beijo roubado e intenso, que ela presenciou por acaso, escondida pelas sombras da tarde. A língua, o desejo, o jeito como Silvia riu depois.
Era como se a cena grudasse na pele.
E ela queria odiar aquilo. Queria mesmo. Mas não conseguia.
De repente, o louvor cessou e a voz do pastor ecoou firme pelo microfone.
— Hoje vamos falar sobre os valores da família… a família como foi criada por Deus. Homem e mulher. Uma aliança santa, imutável.
Valentina engoliu seco, a garganta seca de angústia. Apertou a Bíblia com mais força.
Seu pai deu um leve "amém", como quem confirma.
— Existem, irmãos, vozes no mundo tentando deturpar o que é santo. Querendo colocar como natural aquilo que é aberração aos olhos do Senhor. Mas a Palavra é clara — dizia o pastor com veemência. — O que está fora disso é confusão. É ilusão do inimigo.
A cabeça de Valentina latej*v*. O coração, pequeno no peito. Ela queria desaparecer.
Queria ser só fé. Queria que Deus arrancasse aquele sentimento com as mãos. Mas a dor não passava. Era como se cada palavra dita fosse uma pedra lançada contra algo dentro dela que nem tinha nome ainda.
Abaixou o rosto, fingindo ler a Bíblia, mas os olhos estavam marejados.
“Deus me perdoa. Por favor. Me ajuda. Eu não quero isso. Eu não escolhi isso…”, pensou, mordendo o lábio com força.
“Eu sou tua filha. Eu te sirvo. Me limpa disso.”
O pastor continuava:
— E se algum irmão aqui hoje estiver passando por dúvidas, por tentações… volte à luz. Ainda dá tempo de abandonar esse caminho.
Ela não aguentou. Fechou a Bíblia devagar, tentou respirar fundo. O pai virou de leve o rosto pra ela, notando o movimento.
O pastor continuou a pregação, inflamando os fieis. Ainda com o discurso sobre o plano de Deus para as famílias, sobre a "aliança divina entre o homem e a mulher". Palavras que, antes, ela ouvia com naturalidade. Mas agora… machucavam. Cada frase parecia vir com um peso maior.
— “O mundo tenta confundir nossos jovens com sentimentos passageiros. Mas a Palavra é clara. Deus criou o homem e a mulher, e ali está o propósito.”
Valentina abaixou os olhos. Sentia-se envergonhada. Não sabia se por estar ali sentindo o que sentia… ou por se odiar por isso. Isadora encostou a cabeça no seu ombro, cansada, e Valentina passou o braço por trás da irmã como um reflexo.
O coração dela estava apertado, confuso. Sabia que ninguém ali poderia entender. Que se soubessem, talvez não olhassem mais pra ela do mesmo jeito. Nem o pai. Nem a mãe. Nem Deus?
Ela tentou cantar a próxima música, mas a voz embargou. Seu pai, Carlos, olhou de relance e deu um tapinha carinhoso no seu joelho, achando que era apenas emoção do culto. Ela forçou um sorriso.
Mas por dentro, Valentina estava em guerra.
Casa de Valentina – Noite após o culto
A casa estava em silêncio. O pai já tinha se retirado para o quarto, dando espaço para a tranquilidade da noite. Isadora, que já tinha dado sinais de cansaço, foi levada pela mãe até a cama. O som distante da televisão ainda vinha da sala, mas Valentina não se importava. Estava em seu quarto, à luz de uma lâmpada de mesa, e o único som que se ouvia era o farfalhar da caneta sobre o papel.
Ela estava sentada à beira da cama, com um caderno aberto em suas mãos. A caneta, firme, rabiscava palavras que nem ela entendia bem, mas precisava deixar sair.
“Não sei mais o que fazer… O que pensar. O culto foi pesado hoje. Eu tentei, mas a verdade é que… eu não sei mais o que sou. Não sou nada disso que eles falam. Será que Deus pode me amar do jeito que eu sou? Será que alguém pode? Eu não sei mais o que sinto, é confuso demais.”
Ela parou por um momento e olhou para o que havia escrito. Estava imersa nesse mar de incertezas, onde as palavras não conseguiam expressar completamente o turbilhão de sentimentos dentro de si. Deixou o caderno de lado e passou a mão pela testa, fechando os olhos.
A imagem de Verena voltava. Não como um sonho distante, mas como uma sombra que a assombrava no presente. O beijo. A proximidade. A confusão que surgiu dentro dela, a vontade de algo mais... de algo que ela sabia que não podia ter. E, mesmo assim, não conseguia afastar.
“Por que eu não consigo parar de pensar nela? Eu sei que isso não é certo. Mas, ainda assim, não posso evitar. Ela é tão… diferente. Tão… distante do que eu deveria querer, não é?”
O pensamento lhe trouxe uma sensação de dor, uma angústia. Ela não queria sentir aquilo, não sabia como lidar com isso.
Levantou-se da cama, dando alguns passos pelo quarto, tentando espantar os pensamentos que a atormentavam. Foi até a janela, olhando para o quintal parcialmente escuro. O céu estava limpo, mas a noite estava fria, e o vento fazia o barulho das folhas se mexendo.
“Eu não sei mais o que é certo. Eu só sei que tenho medo. Medo de mim mesma, medo do que sinto por ela, medo de quem vou me tornar.”
Valentina respirou fundo e pegou o caderno novamente. Não tinha mais forças para escrever mais palavras, e as lágrimas começaram a descer sem que ela pudesse impedir.
“Eu só queria entender o que acontece comigo, Senhor. Por favor, me ajude. Eu estou perdida.”
A caneta escorregou da sua mão, caindo no chão. Valentina ficou olhando para o caderno por mais alguns segundos, antes de se levantar e se sentar na cama novamente. Não havia resposta. Não agora.
Ela se deitou, puxando a coberta sobre o corpo, ainda tentando se convencer de que tudo aquilo era uma fase. Que ela estava apenas passando por um momento difícil. Mas, no fundo, sabia que não seria tão fácil assim.
O pensamento de Verena ainda pairava sobre ela, e ela não sabia se conseguiria afastá-lo.
Consultório de Rodrigo — Quarta-feira, 9h15
A poltrona de couro ainda rangia discretamente quando Verena se sentava. Sempre do mesmo jeito, com uma das pernas cruzadas, o blazer dobrado ao lado, óculos posicionados milimetricamente no rosto. Mas, por dentro, havia algo menos calculado. Mais inquieto.
Rodrigo a observava com o mesmo olhar paciente de sempre. Agenda no colo, caneta em mãos. Mas antes mesmo de perguntar algo, Verena suspirou.
— Eu nem sei por onde começar hoje… — ela disse, olhando para um ponto indefinido da estante.
Rodrigo deu um leve sorriso, sem interrompê-la.
— Talvez pelo que está mais te incomodando neste momento?
Ela deu uma risadinha seca.
— Isso seria uma fila inteira. Uma fila enorme. E, no final dela… — hesitou —... tem uma menina.
Rodrigo ergueu os olhos da caderneta, atento.
— Uma menina?
Verena mordeu o lábio inferior, como se tivesse deixado escapar demais. Arregalou os olhos por um instante e desviou.
— É. A Silvia nem sabe. Enfim… deixa isso pra lá. Já falamos demais de mim e dos meus... impulsos mal administrados.
— Pode deixar, se quiser. Mas parece que isso não é exatamente algo que você está conseguindo “deixar pra lá”, Verena — ele disse com cuidado. — Você fala como se estivesse fugindo de algo. Você comentou que sente culpa por sentir isso. Talvez falar sobre isso seja um bom começo.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, encarando o chão.
— O nome dela é Valentina — soltou enfim. — Ela tem dezesseis anos. Estagia no meu gabinete.
Rodrigo assentiu lentamente. Não havia julgamento no rosto dele, apenas escuta.
— E o que exatamente acontece quando você pensa nela?
Verena desviou os olhos, respirando fundo.
— Uma confusão do caramba. Eu me sinto errada. Suja, às vezes. Como se… não devesse sentir nada disso. Mas sinto. Não é só físico. É uma coisa que me desarma. Me tira do eixo. A forma como ela me olha… como fica sem graça quando fala comigo. Eu fico pensando nela até quando estou com a Silvia.
Rodrigo apoiou a caneta e cruzou as mãos sobre o joelho.
— E como você se sente em relação a isso?
— Culpada. Assustada. Como se eu estivesse prestes a jogar minha vida fora. Mas, ao mesmo tempo… — ela parou —... é como se, por alguns segundos, tudo fizesse sentido. E aí depois volta o peso de ser quem eu sou. Deputada, casada, mulher, em público. Eu vivo me cobrando uma coerência que nunca tive.
Rodrigo esperou, respeitando o silêncio que se instalou. Quando ela enfim ergueu os olhos para ele, parecia cansada.
— Você disse que sente culpa. Mas me parece que essa culpa está mais ligada ao que você acha que deveria ser, do que ao que você é, de fato.
— Talvez — ela murmurou. — Mas a Silvia… Rodrigo, ela tá tentando tanto. Até me convenceu a ir na missa com ela essa semana. Tava tão feliz. Me arrumou como se fosse nosso primeiro encontro. Como é que eu posso estar com a cabeça em outra pessoa, mesmo com tudo isso?
— Porque sentimentos não são matemáticos, Verena. Eles não se encaixam em caixinhas fechadas. Você pode amar uma pessoa e, ao mesmo tempo, sentir desejo, curiosidade ou afeto por outra. O problema é o que você escolhe fazer com isso.
Verena balançou a cabeça devagar.
— Às vezes eu queria que fosse mais simples. Que o amor e o desejo fossem pelas pessoas certas, sabe?
— E quem decide quem são as “pessoas certas”?
Ela riu com amargura.
— O mundo, a moral, a religião, a imprensa, minha esposa, minha terapeuta interior que me odeia.
Rodrigo soltou uma leve risada com ela.
— A questão, Verena, é que se você continuar se pautando por tudo isso, vai viver uma vida que não é sua. Uma vida baseada em expectativa. Não tô dizendo que o que sente é fácil ou que não tem consequências. Só que é real. E você precisa lidar com isso com honestidade, antes que machuque todo mundo — inclusive você.
Ela passou a mão pelo rosto, massageando as têmporas.
— Eu não quero machucar ninguém. Só queria que tudo fosse mais claro.
— Às vezes, clareza vem depois do caos. O que você não pode é continuar ignorando esse caos como se ele não existisse.
Verena assentiu em silêncio, os olhos fixos em um ponto da estante novamente.
— Tá. Já falei demais por hoje.
— Falou o suficiente pra não adoecer calada — Rodrigo respondeu, com aquela calma firme de sempre. — E isso já é muito.
Ela pegou o blazer do lado e se levantou.
— Semana que vem a gente continua. Com sorte, sem mais confissões indevidas.
Rodrigo sorriu, já se levantando também.
— Com sorte, com mais honestidade ainda.
Verena saiu com um aceno leve. Mas dentro dela, tudo ainda pesava. Valentina. Silvia. A culpa. O medo. E aquela sensação constante de que estava num caminho sem volta.
ALESP – Fim de expediente, quarta-feira – 18h50
— Aquele último “imprevisto”? Resolvido. — Rafaela entrou na sala com um sorrisinho presunçoso, jogando a bolsa na cadeira. — Eu sou boa demais. Sério, às vezes me pergunto se a gente não é esperta demais pra esse jogo.
Verena olhou por cima dos óculos, sem rir.
— Você devia se preocupar em ser discreta, não em se gabar.
— Ah, Verena, vai... Ninguém aqui tá brincando. A gente faz tudo redondinho. E aquele primeiro repasse vai tramitar na próxima sessão, tá tudo alinhado. Não tem brecha. Não tem erro.
Verena se levantou, organizando alguns papéis, sem disfarçar a tensão.
— Tem coisa demais acontecendo ao mesmo tempo. A pauta da semana, a imprensa batendo em cima, a oposição caçando clique com fake news...
— E você fazendo parecer que é o fim do mundo — Rafaela completou, indo até a cafeteira. — Isso aqui não é uma operação amadora. A gente conhece os caminhos, os atalhos, quem fecha e quem finge que não viu. Só precisa manter a postura. É política, não jardim de infância.
Verena soltou um suspiro contido.
— E se algo vazar?
— Então a gente desmente. E vaza outra coisa mais barulhenta. Bem-vinda ao jogo.
Ela pegou a xícara, deu um gole no café e virou o olhar de repente.
Verena estava em pé, braços cruzados, encostada na lateral da mesa. Os óculos escorregavam um pouco no nariz, e ela os empurrou com um dedo, olhando para Rafaela com um ar cético.
— Ainda acho que foi arriscado demais. Aquela emenda estava mal costurada. Quase sobrou pra gente.
— Quase — Rafaela repetiu, levantando uma sobrancelha ruiva com um sorriso presunçoso. — Mas não sobrou. Porque somos boas. Você é uma deputada com trânsito até no inferno, Verena. E eu... bem, eu sou quase o diabo. A gente nasceu pra isso.
Verena soltou um meio sorriso cansado.
— É, mas até o diabo caiu uma hora.
— Não seja trágica, Vê. A gente só precisa manter a compostura mais um tempo. Depois disso, ninguém mais encosta. Vai parecer tudo legítimo. Técnica pura. A gente não desvia — a gente desloca.
Verena balançou a cabeça, um suspiro escapando antes que pudesse contê-lo.
Rafaela notou.
— Você tá mais tensa do que o normal. Não é só a emenda, né?
Verena hesitou, fitando o relógio no pulso. Já passava das seis. A maior parte da equipe já tinha ido embora. Um resto de luz alaranjada entrava pelas janelas do gabinete.
— Só tô cansada. — E completou, tentando cortar o assunto: — Vai embora também, Rafa. Aproveita que hoje é quinta.
— Só vou porque tenho vinho em casa. — Ela levantou, pegando a bolsa com um giro teatral. — Se você tiver um surto existencial, me liga. Mas só até meia-noite. Depois disso, meu terapeuta interior desliga.
Verena esboçou outro sorriso breve. Rafaela saiu com um aceno exagerado. Depois de alguns minutos, cansada de conviver com seus pensamentos turbulentos naquela sala, pegou a chave do carro e saiu, enquanto a noite já caía do lado de fora.
Sala de apoio – 18h30
Valentina digitava o final de um relatório com os dedos ligeiramente trêmulos. Não de medo — mas de cansaço. Já tinha avisado a mãe por mensagem que se atrasaria, e o sono pesava nas costas como uma mochila cheia demais. Os olhos ardiam. O relatório era sobre a tramitação de um projeto que Verena tinha pedido "pra ontem", e ela não queria parecer relapsa, ainda mais depois da festa.
Terminou. Enviou. Respirou.
Só então notou o silêncio no andar. Pegou suas coisas rapidamente, jogando a mochila no ombro e saindo apressada.
Frente da Alesp – 18h55
O frio cortou como navalha. Um vento gelado bateu de frente no rosto de Valentina, bagunçando seu cabelo preso de qualquer jeito. Ela apertou os braços contra o próprio corpo, o casaco fino parecendo uma piada.
No ponto de ônibus, só uma mulher, que logo entrou num táxi. Valentina ficou ali sozinha. As luzes dos postes piscavam com aquele amarelo esquisito e triste. O celular estava sem internet. Respirou fundo. Tentou não demonstrar que estava assustada. Mas estava.
Garagem da Alesp
Verena ligou o carro, jogando a bolsa no banco do passageiro. Estava com as mãos nos bolsos do sobretudo, os dedos gelados, a cabeça cheia. Ligou o aquecedor. O rádio soltava uma música qualquer que ela nem ouvia. O veículo deslizava com suavidade a pequena rampa que dava acesso à rua. Estava prestes a virar à esquerda quando seus olhos bateram, quase sem querer, na lateral do ponto de ônibus.
Uma silhueta. Pequena, encolhida, o cabelo preso. O coração deu um salto automático. O olhar fixou. Era ela? Era Valentina?
Sem pensar, o volante virou sozinho, como se os braços tivessem vontade própria. A direção oposta da que ela deveria tomar. O carro deslizou em curva, silencioso, até alinhar-se com a rua que dava direto no ponto.
Foi então que viu.
Uma moto se aproximava. Dois homens. Um deles desceu em movimento. Rápido. Grosseiro. Puxou a mochila de Valentina com violência. Ela tentou segurar, caiu. O chão gelado, o grito preso na garganta.
Verena pisou fundo.
O pé afundou no acelerador com uma força quase desesperada. O carro rugiu. O pneu cantou alto contra o asfalto molhado pela garoa. Um barulho seco e agressivo, que fez os motoqueiros se virarem, alertas.
O carro se aproximava em alta velocidade. Os assaltantes subiram na moto, aceleraram, cortando o cruzamento feito navalha.
Verena parou o carro de supetão, deixando um rastro de fumaça. Saltou antes mesmo que o motor desligasse.
— Valentina! — gritou.
A menina estava sentada no chão, imóvel. Os olhos abertos demais. Pálida. Tremendo.
Verena ajoelhou, as mãos hesitantes no ar, sem saber se podia tocá-la.
— Ei... Valentina, sou eu... tá tudo bem agora, ok? Eles foram embora. Você tá bem?
A garota não respondeu. Só respirava rápido, olhando o nada.
Verena se ajoelhou mais perto, com cuidado, e dessa vez tocou o ombro da menina, com a delicadeza de quem recolhe cacos.
— Respira. Só respira. Eu tô aqui.
E ali, por um instante que pareceu durar muito mais do que segundos, o mundo inteiro sumiu.
Rua lateral da Alesp – 19h25
Os primeiros pingos começaram a cair como um aviso. Grossos, espaçados, frios. Valentina continuava sentada no chão, a mochila caída ao lado, o olhar preso no vazio.
Verena sentia o coração bater no pescoço, na ponta dos dedos, no centro da língua que não conseguia formar palavras. A respiração da menina era curta e rápida, como se o corpo dela tivesse esquecido como voltar ao normal.
Um trovão distante. O barulho metálico da moto já tinha sumido. O mundo, agora, era só ela e aquela menina trêmula no chão.
Sem pensar demais, Verena se abaixou mais uma vez e a chamou, baixinho:
— Valentina... você consegue me ouvir?
A garota piscou, os olhos finalmente se movendo na direção da voz. Mas não respondeu.
A chuva engrossava. Verena hesitou por um segundo — não por dúvida, mas pelo medo de quebrá-la. Porque era isso que Valentina parecia naquele instante: frágil demais pro mundo.
— Vamos... eu vou te tirar daqui, tá?
Com movimentos lentos, ergueu a menina. O corpo dela era leve, tenso. Verena sentiu cada tremor, cada osso rígido, cada gesto mudo de resistência. Ainda assim, Valentina deixou-se ser conduzida. Não falava. Não chorava. Só tremia.
A porta do carro se abriu com um estalo abafado. Verena a ajudou a entrar como se estivesse colocando um cristal numa caixa de veludo. Os toques eram mínimos, precisos, quase reverentes. Evitava o contato direto nos lugares mais delicados — o rosto, a nuca. Mas não conseguia evitar de ajeitá-la com um cuidado quase protetor.
Entrou logo em seguida, o som dos pingos batendo com força no teto do carro agora tomava conta. Um vendaval atravessava a rua como se quisesse levar embora o resto do dia.
Ajustou o aquecedor, girando o botão com a mão trêmula. Depois se inclinou um pouco, ligou o GPS — e lá estava. O endereço da casa da menina ainda salvo da primeira vez em que a deixara lá, junto de Silvia.
Seu olhar voltou pra Valentina, que permanecia muda, o rosto pálido, as mãos juntas no colo, os olhos úmidos. Verena apertou o volante.
— A gente já tá indo pra sua casa, tá? Tá tudo bem agora. — Sua voz saía baixa, quase como se tivesse medo de assustá-la. — Você tá segura. Comigo.
Silêncio.
O carro deslizou devagar pelas ruas agora ensopadas. Os faróis refletiam no asfalto como espelhos líquidos. Valentina não dizia uma palavra. Olhava a janela como se estivesse em outro planeta. Verena lançava olhares constantes para ela, tentando manter o foco no trânsito. Seu coração apertava com uma força absurda.
Ela queria parar o carro. Queria abraçá-la. Queria dizer que estava ali, que ela não estava sozinha, que nunca mais ia deixar que algo assim acontecesse.
Mas não podia.
Tudo que conseguia fazer era manter a direção firme, os olhos atentos, e a temperatura do carro elevada como se pudesse, com aquilo, aquecer o corpo dela. Ou a alma.
— Se quiser... pode falar comigo — disse, mais uma vez. — Ou não falar. Só... fica aqui. Comigo.
Um raio cortou o céu ao longe. Valentina piscou devagar.
Verena engoliu seco. Cada quilômetro parecia mais longo. O som dos pingos grossos nas janelas acompanhava o silêncio delas como uma trilha triste e contínua.
E mesmo sem uma palavra trocada, algo ali se dizia. Algo que nem a chuva, nem o medo, nem o silêncio conseguiam esconder.
Caminho para o Ipiranga – 19h40
A cidade já parecia outra. Os prédios do centro iam ficando pra trás, cada sinal vermelho trazendo segundos de tensão diluída entre os pingos grossos da chuva. Valentina seguia muda, com o olhar perdido. Verena tentava não olhar demais, mas era impossível. Cada semáforo era uma desculpa para buscar os olhos dela — um reflexo, um sinal de que estava tudo bem.
Mas não estava.
Aquela ausência de resposta a corroía mais do que os próprios pensamentos.
— Tá com frio? — perguntou, ao parar no terceiro sinal. — A temperatura tá boa pra você?
Nenhuma resposta. Nem um aceno.
Verena respirou fundo. Engoliu o nó que começava a subir e apertou mais forte o volante. O coração dela batia como se tivesse atravessado um campo de batalha. Estava ali tentando manter o controle... mas tudo parecia desabar aos poucos.
— Eu sei que... deve estar difícil até de pensar agora — disse, num tom baixo, mas firme. — Só queria que você soubesse que... que eu tô aqui, tá? Não vou te deixar sozinha. Nunca.
Mais silêncio.
As ruas agora eram mais estreitas. A paisagem mudou: casas simples, muros descascados, fachadas sem reboco. A chuva tornava tudo mais escuro. Algumas lâmpadas da rua piscavam. Outras, apagadas. O bairro tinha aquele ar de vulnerabilidade que fez o estômago de Verena revirar, imaginando a manina ali, sozinha.
Seu coração disparou mais uma vez. Pegou uma rua lateral — a da casa de Valentina — e percebeu que não havia energia ali. Tudo estava em penumbra, os postes apagados, a visibilidade baixa mesmo com os faróis altos.
Achou uma vaga entre dois carros e estacionou. Por um momento, ficou apenas ali. Mãos no volante. Ouvindo a chuva martelar o teto do carro como um lembrete de que tudo ainda estava acontecendo. Valentina continuava em silêncio. Estática. Um vulto quebrado no banco do passageiro.
Foi então que ouviu.
Um soluço.
Verena virou o rosto devagar, como se tivesse medo de confirmar o que seus ouvidos captaram. Não ligou a luz interna. Instinto. Medo de assustá-la, de expô-la, de romper aquele momento de fragilidade.
Na penumbra do carro, Valentina chorava.
Não alto. Mas o suficiente pra rasgar qualquer resistência que Verena ainda tivesse.
Seu coração trincou ali.
Ela soltou o cinto sem pensar. Seu corpo já se movia antes da mente permitir. Uma parte dela gritava pra parar, pra deixá-la em casa, pra fazer o que era certo.
Mas pela primeira vez… não ouviu.
Ou, talvez, tenha ouvido o que passou a vida inteira tentando calar.
— Não chora, por favor — sussurrou, com uma doçura que nem sabia ter.
Ela se inclinou devagar, com cuidado, como se se aproximasse de algo sagrado. Passou o braço com leveza pelas costas da garota e a puxou para perto, sentindo aquele corpo frágil estremecer contra o seu.
O perfume...
Assim que o cheiro adocicado de canela subiu, Verena se perdeu. Um perfume tão sutil, tão familiar, tão... dela.
Acariciou os cabelos úmidos, afastando algumas mechas do rosto. As mãos, com dedos firmes mas cuidadosos, se moveram até as bochechas. Com os polegares, secou as lágrimas que ainda escorriam ali, num gesto quase reverente.
— Shhh... tá tudo bem agora — murmurou, sem se reconhecer naquela voz baixa, rouca, íntima demais.
Envolveu o rosto delicado de Valentina entre as mãos. Sentia a pele quente e úmida sob seus dedos. Sua perdição, seu limite, sua linha de fogo... estava bem ali. Nas suas mãos.
Valentina não reagia. Só permitia.
Verena se aproximou mais. E mais. Até sentir a respiração dela esquentar o espaço entre seus rostos.
O ar do carro ficou pesado. Um calor desconcertante tomou conta da cabine.
Verena fechou os olhos.
Os lábios quase se tocaram.
Milímetros. Um sopro. Um instante.
O toque estridente do celular de Verena explodiu dentro do carro, como se o mundo tivesse batido a porta de volta.
Ela arregalou os olhos.
Se afastou num pulo, como se tivesse tocado fogo. A respiração ainda presa. O coração descompassado.
Olhou o visor, mas não leu nada. Não importava quem era. O estrago já estava feito.
— Me desculpa — soltou, em choque, a voz falha, quase trêmula. — Eu… não era pra... eu não devia...
Levantou a mão, confusa, tentando arrumar o próprio cabelo, os próprios pensamentos, os próprios limites. Nenhuma dessas coisas colaborava.
Valentina continuava ali, calada. O rosto ainda úmido. Os olhos, perdidos entre o que quase foi e o que nunca poderia ser.
Verena virou o rosto, encarou o para-brisa coberto de chuva, mordeu os lábios com força e, pela primeira vez em muito tempo... não soube quem era.
Carro estacionado, rua escura – 20h57
O celular ainda tocava. Um som insistente, agudo, quase cruel naquele momento. Verena quis jogar o aparelho pela janela. Seu peito subia e descia rápido demais, como se tivesse corrido uma maratona sem sair do lugar.
Com um gesto irritado, puxou o celular do console e atendeu:
— Alô?!
— Verena?! Onde você tá? — era Silvia. A voz apressada, preocupada. — Tá tudo bem?
Verena fechou os olhos. O som da esposa bateu fundo. Como se a realidade tivesse voltado com força total, empurrando-a contra o banco.
— Tô... tô bem. Tô indo pra casa — respondeu, a voz arrastada, longe de si.
— Você sabe que horas a Valentina saiu da Alesp? —A voz tensa do outro lado.
Verena fechou os olhos por um segundo. O mundo parecia girar ao contrário.
— Por quê?
— A mãe dela tá desesperada. A avó ligou aqui agora, chorando. Disse que a menina mandou mensagem avisando que ia se atrasar, mas não deu mais notícias desde então. Ninguém sabe onde ela tá.
Verena sentiu um aperto no peito que era diferente de tudo que tinha sentido até então. Suor frio brotou na testa. A cena que tinha quase acontecido minutos antes agora se tornava ainda mais cruel.
— Ela tá comigo — respondeu, controlando o tom. — Dei uma carona. Por causa da chuva... e... bom, ela já passou por um perrengue hoje. Tô chegando na casa dela agora.
Silvia soltou um suspiro aliviado.
— Graças a Deus. Eu vou avisar a vó dela então. Ela tava muito nervosa, achando que tinha acontecido alguma coisa.
— Já tô chegando na casa dela. Tá tudo bem. A gente se fala depois, daqui a pouco chego em casa.
Verena desligou antes que Silvia dissesse mais alguma coisa.
Deixou o celular no compartimento do câmbio como se ele tivesse queimado sua mão.
Ligou o carro em silêncio. Não olhou pra Valentina. Nem conseguiria.
Seguiu devagar pelas ruas do bairro, os pneus espirrando água das poças acumuladas da chuva pesada que caíra minutos antes. As luzes dos postes falhavam, criando sombras densas nos muros, nos portões de casas simples e calçadas quebradas.
Dentro do carro, Valentina agora olhava pela janela, em silêncio. As lágrimas tinham cessado. Só restava o peso do que quase foi — e do que não podia ser.
Verena mantinha as mãos firmes no volante. O maxilar travado.
E um gosto amargo na boca que não passava por nada.
Atravessou mais algumas ruas do bairro. As casas agora eram mais simples, algumas com muros descascados, outras sem reboco. Passou por uma padaria fechada, uma igreja evangélica com as portas entreabertas e bancos de madeira vazios. A chuva começava outra vez.
A rua da menina era uma das últimas. Um dos postes na calçada da frente estava queimado, deixando metade da quadra mergulhada em sombra. Até que parou em frente a um portão simples, com as grades em formatos de coração.
Verena buzinou duas vezes, curtas.
Poucos segundos depois, a porta da casa se abriu. Ana Paula saiu correndo até o portão, aflita. Luiz apareceu logo atrás, com a pequena Isadora agarrada ao lado, o rostinho assustado.
Verena engoliu seco.
Parou o carro devagar, olhou pra Valentina, finalmente.
— Tá entregue — disse com a voz baixa, mas firme. — Não precisa se preocupar em ir ao estágio amanhã. Só vá se estiver bem.
Valentina apenas balançou a cabeça. Um “obrigada” quase inaudível escapou de seus lábios. Ela pegou a mochila úmidecida do colo, abriu a porta devagar e saiu, correndo até os braços da mãe.
Ana Paula a abraçou com força, quase desabando.
Verena abaixou o vidro.
Ana Paula olhou pra ela com os olhos marejados e a voz embargada:
— Obrigada dona Verena. Obrigada de verdade. Deus abençoe a senhora.
Verena forçou um sorriso fraco.
— Não precisa agradecer. Boa noite.
Deu uma leve buzinada curta, em sinal de despedida, olhando para Luiz com um aceno contido.
Engatou a marcha, foi até o final da rua, manobrou com cuidado e, ao passar novamente em frente à casa de Valentina, buzinou uma última vez. Breve. Sentida.
A silhueta da garota ainda podia ser vista pelo retrovisor, agarrada à mãe. Verena seguiu em direção à própria casa. E tudo que sentia era o gosto metálico da culpa subindo à garganta. Não sabia como ia encarar Silvia depois daquela noite. Nem a si mesma.
Apartamento de Verena e Silvia – 22h40
A porta foi destrancada com certa lentidão, como se Verena estivesse tentando retardar o inevitável. Entrou com passos arrastados, as roupas ainda um pouco úmidas da chuva, os cabelos soltos colados nas têmporas. A luz da sala estava baixa, e uma novela qualquer passava na TV, quase em mudo. Silvia estava ali, sentada no sofá, com as pernas cobertas por uma manta fina. Ela parecia não assistir de verdade, só olhando pra tela com o rosto distante.
Mas assim que viu a esposa entrar, seu corpo reagiu. Se levantou de imediato, indo até Verena com os olhos marejados de preocupação.
— Amor... — disse baixinho, envolvendo a cintura da deputada com os braços. — Meu Deus, onde você tava? Fiquei tão preocupada...
Verena tentou sorrir, mas estava exausta. Enlaçou Silvia num abraço apertado, repousando o queixo no ombro dela por alguns segundos. Precisava daquele contato, mesmo que sua cabeça estivesse a quilômetros dali.
— Eu tô bem... Foi só um dia puxado — murmurou, a voz rouca de cansaço. — Chuva, confusão... Coisa de gabinete.
Silvia suspirou, sentindo o cheiro de rua nos cabelos da esposa. Levantou um pouco o rosto, passando a mão pelos ombros molhados do blazer dela.
— Você devia ter me ligado... Eu fiquei nervosa. Tava vendo no jornal que vários lugares ficaram alagados, inclusive próximo da Alesp. A mãe da Ana Paula me ligou desesperada. Disse que a Valentina não tinha chegado, e... Eu só soube que tava com você quando você me respondeu.
Fez um leve carinho no braço de Verena. — Aconteceu alguma coisa?
Verena fechou os olhos por um segundo. Manteve os braços ao redor da esposa, mas agora com menos firmeza.
— Ela perdeu o ônibus. Tava sozinha, vi que tava escurecendo e começando a chover. Achei que seria melhor deixar ela em casa... só isso. —
Desviou o olhar, andando até a poltrona, onde que largou a bolsa.
Silvia a acompanhou com os olhos, sem insistir.
— Você fez certo... A mãe dela agradeceu, sabia? A avó também. A Valentina mora longe, é perigoso à noite.
Ela sorriu de leve, aquele sorriso gentil de quem tentava manter a paz da casa.
Verena apenas assentiu, tirando o blazer molhado com certa dificuldade. Silvia se aproximou de novo, tocando o rosto da esposa com ternura.
— Vai tomar um banho, vai... Eu deixei sua comida te esperando. Você precisa descansar. A deputada sorriu de leve, com aquele cansaço que atravessava até os ossos.
— Tá bom... Obrigada, amor. Já volto.
Silvia passou a mão pelas costas dela num gesto carinhoso, e seguiu para a cozinha. Verena foi pro quarto devagar, como se carregasse o peso de todas as decisões erradas do mundo nos ombros. O banho vinha aí... Mas o que ela precisava mesmo, era se livrar de si mesma.
Quarto de Valentina – 23h15
A luz do quarto estava apagada. Apenas a lâmpada do corredor, do lado de fora, vazava uma claridade alaranjada pela fresta da porta mal fechada. Valentina estava deitada de lado, enrolada no cobertor que tinha puxado até a cabeça. O corpo ainda trêmulo, mas agora era um tremor interno. Um turbilhão que não dava trégua.
Do outro lado da cama de solteiro, a irmãzinha Isadora dormia, encolhida, com o braço abraçado a um urso de pelúcia já meio descosturado. O silêncio da casa contrastava com o caos dentro da mente de Valentina.
Ana Paula estava sentada à beira da cama da filha mais velha, fazendo um carinho leve nos cabelos dela, como quando Valen era criança e acordava de pesadelo.
— Tá tudo bem, meu amor... Você tá segura agora — sussurrou, com a voz embargada pela preocupação. — Não precisa contar se não quiser. Só descansa, tá?
Valentina não respondeu. Só mexeu os olhos, úmidos, fixos em algum ponto do vazio. Queria falar, gritar, desabafar... mas não conseguia sequer organizar os próprios pensamentos. O assalto, o medo, a chuva... tudo parecia girar ao redor de um único momento: aquele instante dentro do carro, com Verena.
Lembrou das mãos quentes dela em seu rosto, dos polegares secando suas lágrimas, da forma como a abraçou como se quisesse protegê-la do mundo inteiro.
E principalmente... de como, por um segundo, quase não havia mais mundo algum — só aquele calor invadindo o carro, a respiração próxima, os olhos fechados, as bocas tão próximas naquele escuro.
Seu coração acelerou. Um calafrio percorreu sua espinha. Apertou mais o cobertor contra o peito.
"Eu queria...?", pensou, confusa. "Mas como posso querer uma coisa dessas?"
Ela nunca tinha beijado ninguém. Nunca teve tempo, coragem, ou espaço pra entender seus próprios sentimentos. E agora estava ali, sentindo o toque de outra mulher ainda presente no rosto, no corpo inteiro. Uma mulher casada. Uma deputada. Sua chefe.
Uma pontada de culpa surgiu no peito, afiada. Sentia vergonha de si mesma. Do desejo. Do arrepio. Mas não conseguia negar o que aconteceu ali. Aquela parte de si, escondida há tanto tempo, agora gritava com força. E ela estava apavorada com isso.
— Mãe... — sussurrou, num fio de voz.
Ana Paula inclinou-se, preocupada.
— Tô aqui, filha.
— Posso só... ficar assim? Um pouquinho?
A mãe assentiu, continuando a fazer carinho nos cabelos da filha.
— Claro que pode. Fica do jeitinho que quiser, meu amor. Eu tô aqui.
Valentina fechou os olhos com força, como se pudesse expulsar as memórias. Mas Verena estava lá, mesmo no escuro. Na pele, no cheiro da blusa que ela ainda vestia, no arrepio constante.
E a dúvida se repetia como um eco dolorido:
"Se o celular não tivesse tocado... o que teria acontecido?"
Quarto de Valentina – Madrugada (03h42)
Valentina se remexia na cama. O lençol colado às pernas suadas, o cobertor já empurrado pra baixo. Um franzido na testa denunciava a inquietação. Estava sonhando — e o sonho era vívido demais.
Chovia. Estavam na rua, num canto qualquer, entre paredes grafitadas e o som distante da cidade adormecida. A luz de um poste piscava, criando sombras que dançavam ao redor delas.
Verena estava ali. A blusa social um pouco amarrotada, os cabelos soltos, pingando chuva. Os olhos fixos nela.
— Por que você me olha assim? — Valentina perguntava, com a respiração acelerada, sentindo o coração martelar contra as costelas.
Verena não respondia. Apenas se aproximava. Devagar. Como um predador que conhece a presa, mas hesita por respeito.
Ela levantou o queixo da garota com dois dedos e olhou fundo nos olhos dela.
— Me diz pra parar. Diz que não quer o meu beijo.
A menina engoliu seco. Estava com medo. Mas mais do que isso... estava tomada por algo que nunca tinha sentido. O corpo fervia. Os sentidos aguçados. A pele arrepiada.
Verena se inclinou e a beijou. Não foi delicado. Foi intenso. Quente. Quase desesperado. A língua explorando sua boca com uma fome desconhecida. As mãos segurando firme sua cintura.
Valentina ofegava entre beijos, como se aquilo roubasse todo o ar de seus pulmões. Tentou dizer alguma coisa... mas tudo que saiu foi um gemido preso.
— Para... — sussurrou, fraca. — Verena... Não...
Mas seus braços já estavam ao redor do pescoço dela. Seu corpo colado ao dela. O beijo recomeçou, mais profundo, mais urgente. Um choque elétrico subindo pelas pernas, alcançando seu ventre, deixando um calor desconcertante entre as coxas.
Então, uma buzina forte ecoou na rua do sonho — e tudo tremeu.
Quarto de Valentina – 03h43
Ela acordou num pulo. O coração batendo como se tivesse corrido um quarteirão. O corpo inteiro quente. As mãos úmidas. Um suor frio escorria da nuca.
— Ai meu Deus... — murmurou, sentando-se na cama.
Sentia algo estranho. Um desconforto. Uma pressão. O corpo inquieto. Sentia uma vontade enorme de fazer xixi.
Levantou devagar, tentando não acordar Isadora, e andou até o banheiro, tateando no escuro. Quando se sentou no vaso, percebeu algo diferente. A bexiga não estava tão cheia. Mas o desconforto entre as pernas permanecia. Uma sensação quente. Nova. Intensa.
Valentina mordeu os lábios, assustada. Nunca tinha sentido aquilo. Ninguém tinha falado com ela sobre isso. Nem a mãe, nem a escola, nem Carol. Ficou ali sentada por um tempo, sem saber o que fazer. Sentia uma pulsação no centro do próprio corpo. Algo vivo. Descontrolado. E mais do que tudo... vergonhoso.
"Mas... o que é isso?" — pensou, puxando a calcinha de volta às pressas, o rosto em chamas.
Voltou pro quarto com passos leves. Se enfiou debaixo do cobertor como se o mundo todo pudesse invadir o cômodo a qualquer momento. O coração ainda acelerado. E a imagem de Verena, molhada de chuva, colada ao seu corpo... ainda muito viva em sua mente.
Portão da escola – 07h13 da manhã
O céu ainda estava meio acinzentado da chuva da noite anterior. Um vento frio batia no rosto de Valentina, que segurava a mochila com força, como se aquilo pudesse protegê-la de si mesma.
Carol apareceu do outro lado da rua, esbaforida, como sempre.
— Menina, quase perdi a hora! Meu ônibus ficou parado uma eternidade, aí quando vi já era… — ela parou, olhando melhor pra Valentina. — Você tá bem?
Valentina deu de ombros, tentando sorrir.
— Tô… só meio cansada. Dormi mal.
Carol arqueou uma sobrancelha, desconfiada.
— De novo?
Valentina assentiu, encostando-se ao portão da escola. As primeiras turmas começavam a entrar, mas elas ainda tinham uns minutos ali.
— Carol… posso te perguntar uma coisa?
— Claro, né, criatura. Você tá me assustando — disse, se aproximando.
Valentina olhou ao redor. O coração disparando só por tentar formar a pergunta.
— É que… tipo… você já… já sonhou umas coisas estranhas? Que te deixavam meio... sei lá… com vontade de ir no banheiro? Mas não era bem isso?
Carol arregalou os olhos, mas logo soltou um risinho, tentando manter o tom leve.
— Valen… você sonhou com alguém?
Valentina desviou o olhar, as bochechas ardendo.
— Não foi nada demais. Acho que foi só um sonho meio... doido.
— Ah tá, doido. Igual aquele que você teve semana passada e ficou o dia inteiro com cara de quem viu assombração? — Carol cruzou os braços, com aquele olhar de "pode falar que eu já sei".
Valentina mordeu o lábio. Tentou rir.
— Eu nem sei o que eu senti. Foi estranho. Tipo… parecia real. E aí quando acordei, eu... eu fui no banheiro, mas...
— Mas não era xixi, né? — completou Carol, sorrindo de canto, como quem entende perfeitamente.
Valentina arregalou os olhos, assustada.
— Como você sabe?!
— Porque isso tem nome, Valen. E a maioria das meninas sente isso alguma vez. Só que ninguém explica nada. — Ela tocou no braço da amiga, com carinho. — Você tá se descobrindo, e tá tudo bem. Ninguém morre por gostar de alguém.
Valentina arregalou os olhos de novo.
— Eu não disse que gosto de alguém.
— Ainda não. Mas eu tô esperando essa parte. E, olha... você tá toda estranha faz dias. Só pode ser por causa de alguém.
Valentina sorriu, nervosa. O coração quase saindo pela boca.
— Você acha?
— Tenho certeza. E só tô esperando você me contar quem é o bendito. — Ela deu uma piscadinha. — Aposto que é algum boy do estágio.
Valentina congelou por dentro. Engoliu seco. A imagem de Verena se formando atrás dos olhos de Carol, mas só ela via aquilo.
Sorriu. Fraco. Com medo de responder.
— Vem… vamos entrar.
Gabinete de Verena – 14h02
A sala parecia menor do que de costume. Talvez fosse a dor de cabeça, talvez o calor abafado, talvez o cansaço acumulado de uma semana que já tinha levado toda sua energia.
Verena apertava os olhos enquanto o assessor explicava, pela terceira vez, um erro grotesco num relatório importante. Ela não ouvia mais nada — só um zumbido irritante e o som dos dedos tamborilando impacientemente na mesa.
— Eduardo... — ela suspirou, interrompendo. — Você tem certeza que leu o material antes de me entregar?
O homem hesitou.
— Eu... sim, deputada. Quer dizer, eu li, mas talvez tenha deixado passar...
— Talvez? — ela bateu a mão na mesa, fazendo o copo d’água vibrar. — Você deixou passar um dado que contradiz TUDO que a gente apresentou semana passada! Eu não tenho tempo pra corrigir erro de adulto, você entendeu?
Ele engoliu em seco, murmurando um pedido de desculpas antes de sair da sala, cabisbaixo. Assim que a porta se fechou, Rafaela, que até então observava de canto, recostada na estante com um copo de café, soltou um assobio discreto.
— Caraca, que tarde animada. Quer que eu comece a anotar quantos saem chorando?
Verena se jogou na cadeira com força, pressionando as têmporas com os dedos.
— Que saco, Rafa. Tô com dor de cabeça, dor nas costas, dor em tudo. — Pegou os óculos da mesa e colocou no rosto, como se isso fosse aliviar algo. — Não é possível que ninguém consiga fazer o mínimo.
Rafaela arqueou uma sobrancelha, bebendo o café.
— Tá bom, mas respira aí. Cê tá espirrando estresse até na água da copa. E não me vem com essa de ‘não dormi direito’... parece que tá virada há três dias.
Verena não respondeu. Só ficou encarando a tela do notebook, onde piscava um e-mail não lido. Tentou focar, mas tudo o que conseguia pensar era na última noite. Naquela cena. Naquela boca. No telefone tocando no momento exato em que tudo teria ido longe demais.
Sentia vergonha. Medo. Um nó no estômago.
— Droga Valentina — Disse, quase num sussurro, mais pra si.
— O quê? — Rafaela perguntou, distraída, já abrindo a agenda do dia.
— Nada! — Verena cortou, seca. — Esquece.
O silêncio ficou por um segundo. Verena ajeitou os óculos, tentando se recompor. Voltou os olhos ao notebook. Precisava focar. Precisava agir como sempre: impecável, implacável. Afinal, era isso que esperavam dela.
Lá fora, o clima no gabinete era de tensão generalizada. Todos andavam rápido, falando baixo, evitando qualquer confronto com a deputada. A informação era clara: hoje não era o dia.
Mas ainda assim... uma parte dela, lá no fundo, torcia pra que a porta se abrisse.
E que fosse Valentina.
Sala de Apoio – ALESP – 14h09
Valentina empurrou a porta da sala de apoio com um leve rangido. Trazia a mochila ainda meio úmida da chuva da noite anterior, pendurada no ombro, e o cabelo preso num coque improvisado, com algumas mechas rebeldes escapando pelas laterais.
Assim que entrou, alguns dos outros estagiários levantaram os olhos por instinto, mas logo voltaram ao que estavam fazendo. Ela caminhou até sua mesa, mais no canto da sala, perto da estante com arquivos, e sentou-se devagar.
Sentiu o estofado frio da cadeira através do tecido da calça jeans e, ao mesmo tempo, aquele frio que não vinha do ar-condicionado. Era interno. Um arrepio que começava na nuca e descia pela espinha até o estômago.
Estava no mesmo prédio que ela.
A mesma mulher que, horas antes, a deixara num estado que sequer conseguia nomear. Aquela que a fez sentir medo, desejo, e um calor que ainda queimava devagar entre as pernas — mesmo ela não sabendo o que, exatamente, era aquilo.
Abaixou os olhos para a tela do computador à frente, mas não conseguia focar. A mente estava presa no que não havia acontecido, mas quase.
E o pior — ou melhor? — é que queria vê-la.
Só um segundo. Um relance. Um olhar.
“Será que ela também pensou nisso o dia todo?”, pensou, apoiando o cotovelo na mesa e levando a mão à boca, como se aquilo pudesse esconder o sorriso involuntário que começava a se formar.
Quase sem querer, seus olhos foram atraídos para a porta de vidro do gabinete. Estava fechada. Cortinas levemente puxadas, mas não totalmente. Dava pra ver o vulto de alguém andando lá dentro.
Valentina engoliu em seco, com o coração acelerando. O simples pensamento de estar a poucos metros daquela mulher bastava pra deixá-la em alerta. Um torpor bom. Perigoso.
— Ei — sussurrou uma voz próxima.
Ela virou levemente o rosto.
Era o Léo. Moreno claro, magro, cabelo cacheado preso num coque baixo. Estava com um crachá torto pendurado no pescoço e uma expressão divertida nos olhos.
— Melhor parar de olhar pra porta assim. Ouvi dizer que a chefe hoje tá com sangue nos olhos — ele disse, com um meio sorriso debochado.
Valentina ficou vermelha instantaneamente, arregalando os olhos e tirando a mão da boca. Desviou o olhar rapidamente da porta e baixou os olhos para o teclado.
— Eu não tava... — começou, quase num sussurro.
— Tava sim — ele deu uma risadinha baixa. — Relaxa, só tô te salvando. Hoje já saiu um assessor chorando de lá. E olha que era homem barbado.
Valentina não respondeu. Só deixou escapar uma leve risada nervosa, como quem agradece o aviso mas ainda digere a informação. Achava engraçado como todo mundo ali parecia saber quando Verena estava num dia ruim. Era como uma aura, um clima que se espalhava pelo ar.
Ainda assim… ela queria vê-la. Nem que fosse por um segundo.
— Aqui, ó — Léo entregou uma pasta com algumas folhas grampeadas nas mãos de Valentina. — Era pra eu levar isso hoje. Falaram que você não vinha.
Ela pegou os papéis, franzindo a testa.
— Ué, por quê?
— Não sei. Só disseram que você não viria e passaram pra mim. Mas ainda bem que cê veio. Eu, hein… com o clima que tá ali dentro? — ele apontou com o queixo na direção do gabinete. — Eu tava só esperando o pior.
Valentina deu um sorriso tímido, olhando para as folhas. Eram seus relatórios de acompanhamento dos atendimentos da semana anterior. Nada demais. Mas, por algum motivo, suas mãos suavam.
Ia vê-la.
Verena.
E, de repente, o pensamento que segundos antes causava uma euforia quente, se transformou numa ansiedade cortante. O coração disparou. O estômago deu aquele nó estranho, uma mistura de medo e desejo.
“Será que ela vai tentar me beijar de novo?”, pensou, e a mente imediatamente respondeu com a lembrança da língua quente invadindo sua boca no sonho da madrugada. Sentiu o rosto queimar.
Sacudiu a cabeça, tentando afastar os pensamentos. Foco.
— Tá no mundo da lua, Valen? — Léo perguntou, sorrindo. — Se for entrar com essa cara aí, cuidado, viu? Se der um vacilo, tu sai de lá frita.
Valentina soltou uma risadinha nervosa. Tinha vontade de responder com alguma piada, mas a garganta seca não ajudava. Nesse momento, a maçaneta da porta do gabinete girou e a porta se abriu de supetão. Valentina deu um pulo na cadeira, instintivamente, e segurou os papéis com força, como se fossem um escudo. Mas não era Verena.
Era Rafaela.
A ruiva saiu com uma pasta preta debaixo do braço, celular na outra mão. Vestia uma calça de alfaiataria e uma blusa de gola alta. Passou o olhar rapidamente pela sala, notando os olhares tensos de alguns estagiários, e parou os olhos em Valentina.
— Oi — disse num tom neutro, com um leve sorriso de canto de boca.
— Oi — Valentina respondeu, quase num sussurro.
Rafa seguiu pelo corredor e, assim que desapareceu do campo de visão, Valentina respirou fundo. Levantou-se, endireitando a blusa, e segurou os relatórios com as duas mãos.
Olhou pra Léo. Ele não disse nada, apenas juntou as mãos e simulou um gesto de oração, como quem desejava sorte.
Ela deu um passo até a porta de vidro e bateu duas vezes, firme.
— Entra — ouviu-se uma voz seca, do outro lado.
O coração deu um tranco. Valentina apertou os dedos ao redor da pasta, virou a maçaneta e entrou.
Verena estava sentada à mesa, braços cruzados, a cabeça levemente inclinada para o lado enquanto ouvia — ou tentava ouvir — o assessor à sua frente explicar pela terceira vez o motivo do atraso no levantamento dos dados. Ela batia o dedo no tampo da mesa, o cenho franzido e a mandíbula tensa.
— Chega, Matheus. Dá um jeito nisso e me manda até o fim do dia — disse, fria. — Ou melhor, até o fim da tarde. Não vou ficar repetindo.
O rapaz assentiu com um “claro, deputada”, pegou seus papéis e saiu quase tropeçando na garota ao passar pela porta.
Verena soltou um longo suspiro, fechando os olhos por um instante. Sentia a cabeça latejar. Estava cansada, saturada, entediada. E o pior: com aquela sensação incômoda no peito… porque, supostamente, hoje não veria Valentina. Ela mesma tinha dito que não era preciso a menina vir, depois de tudo. E tinha se convencido de que seria melhor assim. Mais seguro.
Mas, quando a porta se abriu e ela ergueu os olhos esperando mais um rosto aleatório, o mundo parou por um segundo.
Valentina.
Ali, parada com os relatórios nas mãos, os cabelos um pouco bagunçados e os olhos assustados. E linda. Irritantemente linda.
Verena engoliu seco. O corpo inteiro reagiu antes mesmo da mente conseguir organizar uma linha de pensamento. O toque ainda estava fresco. O cheiro. A boca. Aquela boca.
“Droga…”
Demorou tanto a reagir que percebeu que Valentina hesitava, sem saber se podia entrar.
— Pode entrar — disse, finalmente, tentando soar neutra. Mas a voz saiu mais suave do que o planejado.
Valentina entrou com passos curtos, quase contidos, como se pisasse num lugar sagrado. Evitava olhar direto nos olhos de Verena, embora sentisse aquele olhar todo sobre ela.
— Eu… trouxe os relatórios que estavam pendentes.
— Achei que você não viria — disse a deputada, tentando manter o tom neutro. — Eu mesma tinha dispensado você. Fiquei surpresa de te ver aqui.
— Eu... achei que devia vir — respondeu a menina, com a voz baixa.
Verena assentiu. O olhar demorou um pouco demais nos olhos da jovem. Quase não conseguiu se concentrar quando pegou os relatórios da mão dela. Havia erros, alguns pontos mal desenvolvidos. Duas datas trocadas. Mas ela não se importava. Em outro dia, outra pessoa teria levado uma bronca na hora. Mas ali, com Valentina parada na sua frente, o mundo parecia menos rígido.
— Está tudo bem com você? — perguntou, com um leve franzir na testa. — Depois de ontem...
Valentina não conseguiu responder. Apenas assentiu. O rosto já quente, as mãos suando.
— Se não estiver bem, não precisa ficar até o fim do expediente — completou Verena. — Pode sair mais cedo. Ou agora, se quiser.
— Tá tudo bem — Disse a garota rápido demais.
Verena quase sorriu, mas se conteve. Percebeu que talvez estivesse avançando. Limpou a garganta, recostando-se na cadeira. Pegou uma caneta, tentou adotar o tom profissional de sempre.
— Hm. Tem alguns ajustes aqui. Depois veja com o Léo esses dois pontos — apontou, de forma vaga, sem de fato olhar para os erros.
Valentina assentiu de novo, quase muda.
Verena segurava a vontade de pedir desculpas, de tocar nela, de dizer algo que não podia. Mas não disse nada. E talvez fosse melhor assim.
Final de tarde – Assembleia Legislativa
O dia parecia ter se arrastado para ambas. Valentina passou as horas com o coração acelerado, os pensamentos desorganizados e uma concentração que mal deu as caras. Cada passo no corredor era uma chance de ver Verena — e cada chance não aproveitada era uma mistura de alívio e frustração.
Já Verena, mesmo imersa em reuniões e decisões, sentia a mente escapar, voltar para o que não devia. O clima com Valentina ainda latej*v* dentro dela. A tensão não resolvida, o desejo contido, a culpa, tudo bagunçado num nó que ela não sabia mais como fingir que não existia. No fim do dia, sentia-se exausta, como se tivesse vivido uma semana inteira em poucas horas.
Enquanto caminhava para o carro com Rafaela, soltou um longo suspiro.
— Tá com cara de quem vai pra forca — comentou a amiga, ajeitando a bolsa no ombro.
— Jantar com os sogros. De surpresa. — respondeu Verena, com um cansaço que transparecia até no andar.
— Nossa. Tô até com dó. Quer que eu invente uma denúncia anônima pra te tirar de lá?
Verena riu de leve, balançando a cabeça.
— Não. Eu encaro. Vai ter vinho.
— Vai ter performance, né? A deputada e a esposa perfeita. — Rafaela fez uma careta. — Você devia ganhar um Oscar.
Verena não respondeu. Apenas deu aquele meio sorriso cansado e se despediu com um aceno breve antes de entrar no carro.
Casa de Verena e Silvia – por volta das 20h40
Assim que Verena empurrou a porta da sala e entrou, ouviu a voz firme e calorosa de Álvaro, sentado com elegância no sofá, copo de whisky em mãos, postura relaxada, mas impecável.
— Olha só quem chegou… A estrela da política paulista — disse com um sorriso orgulhoso. — Já estava começando a achar que o trânsito tinha te sequestrado.
Verena retribuiu com um sorriso discreto, cansado, mas genuíno.
— Boa noite, Álvaro… trânsito, reunião, caos — respondeu, tirando os sapatos discretamente e deixando a bolsa perto do aparador. — Mas promessa é promessa. E eu prometi que vinha jantar com vocês.
— Cumpridora de palavra, como boa política deve ser — brincou ele, com uma leveza que soava respeitosa. — Servi um whisky pra gente brindar a noite, aceita?
— Daqui a pouco, só vou ali dar um beijo na cozinheira principal — Disse Verena, já seguindo para a cozinha.
Álvaro apenas assentiu, retomando um gole pequeno do copo, satisfeito com a presença da nora.
Na cozinha, Silvia e a mãe estavam concentradas. O cheiro de tempero fresco enchia o ar com aquele aconchego que só comida caseira bem feita tem. Silvia estava com um avental branco por cima do vestido leve, rindo baixinho enquanto cortava ervas na tábua.
Verena se aproximou em silêncio, passou a mão carinhosamente pela cintura da esposa e, sem dizer nada, encostou os lábios no topo da cabeça dela. Silvia sorriu imediatamente, olhos ainda baixos, como se aquele toque falasse mais que qualquer palavra.
— Boa noite dona Livia. Não sei qual o cardápio, mas o cheiro é maravilhoso. Silvia te deixou chegar perto das panelas dela?
— Depois de muito negociar consegui cortar alguns tomates. – Todos riram, Silvia desmentindo o exagero.
— Achei que fosse chegar só no fim do jantar — disse, baixinho.
— Não te daria esse desgosto — murmurou Verena, com voz baixa, só para ela. — Você sabe que não é a comida que me traz pra casa.
Silvia segurou por um segundo a mão de Verena, com aquele brilho no olhar que dizia mais sobre a paz de tê-la ali do que qualquer discurso. A mãe sorriu discretamente, enquanto mexia uma travessa de legumes no forno.
— Vai lá, conversa com meu pai, ele estava animado com a sua vinda — disse Silvia. — Mas não deixa ele te embebedar logo de cara, hein?
Verena riu leve e voltou à sala, onde Álvaro já ajeitava o copo extra em cima da mesinha de centro.
— Agora sim — disse ele, estendendo o copo. — Senta aí. Me conta… essa comissão de orçamento vai sair ou vai morrer na praia como sempre?
Ela se acomodou na poltrona ao lado, cruzou as pernas com elegância e pegou o copo.
— Tá andando. Mas tudo em Brasília anda meio capenga, né? Muita gente querendo aparecer, pouca gente querendo resolver.
Álvaro deu um leve sorriso de lado.
— Política virou vitrine de ego. Às vezes me pergunto se alguém lá dentro ainda lembra que representa pessoas.
Verena assentiu.
— Alguns lembram. Mas é difícil remar contra a maré quando o sistema recompensa justamente o oposto.
Eles seguiram conversando sobre os bastidores da política por alguns minutos, com aquela mistura de informalidade articulada e um respeito mútuo que dava gosto de ver. Até que, com o olhar voltado para a cozinha, Álvaro fez uma pausa, girou o copo devagar entre os dedos e comentou:
— Sabe, às vezes eu olho essa casa, minha filha na cozinha, você chegando do trabalho, nós aqui conversando como sempre… e penso que só falta uma coisa.
Verena ergueu uma sobrancelha, curiosa.
— E o que seria?
Álvaro sorriu, sem ironia, apenas com a naturalidade de quem fala do que deseja.
— Uma criança correndo por aqui. O resto vocês já construíram. Tá tudo aí.
Verena permaneceu em silêncio por um segundo. Depois olhou para o copo e sorriu de lado, com certo peso no olhar.
— É um desejo legítimo. Mas nem tudo se encaixa no tempo que a gente quer, né?
Álvaro apenas concordou com a cabeça, sem pressionar. E, como se sentisse que a conversa podia parar por ali, mudou sutilmente de assunto.
— Mas enfim… você tá fazendo um trabalho sério, Verena. Fico feliz de ver minha filha ao lado de alguém que honra o que faz.
— Obrigada, Álvaro. Isso significa mais do que você imagina.
E naquele breve momento de silêncio que se seguiu, Verena olhou novamente em direção à cozinha, onde Silvia ria com a mãe. E sentiu, por dentro, a inquietação de quem sabe que está tentando sustentar um castelo em meio a uma tempestade.
Sala de jantar – cerca de 21h10
A mesa estava impecavelmente posta, com uma toalha clara, taças de vinho, travessas bem montadas e uma iluminação suave vinda do pendente acima. O aroma da comida preenchia o ambiente de maneira acolhedora e sofisticada, como aquelas noites de domingo que pareciam roubadas de um filme. Todos já estavam sentados. Silvia ao lado da esposa, Verena na cabeceira, e Álvaro ao lado da esposa e de frente para filha.
O jantar começou com um clima leve. Conversas sobre o prato, risos pontuais sobre a época em que Silvia não sabia sequer fritar um ovo. Verena observava tudo com um misto de carinho e cansaço, o olhar fixando vez ou outra no rosto da esposa, que parecia genuinamente feliz.
— Essa receita aqui é da minha mãe — comentou a sogra, servindo um pouco mais de arroz para Álvaro. — E a Silvia aprendeu direitinho, né, Verena?
Verena assentiu, com um sorriso curto.
— Não posso reclamar. Já disse a ela pra investir em um restaurante, não faltariam elogios.
Silvia riu, satisfeita, mas desviou o olhar com aquele rubor discreto de quem ainda se derretia com um elogio da mulher.
A conversa seguia suave, alternando amenidades, pequenas recordações e comentários sobre a semana. Até que Álvaro, já com o segundo copo de vinho em mãos, apoiou os braços na mesa, cruzou os dedos e lançou o tema com sua típica compostura descontraída.
— Vi uma matéria hoje no fim da tarde… mais um escândalo com verba de merenda escolar. Em um estado do norte, se não me engano. Desvio milionário. — Ele fez uma pausa, o olhar agora mais sério. — Me pergunto onde foi parar o mínimo de humanidade em quem entra pra vida pública.
Silvia levantou o olhar de imediato, como se quisesse blindar Verena de qualquer associação, antes mesmo que a conversa tomasse forma.
— Às vezes parece que a corrupção virou regra, e não exceção — disse ela, olhando para o pai, mas com um gesto quase protetor em direção à esposa.
Álvaro assentiu, olhando para Verena.
— É por isso que eu sempre falo: no meio desse pântano, é raro encontrar alguém com decência. Por isso admiro teu trabalho, Verena. Você continua fazendo o que acredita, sem se contaminar com o sistema.
O elogio caiu sobre a mesa com o peso de uma taça de cristal. Verena engoliu seco. A mão dela apertou de leve o garfo. Ela sustentou o olhar de Álvaro, mas havia algo em seus olhos que titubeou — quase imperceptível, mas ali.
— Eu agradeço, Álvaro… de verdade. Mas às vezes… — ela deu uma pausa breve, respirando com cuidado — …às vezes manter a integridade exige mais do que força. Exige silêncio. E isso pode ser mais cruel do que parece.
Silvia a encarou com atenção, o semblante ainda orgulhoso, mas um traço de preocupação atravessando o sorriso. Ela sabia reconhecer quando Verena estava cansada — e algo naquela resposta tinha o peso de mais do que apenas trabalho.
— O importante é que você continua. — disse Álvaro, levantando a taça sutilmente. — E eu continuo acreditando que tem gente boa nesse meio. Enquanto existirem pessoas como você, ainda vale a pena esperar algo da política.
Verena retribuiu o gesto com um levantar breve da taça, o rosto mantendo a compostura, mas o estômago levemente revirado. A frase do sogro ecoava: “alguém com decência...”. E, por um instante, a imagem da planilha adulterada, das contas fantasmas e da proposta feita por aquele empresário corrupto voltaram com força.
Ela desviou o olhar para o prato. Cortou um pedaço da carne com precisão, como quem tenta se concentrar em algo mundano para calar o próprio barulho interno.
Silvia, ao lado, notou a tensão no maxilar da esposa. Estendeu a mão por debaixo da mesa e encostou suavemente na perna de Verena. Um toque leve, sutil, quase imperceptível para os outros. Mas que dizia: “Eu tô aqui”.
Verena devolveu o gesto com um toque dos dedos sobre a mão dela. E pela primeira vez na noite, permitiu-se um sorriso verdadeiro.
Mas por dentro, a inquietação permanecia.
Gabinete de Verena – Início da tarde do dia seguinte
A manhã tinha passado arrastada para Valentina. Apesar de ter dormido cedo, sentia o corpo ainda cansado, como se o sono tivesse sido leve demais. Na escola, nem conseguiu prestar atenção direito na aula de matemática. Carol comentou que ela parecia em outro planeta, mas a única coisa que Valentina conseguiu responder foi um “tô com a cabeça cheia”.
E estava mesmo.
Desde o jantar do dia anterior — que a deixou com um nó no peito sem saber explicar por quê — até aquele começo de tarde, o coração não desacelerava. Na mochila, entre os cadernos, ela mantinha um pequeno pedaço de papel dobrado — rabiscado discretamente no fim da aula de português, ainda pela manhã. Tinha começado como uma distração… uma brincadeira com palavras… mas no fundo, sabia que estava pensando em Verena quando escreveu.
“Parece que meus olhos têm vontade própria quando você entra em uma sala.”
Simples. Vago. Mas ao mesmo tempo, carregado demais para estar solto por aí.
Ela nem pensou em jogar fora. Mas também não achava que aquilo era digno de ser guardado. Então ficou ali, dobrado, no meio de uma das divisórias do fichário. Retirado com cuidado para quem ninguém visse aquela prova, o papel já meio amassado, repousava ao lado do porta-lápis.
Pouco depois de ter se organizado, Leo avisou que Verena tinha solicitado uma revisão rápida de um relatório que seria apresentado numa reunião de última hora. Estavam todos com pressa, então Valentina se apressou. Imprimiu os documentos, conferiu o anexo de tabelas, grampeou, colocou no envelope da ALESP e correu para deixar na mesa da Rafaela, como era o protocolo.
O que Valentina não percebeu foi que o papel dobrado — aquele pequeno bilhete — tinha caído junto às páginas impressas, escorregando discretamente para dentro da última folha do relatório.
Gabinete de Verena – 20 minutos depois
Verena estava sentada à mesa, de blazer claro por cima de uma blusa preta e o cabelo solto como de costume. Olhava com impaciência o relatório que tinha em mãos, enquanto Rafaela, do outro lado da sala, mexia no celular em silêncio.
— Essas tabelas estão estranhas... — murmurou Verena, folheando mais uma vez. — Que fonte ridícula é essa? Parece um panfleto de pizzaria.
Rafaela levantou uma sobrancelha, mas não comentou. Sabia que a amiga estava de péssimo humor desde cedo. O jantar com os sogros — embora tivesse corrido bem — drenou a energia que ela já não tinha.
Foi então que Verena virou a última folha do relatório e viu algo dobrado ali. Um pequeno pedaço de papel, desalinhado com o resto, amassado de forma suspeita. Pegou com dois dedos, como quem segura algo sujo, e abriu devagar.
Quando leu, sentiu um frio no estômago.
“Parece que meus olhos têm vontade própria quando você entra em uma sala.”
A pulsação acelerou. Por um momento, tudo ao redor pareceu embaçado.
Ela ficou imóvel por alguns segundos, encarando o bilhete, tentando entender o que significava aquilo. Era... uma provocação? Uma ameaça? Alguém tinha descoberto? Alguém do estágio sabia?
— Rafa — disse de repente, com um tom mais seco. — Me dá um minuto. Fecha a porta quando sair.
Rafaela não questionou. Levantou-se, ajeitou o cabelo ruivo em um coque desleixado e saiu, fechando a porta atrás de si.
Verena ficou sozinha. O bilhete ainda entre os dedos. Encostou-o na mesa, alisando a folha como se tentasse encontrar ali alguma pista sobre quem o escreveu. Mas a caligrafia... era familiar. Muito familiar.
Seu coração pulou no peito.
“Não. Não pode ser.”
Abriu a gaveta, puxou o relatório completo de novo. Conferiu o nome no cabeçalho da folha de revisão.
Valentina Moraes.
Verena encostou na cadeira, encarando o teto por alguns segundos. A cabeça já girava.
“Ela escreveu isso... pra mim?”
Mas a paranoia não dava trégua. Talvez fosse tudo uma armadilha. Talvez tivessem colocado isso ali pra mexer com ela. Ou pra dar um recado. Ou pra ver se ela reagia.
Ela se levantou de súbito, ainda segurando o papel. Foi até o interfone da sala de apoio e apertou o botão.
— Chama a Valentina aqui. Agora.
Sala de apoio – Minutos depois
Valentina olhou assustada para Leo.
— Eu? Ela me chamou?
— Uhum — respondeu ele, baixo. — De novo. E olha... a Rafa saiu da sala com a cara fechada. Boa sorte.
Valentina engoliu seco. Caminhou até a porta, bateu duas vezes. Ouviu o "entra" seco de sempre.
Abriu devagar.
Verena estava em pé, de braços cruzados, perto da janela. A expressão dela era indecifrável.
— Valentina — disse, sem rodeios. — Esses relatórios passaram por mais alguém antes de chegarem a mim?
A estagiária arregalou os olhos, surpresa com a pergunta.
— N-não, senhora... fui eu quem finalizou e imprimiu... — engoliu em seco. — Eu deixei na mesa da assessora, como sempre...
Verena se virou devagar, caminhando até a mesa. Pousou o papel dobrado ali, empurrando com dois dedos até a beirada, como se fosse uma prova.
— E isso aqui? Caiu do relatório. O que é isso?
Valentina olhou o papel. Seu rosto perdeu a cor na hora. Sabia o que era.
— Ai, meu Deus... — murmurou.
Verena estreitou os olhos.
— Então foi você quem escreveu isso?
— F-fui… mas… era só uma coisa pessoal — a menina começou a gaguejar. — Foi um... bilhete... eu escrevi sem pensar... juro… não era pra ninguém ler…
Verena cruzou os braços, séria.
— Pessoal? — cortou, ríspida. — Dentro de um relatório oficial? Com um conteúdo que pode ser interpretado de mil maneiras? Você tem noção do risco que isso representa?
A voz era dura. Mas por dentro, Verena lutava para não explodir. Não só pelo bilhete. Mas pelo que sentia. Pela confusão que a engolia desde que leu aquelas palavras.
Valentina encolheu os ombros, com os olhos marejados.
— Me desculpa... por favor. Eu não queria...
Verena a olhou por um momento longo. O silêncio entre as duas era denso, sufocante.
Ela então respirou fundo e desviou o olhar.
— Pode voltar ao trabalho.
Valentina assentiu, sem voz. Saiu devagar, como se carregasse nas costas o peso do mundo.
Verena ficou sozinha, com o bilhete entre os dedos novamente.
“Parece que meus olhos têm vontade própria...”
E os dela também, pelo visto.
...
Valentina voltou para a sala de apoio em silêncio. Ninguém reparou de imediato. Leo estava concentrado no computador, e a outra estagiária, Bianca, mexia no celular. Mas, para ela, o mundo parecia ter parado.
Sentou-se à mesa tentando parecer natural, mas o corpo tremia. O rosto quente, o coração batendo nas têmporas.
“Burra. Idiota. Como você deixou isso acontecer?”
Abriu o notebook, fingindo revisar um relatório antigo, mas a tela estava embaçada. Quase não via as palavras. As mãos tremiam, e por um segundo achou que fosse chorar ali mesmo, diante de todos.
Fechou os olhos, respirou fundo. Tentava se convencer de que nada grave tinha acontecido, que Verena apenas a advertiu, que era só isso.
Mas o olhar dela…
Era como se tivesse enxergado mais do que deveria.
Gabinete de Verena – Logo em seguida
Verena, por sua vez, permanecia em pé. O papel ainda estava ali, na ponta da mesa, como se fosse radioativo.
Ela andou até ele, hesitou, pegou-o de novo. Dobrou uma vez, depois outra. E mais outra. Até que o bilhete virou um quadradinho minúsculo entre os dedos. Caminhou até o lixo, parou a centímetros de jogá-lo fora... mas não conseguiu.
Guardou na gaveta, impulsivamente. Não queria guardar. Mas também não queria se desfazer daquilo. Não ainda.
Sentou-se na cadeira com um suspiro frustrado. Passou as mãos no rosto, depois nos cabelos. Sentia-se ridícula.
"É uma menina. Uma estagiária. Isso não pode… não pode estar acontecendo."
Mas estava. E agora, a paranoia se misturava com algo pior: o desejo.
Não o desejo carnal, imediato — embora ele estivesse ali, latente — mas algo mais profundo. A inquietação de se sentir vista. Desejada. Alvo de uma admiração pura, mesmo que ingênua. Coisa que há tempos não sentia com Silvia.
Mas aquilo era um problema. Um baita problema. Valentina não fazia ideia de quem Verena realmente era. De até onde estava metida. Do tipo de sujeira que escondia sob os discursos bonitos e a reputação ilibada.
Ela não podia se permitir isso. Nem agora, nem nunca.
Rafaela entrou devagar, trazendo o celular em mãos.
— Tá tudo bem aí? — perguntou, num tom mais cuidadoso.
Verena levantou os olhos, deu de ombros.
— Tô viva, o que já é alguma coisa.
Rafaela percebeu o incômodo no ar, mas não quis insistir. Pegou uma caneta na mesa e ia saindo, quando parou na porta.
— Ah, só pra te lembrar: amanhã tem aquela visita com o pessoal da Secretaria de Educação. Quer revisar o discurso hoje ou prefere chegar cedo amanhã?
Verena apoiou o cotovelo na mesa, massageando a têmpora com os dedos.
— Amanhã. Hoje eu já... já estou no limite.
Rafaela assentiu e saiu.
Sozinha de novo, Verena abriu a gaveta onde tinha escondido o bilhete. Mas fechou logo em seguida. Ficou alguns segundos olhando para ela fechada.
Não tocou no papel dessa vez. Mas também não conseguia tirá-lo da cabeça.
Casa da Valentina – No fim da noite
Já em casa, Valentina mal conseguia prestar atenção no noticiário da TV. O pai falava algo sobre os preços dos alimentos, enquanto a mãe cortava legumes na cozinha. Isadora brincava com um estojo de lápis na sala, desenhando uma princesa torta com vestido azul.
Valentina queria estar presente. Queria se sentir ali. Mas ainda estava presa naquela sala fechada, com o olhar cortante da deputada sobre ela.
Após o jantar, foi direto pro quarto. Sentou na cama, abraçando o travesseiro, e ali ficou por vários minutos.
Tentou escrever no diário, mas as palavras não vinham. Pegou o celular, abriu o bloco de notas, escreveu:
“Ela me viu. Eu sei que me viu. Mas o que ela viu?”
Apagou logo em seguida.
Deitou. Apagou a luz. E ficou ali, no escuro, ouvindo os sons da casa. A TV baixinha na sala, a água pingando da torneira da pia, o barulho distante de um ônibus na rua.
E o coração, inquieto, batendo como um segredo que se recusa a se calar.
Apartamento de Verena e Silvia – Quase meia-noite
O apartamento estava silencioso. Silvia já havia ido dormir — ou fingia muito bem. Estava deitada de lado, virada para a parede, com o abajur desligado e o ar-condicionado no modo silencioso. Só o brilho azul do painel piscava suavemente no escuro.
Verena ficou ali, na sala, sozinha. Sentada no sofá com a camisa social meio aberta, os botões superiores soltos e as mangas dobradas até os cotovelos. Segurava um copo com dois dedos de whisky, girando o líquido devagar, sem pressa.
A cabeça pesava. Os olhos ardiam. O dia tinha sido insuportável. E ainda assim, tudo o que conseguia pensar era na menina.
Valentina.
Ela se odiava por isso.
Encostou a cabeça no encosto do sofá e fechou os olhos. Tentou se lembrar de tudo o que tinha feito naquela tarde — os relatórios, a reunião com o jurídico, a bronca que deu num assessor... mas tudo voltava pra ela. Pra Valentina. Praquela folha escrita com caligrafia miúda e palavras simples demais pra terem tanto poder.
Não era um bilhete ameaçador. Não era uma denúncia. Não era sequer uma confissão. Mas era íntimo demais pra estar ali. Ingênuo demais pra ser coincidência. E verdadeiro demais pra ser ignorado.
“Será que ela sente alguma coisa?”
“Será que foi um deslize, ou um convite?”
E pior: por que aquilo a desestabilizava tanto?
Levou o copo à boca, deu um gole. O gosto queimou a garganta, mas não fez nem cócegas na tensão que carregava no peito.
— Que droga, Verena… — sussurrou, sozinha.
Lembrou do dia do quase assalto. Do jeito que segurou a menina no carro, com força. Da mão pequena apertando a dela com medo. Do cheiro do cabelo molhado, da pele limpa depois da chuva. E daquela boca... tão perto da sua.
Ela quase a beijou.
A lembrança ainda era vívida. Ainda causava um arrepio que descia pelas costas. Naquele dia, ela tinha perdido o controle por um segundo. Só um. Mas sabia que, se a menina tivesse se inclinado um pouco mais, ela não teria resistido.
E agora, com esse bilhete... era como se a linha que já estava tênue tivesse começado a se romper.
Verena se levantou. Foi até a janela, encostou a testa no vidro. As luzes da cidade piscavam lá embaixo, indiferentes ao caos que sentia por dentro.
Ela não podia se permitir isso. De jeito nenhum.
Não era só por Silvia. Nem só por Valentina. Era por ela mesma. Pela vida que construiu, pelas mentiras que sustentava, pelos crimes dos quais não podia mais fugir. Se alguém soubesse — se alguém desconfiasse — tudo desmoronaria. E rápido.
Mas, no fundo, o que mais a assustava... era o quanto gostava daquela sensação. O quanto, por segundos, se sentia viva de novo quando Valentina estava por perto. Olhando pra ela como se enxergasse algo que nem ela mesma via há tempos.
Verena fechou os olhos. Respirou fundo. Terminou o whisky.
E, mesmo sem admitir em voz alta, soube: o problema não era o bilhete.
O problema era o quanto queria que fosse verdade.
Assembleia Legislativa — Final da tarde de sexta-feira
A notícia havia estourado no início da tarde: uma operação do Ministério Público investigava um esquema de desvio de verbas da merenda escolar em uma cidade do interior paulista. Nada diretamente ligado a Verena, mas o simples fato de estar em um esquema semelhante fez seu estômago gelar.
No gabinete, o ambiente era tenso. Rafaela, atenta, observava o humor da chefe decair em níveis perigosos, mas evitava comentar. Preferiu dar espaço — ela sabia quando Verena precisava de silêncio.
Na sala de apoio, Valentina chegou mais tarde que o habitual. Estava pálida, mas com o rosto corado, como se lutasse contra alguma emoção que não queria admitir. Evitou até mesmo olhar para a porta de vidro do gabinete. Sabia o que causara tudo. E o pior — sabia que era seu bilhete. “Por que eu escrevi aquilo? Que vergonha.”, pensava, encolhendo os ombros na cadeira.
Leo tentou puxar assunto, mas notou que a amiga estava num mundo à parte. Preferiu não insistir.
Dentro do gabinete, Verena repassava papéis com as mãos trêmulas. A operação não a envolvia, mas era um lembrete do quanto tudo podia desmoronar. E, pior: não conseguia parar de pensar no maldito bilhete. A caligrafia era de Valentina. O conteúdo? Ambíguo demais pra ser apenas um erro inocente.
A sala estava silenciosa, exceto pelo leve zumbido do ar-condicionado. A deputada permanecia sentada à mesa, uma das mãos apoiando o queixo, os olhos fixos no papel dobrado diante dela. Não era mais só o conteúdo que a perturbava — aquele bilhete, tão pequeno, quase infantil, mas perigoso em sua inocência — era a letra, o tom, a origem. A letra era claramente de Valentina.
Ela fechou a pasta com força. A verdade era que mais do que medo jurídico, havia medo emocional. Tinha quase beijado aquela menina. Sentido o perfume, o calor do corpo. E agora… a ideia de que Valentina talvez nutrisse algo por ela — ainda que fosse só uma paixonite de adolescente — a tirava completamente do eixo.
Verena fechou os olhos por um instante. Tudo indicava que o papel fora escrito por impulso e perdido por acidente. Mas e se não? E se Valentina estivesse tentando dizer algo? Ou pior… se alguém estivesse usando aquela mensagem com intenção?
Ela se levantou da cadeira bruscamente, empurrando-a pra trás com força contida, e começou a andar pela sala. Andava como quem tentava fugir dos próprios pensamentos. Pensava no quanto tudo aquilo era surreal: ela, uma deputada casada, envolvida até o pescoço num esquema que poderia colocá-la atrás das grades... se permitindo sentir algo por uma garota de 16 anos. E agora, o universo a respondia com um bilhete desses?
“Droga, Verena. Você quase beijou essa menina. No carro. No escuro. Você queria. E agora tá surpresa por ela talvez sentir algo?” — se perguntou mentalmente, com raiva de si mesma.
Mas não era isso que a deixava sem ar.
O problema era: Valentina sabia do esquema? Sabia quem ela era de verdade? E, se sabia… o que faria com isso?
Ela passou as mãos pelos cabelos soltos, frustrada. Em qualquer outro cenário, Verena daria risada. "Um bilhete bobo de uma adolescente apaixonada.” Mas naquele contexto, cercada de riscos, processos e investigações à espreita, até um bilhete parecia dinamite.
Ela olhou para o relógio: 18h08. A maioria dos funcionários já havia ido embora. A última reunião do dia havia sido cancelada. Foi até a porta de vidro e espiou discretamente. A sala de apoio estava vazia, exceto por Rafaela, sentada ao fundo com os pés em cima da cadeira e fones de ouvido.
Verena respirou fundo. Pegou o celular e digitou rápido:
Verena:
"Preciso falar com você. Amanhã, mais cedo. No meu gabinete. Não se atrase."
Apagou. Escreveu de novo.
Verena:
"Valentina, precisamos conversar. Me procure amanhã assim que chegar."
Leu, hesitou… e enviou.
Enquanto a mensagem era entregue, ela se jogou de volta na cadeira. O coração batia acelerado. Não era medo. Não só. Era a sensação de perder o controle, de ver a parede que construiu começar a rachar por algo que nem sabia nomear.
E o pior?
A parte de si que queria ver Valentina novamente. Que desejava aquela presença, aquele olhar meio assustado e meio encantado. Aquela doçura que quebrava a rigidez do seu mundo cinza.
Verena fechou os olhos. Porque, no fundo, ela sabia: se a menina sentia mesmo algo por ela — por mais platônico que fosse — as coisas iam se tornar ainda mais difíceis. Muito mais.
"Você tá se ferrando sozinha, Castilho."
Mas não havia mais volta. E o controle… esse já começava a escapar por entre os dedos.
...
Casa da Valentina
O portão bateu com um estalo seco. Valentina subiu os dois degraus até a porta de casa com o corpo ainda no automático, mas a mente a mil. Tinha sido um dia inteiro tentando ignorar a culpa que latej*v* no fundo da consciência. E agora, no instante em que pisou na sala, o celular vibrou no bolso da calça jeans.
Ela parou, como se tivesse levado um choque. Tirou o celular com cuidado, já com o coração disparado, e viu a notificação.
Verena Castilho.
Valentina quase deixou o aparelho cair.
Abriu a mensagem sem respirar:
Ficou parada no portão por alguns segundos, sentindo uma alegria eufórica e, ao mesmo tempo, um medo que parecia um soco no estômago. O bilhete. Aquela besteira escrita no impulso, quando sua cabeça estava flutuando no cheiro do banco de couro e na boca quase encostando na sua.
“Burra, burra, burra”, sussurrou para si, enquanto entrava em casa.
Na cozinha, a mãe preparava o jantar, e o pai assistia jornal com o som alto. Isadora reclamava de dever de casa. Tudo estava normal. Menos ela. Valentina parecia se mover em câmera lenta. Subiu pro quarto, fechou a porta, jogou a mochila na cama e encostou as costas na parede. Sorriu. Chorou. E então riu de novo, abafando a risada com as mãos.
— Eu sou muito idiota… — murmurou.
ALESP – 13h09 | Sala de Apoio
Valentina nem bem sentou na cadeira — o coração ainda disparado da viagem de ônibus, das escadas, de tudo — e já sabia o que precisava fazer.
Verena havia mandado a mensagem no fim da noite anterior. Discreta. Direta.
"Valentina, precisamos conversar. Me procure amanhã assim que chegar."
Sem rodeios. Mas com toda a força do mundo.
Ela nem tirou o casaco. Ajeitou mecanicamente os papéis sobre a mesa, tentando manter o controle — mas os dedos tremiam e o estômago parecia se contorcer.
Sabia. Sabia que o bilhete ainda era a razão. Mesmo depois da conversa que tiveram. Mesmo depois de Verena ter dito para ela “tomar cuidado”.
Ela levantou, foi até a porta do gabinete e bateu com a mão leve, duas vezes.
— Entra — veio a voz de Verena, já esperando.
Gabinete de Verena – 13h12
A porta se fechou atrás de Valentina com um clique seco.
Verena estava de pé agora, de costas para a porta, observando a vista da janela parcialmente aberta. Usava uma blusa escura, as mangas dobradas, o cabelo solto e ligeiramente desarrumado. Não virou de imediato.
— Fechou a porta? — perguntou.
— Sim, senhora.
Verena se virou devagar, os olhos sérios. Nenhum sorriso. Nenhuma suavidade. Os olhos por trás da armação, avaliando a expressão dela — não era desconfiança, era precisão.
— Eu queria retomar uma conversa que a gente tivemos há alguns dias.
Valentina sentiu a garganta secar. O estômago afundar.
— Sobre o bilhete?
A deputada assentiu com a cabeça, andando devagar até a mesa. Puxou a cadeira, mas não se sentou. Apenas apoiou os dedos sobre o tampo de vidro. Valentina sentia o peito pesado. A forma como Verena a olhava... aquilo não era só sobre trabalho.
— Sabe, esses últimos dias têm sido... cansativos. Muita coisa saindo na imprensa, um monte de desconfiança no ar. — Verena começou, ajeitando o papel à frente, como se falasse de forma genérica.
— Sim... eu vi algumas matérias.
— Pois é. — Ela pegou a caneta e começou a girá-la entre os dedos, olhando momentaneamente para o nada. — E nessas horas, qualquer descuido, por menor que seja... pode virar um problemão.
Valentina gelou por dentro. Sentiu os dedos se apertarem sobre o tecido da blusa.
— Eu entendo...
Verena voltou a olhá-la, com um meio sorriso contido.
— Você é esperta, Valentina. E dedicada. Mas é jovem. E às vezes a gente não tem noção do que uma palavra fora do lugar pode causar. Uma frase solta, um papel esquecido...
Valentina se mexeu na cadeira, o desconforto evidente. Mas Verena manteve o tom calmo, como quem fala de política — não de sentimentos.
— Eu juro que não foi por mal... aquele bilhete, eu...
— Eu sei. — interrompeu Verena, baixando a voz. — A gente já conversou sobre isso. Não estou te repreendendo de novo. Só queria reforçar que... certas coisas, se mal interpretadas, podem parecer maiores do que são.
Valentina ficou pálida.
A menina assentiu, os olhos úmidos de tensão. Mas havia algo na calma da deputada que a confundia. Não parecia raiva. Parecia... controle.
Verena se inclinou um pouco para a frente, os cotovelos na mesa.
— Eu só queria ter certeza de que ninguém mais teve acesso àquele relatório antes de mim. Foi direto da sua mesa pra cá?
Valentina hesitou por um segundo — mínimo, mas visível.
— Foi. Eu deixei tudo junto, naquele dia que a senhora pediu com urgência. Talvez tenha ficado meio bagunçado, eu estava com pressa... mas ninguém mexeu.
A menina parou. Sabia que qualquer palavra a mais podia ser um erro. Mas também sabia que, se dissesse menos, pareceria que escondia algo.
Verena observou tudo: a hesitação, os olhos marejando, a respiração curta. Era medo. Não culpa.
Era aquele medo cru e desajeitado de quem foi exposto sem querer. De quem sente demais e tenta esconder isso num papel, numa dobra, num suspiro. Ela não sabia nada sobre corrupção. E mesmo assim, ali estava ela: assustada, vulnerável... linda.
Verena recuou mentalmente. Sentia a vergonha subir pela própria pele, como se ela fosse a errada. Mas precisava manter o controle.
Verena observou atentamente, mas não fez mais perguntas.
— Ótimo. Só isso mesmo. Pode voltar pra sala. Quando terminar o parecer da próxima reunião, me avise.
— Claro... — disse Valentina, quase num sussurro.
Ela levantou, recolheu os papéis que estavam sobre a mesa e saiu devagar, com a cabeça baixa, tentando conter o nó na garganta.
Quando a porta se fechou, Verena tirou os óculos e soltou o corpo contra a cadeira, exausta. Tinha conseguido se manter calma, quase fria. Mas nada dentro dela estava calmo. A menina era um furacão silencioso. E a cada vez que ela aparecia, Verena perdia um pouco mais do controle que achava ter.
Gabinete de Verena – 13h30
A porta mal tinha ficado cinco minutos fechada quando bateu outra vez, dessa vez sem cerimônia.
— Licença? — Rafaela entrou antes mesmo de ouvir a resposta, com uma xícara de café na mão e um olhar que trazia mais perguntas do que ela deixaria escapar de imediato. — Posso?
Verena ergueu os olhos devagar, já recomposta no corpo, mas não na alma.
— Entra, Rafa. Fecha a porta.
A ruiva entrou, caminhando com calma até a poltrona lateral. Sentou-se, cruzando as pernas e olhando de lado pra chefe. Percebeu o leve vinco na testa da morena, mesmo sem óculos agora. O ar estava mais denso do que o normal.
— Tô quase com medo de perguntar, mas... tá tudo bem?
Verena respirou fundo, apoiando os cotovelos na mesa e entrelaçando os dedos diante do rosto.
— Tá. Tudo sob controle.
— Aham — Rafaela deu um gole no café. — O tipo de "sob controle" que vem logo antes do mundo pegar fogo?
Verena lançou um olhar seco, mas sem raiva. Apenas... cansaço.
— Não começa.
— Eu, começar? — ela riu baixo. — Amiga, você tá com a cara de quem foi atropelada por um caminhão de emoção. E não vem me dizer que foi o almoço, porque nem eu caio mais nessa.
Verena se recostou na cadeira, olhando pro teto por um segundo.
— Eu só tô... alerta. Com tudo. A imprensa, o clima aqui dentro, gente falando demais. E... — hesitou por uma fração de segundo. — Pessoas que podem colocar tudo a perder sem perceber.
Rafaela arqueou uma sobrancelha, o instinto político vibrando.
— Que tipo de pessoas?
Verena não respondeu de imediato. Levantou-se, foi até a janela, cruzou os braços. A vista da Av. Pedro Álvares Cabral lá fora era um borrão — ela nem notava.
— Rafa, você sabe o que acontece se qualquer papel errado cai na mesa errada, né?
— Claro. A gente vai de salto alto pra cadeia. — Ela respondeu com ironia, mas o tom era sóbrio. — Aconteceu alguma coisa?
Verena hesitou. Sentia o peso na garganta, mas não podia abrir aquilo. Não ainda. O nome de Valentina não sairia da sua boca.
— Nada concreto. Só intuição.
Rafaela bufou, levantando-se também, se aproximando com a xícara ainda na mão.
— Verena... você me chamou no começo pra entrar nessa contigo. Disse que confiava em mim, lembra?
— E eu confio.
— Então, se tem alguma coisa te deixando assim, meio... sei lá, surtando por dentro, você pode falar comigo.
Verena encarou a amiga por um momento. Sentia a sinceridade ali. Mas a culpa... o medo... o nome da estagiária que não saía da cabeça... tudo aquilo ainda era indecifrável.
— Eu só tô tentando prevenir. Antes que alguma coisa estoure. — disse, enfim, voltando à mesa e puxando um papel aleatório pra parecer ocupada.
Rafaela observou, mas não insistiu. Fez uma pausa, pensou, e mudou o tom.
— Olha, se for sobre aquela matéria da merenda... todo mundo aqui tá falando. Mas não tem nada a ver com a gente. E se tiver alguém plantando paranoia, a gente cuida.
— Eu sei. — Verena forçou um sorriso rápido. — É só cansaço.
Rafaela deu um último gole no café, colocou a xícara vazia sobre a estante lateral.
— Tá. Mas você sabe que eu percebo quando você mente, né?
Verena sorriu de leve. Cúmplice. Irônica. Triste.
— E você sabe que eu finjo muito bem.
Rafaela deu de ombros, caminhando até a porta.
— Finge. Mas não pra mim. Vou deixar você fingir mais um pouco, então. Mas não muito, tá?
— Obrigada, Rafa.
— De nada, chefe. — disse, piscando um olho antes de sair.
A porta se fechou, e o silêncio voltou a cair como uma cortina de chumbo no gabinete.
Verena encarou o celular na mesa. Nada de mensagens. Nenhuma chamada.
Mas a imagem de Valentina, sentada naquela cadeira, assustada, com a voz embargada... continuava ali. E isso não saía da cabeça dela.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem cadastro
Em: 14/05/2025
Quando a nossa mente e o nosso corpo clama por algo novo... algo que faça cada nervo do nosso corpo vibrar só nos resta atender a esse pedido. E aí, meu bem? Aí a gente mergulha num novo mundo, novas sensações. Muitas vezes a gente sabe que é perigoso, mas mesmo assim se permite. No fundo, nem tão no fundo assim a gente quer isso. A gente anseia e necessita. É inevitável! Você vê aquela pessoa pela primeira vez e instantaneamente e instintivamente seus olhos reconhecem aquilo que todo teu corpo pediu. Não há como fugir quando o que mais queremos é se jogar nesse precipício de emoções. Tem caos que a gente busca. A linha é sempre tênue.
Nada melhor que acordar e buscar por um capítulo novo desse romance pecaminoso aos olhos de quem não entende sobre as complexas emoções humanas.
Zanja45
Em: 13/05/2025
"Escolher estar aqui é também uma forma de amar". Também acredito nessa premissa, mas não como foi no inicio, pois Verena está vivendo situações dissonantes, praticamente ela está se deixando ir por caminhos que não se sustentam mais, por mais que ela tente. - A verdade é que o amor de casal dela por Silva se esvaiu. - Ela esta indo de encontro ao precipicio,se afundando cada vez mais em mentiras, se envolvendo em teias crescentes, que parecem não terem mais volta. - Que vai desde coisas escusas, que impactam sobre o que ela já foi um dia e o que está se tornando. - Parece que quando a pessoa escolhe por vias ilicitas, atraem para si situações mais complexas ainda. - E essa paixão dela por Valentina, diz tudo. - creio que vai ser a derrota dela, porque valentina é o ponto fraco e os adversários politicos vão saber explorar bem essa vulnerabilidade dela a favor deles.
[Faça o login para poder comentar]
Sem cadastro
Em: 13/05/2025
Quando a nossa mente e o nosso corpo clama por algo novo... algo que faça cada nervo do nosso corpo vibrar só nos resta atender a esse pedido. E aí, meu bem? Aí a gente mergulha num novo mundo, novas sensações. Muitas vezes a gente sabe que é perigoso, mas mesmo assim se permite. No fundo, nem tão no fundo assim a gente quer isso. A gente anseia e necessita. É inevitável! Você vê aquela pessoa pela primeira vez e instantaneamente e instintivamente seus olhos reconhecem aquilo que todo teu corpo pediu. Não há como fugir quando o que mais queremos é se jogar nesse precipício de emoções. Tem caos que a gente busca. A linha é sempre tênue.
Nada melhor que acordar e buscar por um capítulo novo desse romance pecaminoso aos olhos de quem não entende sobre as complexas emoções humanas.
[Faça o login para poder comentar]
Sem cadastro
Em: 13/05/2025
Quando a nossa mente e o nosso corpo clama por algo novo... algo que faça cada nervo do nosso corpo vibrar só nos resta atender a esse pedido. E aí, meu bem? Aí a gente mergulha num novo mundo, novas sensações. Muitas vezes a gente sabe que é perigoso, mas mesmo assim se permite. No fundo, nem tão no fundo assim a gente quer isso. A gente anseia e necessita. É inevitável! Você vê aquela pessoa pela primeira vez e instantaneamente e instintivamente seus olhos reconhecem aquilo que todo teu corpo pediu. Não há como fugir quando o que mais queremos é se jogar nesse precipício de emoções. Tem caos que a gente busca. A linha é sempre tênue.
Nada melhor que acordar e buscar por um capítulo novo desse romance pecaminoso aos olhos de quem não entende sobre as complexas emoções humanas.
[Faça o login para poder comentar]
N@ty
Em: 13/05/2025
Quando a nossa mente e o nosso corpo clama por algo novo... algo que faça cada nervo do nosso corpo vibrar só nos resta atender a esse pedido. E aí, meu bem? Aí a gente mergulha num novo mundo, novas sensações. Muitas vezes a gente sabe que é perigoso, mas mesmo assim se permite. No fundo, nem tão no fundo assim a gente quer isso. A gente anseia e necessita. É inevitável! Você vê aquela pessoa pela primeira vez e instantaneamente e instintivamente seus olhos reconhecem aquilo que todo teu corpo pediu. Não há como fugir quando o que mais queremos é se jogar nesse precipício de emoções. Tem caos que a gente busca. A linha é sempre tênue.
Nada melhor que acordar e buscar por um capítulo novo desse romance pecaminoso aos olhos de quem não entende sobre as complexas emoções humanas.
anonimo2405
Em: 13/05/2025
Autora da história
Exatamente. Chega num ponto em que não dá mais pra esconder. Você tenta negar, pode até conseguir fingir, mas não dura muito. E no caso da Valentina, ainda tá tentando segurar tudo sozinha.
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]