Capítulo 24
Esse é o pior dia da minha vida.
Foi com essa sensação que levantei da cama, antes mesmo do meu relógio vibrar no meu pulso. Me arrastei até o chuveiro, tomei um banho demorado, me vesti com a primeira roupa que encontrei.
Àquela hora Marcela já tinha ido embora para sempre da minha vida. Ela tinha me dito na véspera que o primo a levaria até a cidade vizinha, para que pegasse o ônibus das seis e meia.
Fui para cozinha e tomei meu café da manhã. Meio copo de leite com achocolatado. Inevitavelmente pensei nos últimos cafés que compartilhei com ela. A mesa cheia de coisas. Nós duas conversando e rindo, depois de uma noite maravilhosamente bem aproveitada e dormida.
Saí de casa sem a mínima vontade. Ainda me sentia meio anestesiada. Como se aquilo tudo não passasse de um pesadelo. Estranhei o caminho que sempre fez parte da minha vida. Estranhei as pessoas.
— Bom dia, Ciça!
Fiz um enorme esforço para tentar sorrir:
— Bom dia…
Sentei na minha mesa e liguei o computador. Enquanto esperava, minha cabeça viajou. Foi até ela. Imaginei onde Marcela estaria. Que roupa estaria vestindo. O que tinha comido antes de sair.
— Bom dia!
Olhei para um Diego sorridente entrando na sala.
— Bom dia.
Ele desfez o sorriso imediatamente. Me olhou com uma interrogação, mas a presença de Jussara na sala não permitiu que perguntasse nada.
Quando o computador enfim ligou, tentei me concentrar ao máximo no trabalho, mas tudo era tremendamente difícil. Apertar uma tecla parecia me doer.
Trabalhei como pude. Na hora do almoço saí junto com Gabriela, para evitar ficar sozinha com Diego. Não queria conversar sobre aquilo. A minha intenção era nunca mais falar com ninguém sobre Marcela, como se nossa relação jamais tivesse existido. Era assim que eu lidava com minhas decepções: não falava, não pensava, fingia que nunca havia acontecido.
Almocei o pouco de comida que consegui engolir. Não levei nada para comer à tarde, pois sabia que seria em vão. No fim do expediente também saí junto com todos, não fiquei por último como costumava fazer.
Eu achava que meu dia não podia ficar pior, mas percebi o quanto tinha me enganado ao ter que voltar para casa, sabendo que depois não iria encontrar Marcela. Engoli outro copo de leite, tomei um banho e fui deitar. Fiquei pensando que horas ela teria chegado no Rio. Se alguém a encontrou na rodoviária. Se tinha saído para comer.
Em momento algum cogitei mandar alguma mensagem. Não suportaria. Precisava cortar aquilo pela raiz. De nada me adiantaria ficar alimentando uma coisa que não existia mais, que não teria volta. Era puro masoquismo para mim. Por isso também não quis passar aquela última noite com ela, não quis um beijo de despedida, apesar de Marcela ter pedido. Preferia ficar com as lembranças de quando ainda estava tudo bem. Não queria que nosso último beijo tivesse um gosto amargo.
O resto da minha semana seguiu igualmente cinza. Lenta. Dolorida. Me senti como se tivesse sido acordada de um sonho, a realidade me atingindo dilacerante. Aquela era minha vida. Minha vida de verdade. Casa, trabalho, as mesmas pessoas, o mesmo caminho, Seu Manoel.
Os meses que passei com Marcela tinham sido só um gostinho de como a vida poderia ter sido muito mais doce. Mas não foi.
*****
Assim que desci do ônibus, pedi um carro pelo aplicativo. Sorri ao fazer uma coisa tão banal, que já tinha feito milhares de vezes antes. Mas nos últimos meses eu sequer tinha aberto aquele aplicativo no celular. Não tinha como ser usado lá… naquela cidade.
Esperei por quase dez minutos até o motorista chegar. Fui olhando a cidade pelo caminho. Finalmente estava em casa. A energia completamente diferente. A paisagem dinâmica. Pessoas suficientes para que eu não começasse a gravar os rostos.
Cheguei na portaria de Vitor e me identifiquei para o porteiro, que interfonou. Sozinha dentro do elevador com minha mala, me dei conta de como estava com saudades dele. Assim que toquei a campainha a porta se abriu. Vitor me abraçou apertado. Eu fiz o mesmo. Ficamos assim por quase um minuto inteiro. Depois ele me olhou:
— Que bom te ter de volta!
Depois que ele deixou minha mala na sala, onde passaria a ser meu “quarto” pelos próximos dias, me levou para a pequena cozinha, com um almoço pronto.
— Me conta… Como foi a experiência? Traumática?
Eu suspirei. Não tinha contado para Vitor sobre Ciça. Na verdade, tinha dito que conheci uma moça, que estávamos nos conectando, mas em momento algum contei para ele até onde nossa relação chegou. Era como se eu não pudesse ligar Ciça à minha vida no Rio. Eram duas partes que não se conectavam. Como se uma só pudesse existir se a outra desaparecesse.
— Você não vai acreditar, mas… eu pensei em recusar o emprego.
Vitor me olhou com os olhos arregalados:
— O quê?
Enquanto comíamos fui contando tudo, dessa vez com detalhes. Cada parte, cada movimento, cada conversa. Falei de como foi difícil deixar Ciça para trás, o que construímos, mas também de como aquela relação não parecia ter futuro naquele lugar.
Depois que almoçamos, ele precisou voltar para o trabalho que naquele dia era homeoffice. Foi para o quarto, onde tinha uma mesa e cadeira ergonômica. Eu fiquei na sala, sentada no sofá, processando minha nova-antiga realidade. O barulho lá fora me fez ir até a janela. Carros, buzinas, motos, sirenes, helicópteros… Os sons que tanto senti falta, agora me pareciam um pouco incômodos.
Saí para tentar me reconectar com minha cidade. Andei sem destino, entrei em livrarias, várias lojas de roupa, supermercados, pelo simples fato de poder fazê-lo. Fui até a orla, pisei descalça na areia, molhei os pés no mar, suspirando profundamente.
Eu voltei.
Mas por mais que eu tentasse, me esforçasse, aquilo não me trazia toda a satisfação que eu queria.
Voltei para o apartamento de Vitor quando já tinha anoitecido. João Paulo já tinha chegado do trabalho, nos abraçamos, eu agradeci por ele ter se lembrado de mim para indicar a vaga de emprego. Nós três pedimos uma pizza e comemos conversando. Quando eles foram dormir, fiquei de novo sozinha na sala. Deitei no colchão que Vitor me disponibilizou e aconteceu algo que eu não esperava. Aquela angústia que me perseguiu durante minhas primeiras semanas no interior, agora tinha me achado ali, no lugar para onde eu tanto quis voltar.
*****
No final da minha segunda semana de volta ao trabalho, não aguentei mais. Era como se o mundo tivesse continuado apesar da minha vida ter parado. No fim do expediente conversei com Jussara, que era a responsável pelos pedidos de férias. Por sorte a peguei em um dia bom, ela disse que não teria problema nenhum eu começar já na segunda-feira.
O final de semana pareceu um filme de terror, não consegui dormir, mal me alimentei. Eu sabia que não podia continuar assim, mas não tinha o que fazer. Meu organismo parecia aceitar cada vez menos comida. Meu sono pareceu ter se esvaído.
Não vi a semana passar, não saí de casa, não respondi mensagens. Não olhava as horas. Perdi a noção dos dias. Nada preenchia minha mente. Passei a tomar qualquer remédio que me desse sono, independente de qual fosse a função do medicamento.
Me arrependi profundamente de ter desejado que algo novo acontecesse na minha vida antes de Marcela chegar, pois apesar de tudo, inegavelmente eu tinha uma paz terrível.
Só me dei conta do estado deplorável em que provavelmente me encontrava ao ver os olhos assustados de Isabela.
— Como você não respondia as mensagens, nem atendia o celular…
Falou entrando na sala, enquanto eu voltava e deitava no sofá depois de ter levantado para abrir a porta para ela.
— Ciça, o que houve?
Eu não respondi. Isabela continuou como se estivesse falando com uma criança, a voz baixa e calma:
— Érica me contou que Marcela voltou pro Rio… Vocês brigaram?
Não! Esse era o problema.
O fato de termos terminado daquele jeito, ainda com sentimento de ambas as partes, era pior… pois não havia raiva ou ressentimento que ajudasse a superar.
— Ela arrumou um emprego.
Foi tudo o que eu quis falar.
Isabela ficou em silêncio. Só depois continuou:
— Tá, mas… foi isso? Ela terminou com você?
Não sei exatamente o que a gente tinha para terminar, mas não foi o que aconteceu:
— Não… Ela só disse que ia embora.
— Vocês não pensaram em continuar assim, à distância?
Eu me sentei no sofá:
— Como? Que futuro isso tinha? A gente ia se ver, sei lá, uma vez por mês?
Deitei de novo, me cobrindo com o cobertor até o pescoço:
— A gente nem tava namorando.
Isabela me rebateu imediatamente:
— Vocês podem até não ter nomeado, Ciça… Mas se isso não era um namoro, não sei o que poderia ser.
Depois que Isabela foi embora, me fazendo prometer que responderia as mensagens e atenderia as ligações, troquei o sofá pela cama. Me odiei por ser tão frágil. Desabava nas mais singelas tragédias.
Peguei dois comprimidos de relaxante muscular e engoli com um gole d’água, torcendo para que não demorasse a fazer efeito.
*****
Meus primeiros dias de volta foram corridos. Reuni documentos, cópias, autenticações, tudo que precisava para o novo emprego. No início da semana seguinte fui fazer os exames admissionais também necessários. E na quarta-feira tive meu primeiro dia de trabalho que, inegavelmente, adorei.
A semana seguinte se passou da mesma forma, me adaptando e aprendendo tudo que eu precisava para ser a guia da galeria de segunda à sexta. Não vou mentir em dizer que não pensava em Ciça. Várias vezes quis mandar mensagem para ela, contar como estava sendo, mostrar algo que eu achava legal… mas pelo tom da nossa despedida, imaginei que ela não quisesse ter notícias minhas.
Fim do capítulo
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Dessinha
Em: 14/05/2025
O interessante da história delas é que parece muito real, vivido, comum demais nos dias de hoje e de ontem também. Triste que o amor quando se encontra seja assim.. com cada uma carregando suas bagagens que acabam sendo pesadas demais. Ciça por toda questão do armário forçado pelas pessoas que insistem em não enxergar nada e ela aceitando a vida que lhe foi imposta, e a Marcela pela vida "concretizada" na capital, com as questões da Ciça irrelevantes por lá. Que o sentimento encontre seu lar. Belíssima estória!!
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Dessinha
Em: 13/05/2025
O interessante da história delas é que parece muito real, vivido, comum demais nos dias de hoje e de ontem também. Triste que o amor quando se encontra seja assim.. com cada uma carregando suas bagagens que acabam sendo pesadas demais. Ciça por toda questão do armário forçado pelas pessoas que insistem em não enxergar nada e ela aceitando a vida que lhe foi imposta, e a Marcela pela vida "concretizada" na capital, com as questões da Ciça irrelevantes por lá. Que o sentimento encontre seu lar. Belíssima estória!!
AlphaCancri
Em: 14/05/2025
Autora da história
Uma história real que pode acontecer com qualquer uma, né? Infelizmente a gente não vive num conto de fadas onde tudo é perfeito… Quem dera kkkk
É bem isso que você falou, cada uma com sua bagagem e suas particularidades. Basta saber se elas ainda vão se encontrar nas coisas que as une…
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HelOliveira
Em: 13/05/2025
Não sei o que esperar dessas duas, achei que Ciça ia aproveitar as férias para ir ver a Marcela....Elas podia ao menos conversar ao invés de ficar só achando..
AlphaCancri
Em: 14/05/2025
Autora da história
Ficam as duas com seus sentimentos e achismos, né?!
Acredito que cada uma tem seu próprio dilema e cada precisou fazer uma escolha nada fácil. Será que elas ainda conseguem se entender?
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AlphaCancri Em: 14/05/2025 Autora da história
Senti falta dos seus comentários nos capítulos anteriores. Sei bem como é, parece que a gente é que tá passando pelos acontecimentos né? Hahahah
Eu também espero que elas consigam!