O Peso do Azul por asuna
Capítulo 17
O sol batia no meu rosto num calor suave, quase inibido. Respirei fundo, sentindo o cheiro de terra, misturado ao leve perfume das árvores próximas. O banco de madeira rangia sob o meu corpo, duro, desconfortável, não me importei. Precisava de estar ali. Precisava do céu aberto, do rumor distante proveniente das vozes, do som irregular de passos apressados a cruzar o pátio. Precisava de não estar cercada por paredes.
Ajeitei-me no assento, cruzando as pernas, deixei o livro pousar-me no colo, os dedos ainda marcando a página. Li uma linha. Depois outra. O olhar fugia-me dos termos, escorregava, prendia-se num grupo que passava a rir, numa folha que caía devagar. Suspirei. Por que razão era tão difícil concentrar-me hoje?
Foi então que ouvi.
Um arrastar leve de sapatos no chão.
Uma sombra que parou à minha frente.
Ergui o rosto vagarosamente.
— Maya?
O cabelo desalinhado, a expressão aberta. Ajeitei-me no banco, abrindo um pouco mais de espaço, bati com a mão no assento, num convite mudo. Ele arqueou os lábios, pequeno, como se não esperasse ser bem-vindo, sentou-se do meu lado. Observei-o, captando-lhe o perfil, esperando que falasse. Vi as suas mãos passarem distraídas pelas calças, esfregando o tecido como se pudesse raspar dali a ansiedade.
Suspirei baixo, tentando disfarçar a minha impaciência. Sabia que ele trazia algo preso na garganta desde ontem. Algo que eu continuava certa de que não queria ouvir.
— Ethan — murmurei, a voz mais firme do que esperava, surpreendendo até a mim mesma — se precisas de dizer alguma coisa, diz. Não é necessário tanto rodeio.
Ele parou, piscou, os olhos ligeiramente arregalados. Uma ruga breve formou-se-lhe entre as sobrancelhas, porém logo se dissolveu, suavizando-se num quase alívio.
— Sabes, Maya — Começou ele, balbuciando, num tom quase receoso — acho que nós os dois somos mais parecidos do que parece.
Virei devagar a cabeça na sua direção, sem dizer nada, só esperando.
Ele apoiou os cotovelos nos joelhos, entrelaçando as mãos à frente, os olhos fixos num ponto qualquer no chão.
— O meu pai espera que eu seja como ele. Ex-jogador de futebol. Uma estrela local. Daqueles que toda a gente no bar conhece, que contam as mesmas histórias de glória de há vinte anos.
Sorriu, contudo, foi um sorriso amargo, que não chegou nos seus olhos.
— Eu cresci a ouvir que tinha talento. Que tinha o físico. Que tinha obrigação. Eu tentei, juro que tentei. Treinos, jogos, campeonatos, medalhas que pareciam pesar mais do que valiam. E mesmo quando o meu coração não estava lá, mesmo quando eu só queria — riu-se baixinho, sem humor — sei lá, sair, ler, fazer outra coisa qualquer, ele fazia questão de me lembrar. De me prender. De me fazer sentir que, se eu não jogasse, se eu não vencesse, estava a falhar. A falhar com ele. Com a família. Com a ideia que tinham de mim.
Permaneci ali, ouvindo, as mãos fechadas sobre o colo, sentindo cada palavra a bater contra algo dentro de mim que eu preferia manter escondido.
— E agora, mesmo que eu jogue, mesmo que sorria, mesmo que faça tudo certo, sinto-me um impostor — prosseguiu, o tom mais baixo, mais cru. — Porque, para ser sincero, eu já nem sei se jogo porque gosto ou porque devo. Não sei se sou eu quem está ali, ou se sou apenas a sombra dele.
As sua palavras tocaram-me num ponto fundo, escuro, que até eu evitava visitar.
— Às vezes, nem sei quem estou a tentar ser. — Escapou-me num sussurro.
Ele virou-se devagar, o semblante castanho, atento, cheio de uma empatia tranquila que eu não sabia bem como segurar.
— Eu também não. — Expôs.
Ficámos assim por um momento, apenas a respirar no mesmo espaço, as expressões cravadas um no outro, o silêncio entre nós quase reconfortante. Havia algo de familiar naquela proximidade, não pela atração, mas pelo entendimento mudo.
— Quando interrompeste a dança, enquanto te afastavas — hesitou, mudando agora a sua atenção para um ponto distante — percebi que tinhas ficado desconfortável. Provavelmente comigo, ou com a situação. Desculpa. Acho que me deixei levar pelo momento, pelo ambiente, nem pensei se estavas confortável com aquilo.
Abri a boca para responder, contudo ele ergueu ligeiramente a mão, num gesto suave, cortando as palavras antes de nascerem.
— Não é só para me desculpar — declarou. — É que, eu lembro da tua expressão. E depois vi-te desaparecer. E reconheci qualquer coisa que também sinto, às vezes.
Respirou fundo, vagarosamente.
— Essa sensação de estarmos a representar um papel que não pedimos. De estarmos constantemente a tentar pertencer num lugar que não sabemos se é realmente o nosso. De termos de corresponder. Sempre. Porque se falharmos, tudo o que esperam de nós desmorona.
Novamente aquilo que ele acabara de dizer pousou sobre mim com um peso estranho. Ele não fazia ideia do verdadeiro abismo que me dividia, não podia imaginar, porém o modo como falava sobre o esforço constante, a moldura invisível, era, de certa forma, o mesmo mapa emocional onde eu vivia presa.
Por um instante, permaneci quieta, compreendendo que o que ele dizia não era exatamente o mesmo, e, ao mesmo tempo, era assustadoramente próximo.
Ethan passou uma mão pelos cabelos, o gesto rápido demais para ser casual. Um riso curto escapou-lhe, como se já se arrependesse de tudo o que tinha dito.
— Não sei porque te contei isto — murmurou. — Nem costumo falar assim.
A sua voz tremia ligeiramente, todavia eu senti. Hesitou, a sua atenção ainda fixa no chão.
— Mas contigo é diferente. Não sei explicar. Sinto que não preciso de fingir tanto.
Aquilo flutuou no ar, frágil, delicado.
Fixei o olhar nas minhas mãos, pousadas sobre o colo. O coração bateu um pouco mais rápido, não por sentir por ele aquilo que talvez ele insinuasse, mas porque reconheci, naquele instante, o risco emocional a que ele acabara de se expor.
Estudei-o de soslaio.
Já tinha recebido atenção de rapazes antes. No grupo de jovens da igreja. Sorrisos tímidos, conversas forçadas, elogios subtis. Alguns eram gentis. Bonitos. Engraçados, até. No entanto nunca, nunca aconteceu nada. Nunca senti aquela faísca, aquele incomodo no estômago, aquele segundo em que o mundo abrandava, que só acontecia, inexplicavelmente, com uma garota.
E nenhum deles, nenhuma delas, me fazia sentir o que Chloe conseguia com um único contato.
Estudei-o agora firmemente. Ele continuava ali, calado, como se suportasse o silêncio, como se entendesse que eu não lhe podia dar respostas. E isso, isso doía mais, porque mostrava-me uma leveza que eu não sabia como aceitar.
Percebi, então, que porventura Ethan não precisasse de respostas da minha parte. Só de ser ouvido. E talvez, talvez, isso fosse tudo o que eu poderia oferecer.
— Obrigada por confiares em mim. — Murmurei, sem o olhar diretamente.
Um sorriso breve cruzou-lhe os lábios, tímido, quase ausente. Abanou levemente a cabeça, perdido num ponto que não era eu.
— Obrigada por me ouvires. — Disse apenas.
O sinal soou, rasgando o ar entre nós fazendo-me estremecer. Despedi-me com um aceno pequeno e segui para a aula de fotografia.
Entrei na sala e os olhos percorreram automaticamente o espaço, procurando-a com uma urgência que eu tentava disfarçar. Chloe não estava. Claro que não estava.
Inspirei fundo e encaminhei-me para o meu lugar, sentando-me devagar, sentindo as costas tocarem no encosto frio da cadeira. Abri a mochila e foi então que percebi, a máquina que sempre usava era a dela. Engoli em seco, sentindo uma pontada de desconforto misturada com uma estranha sensação de perda. Levantei-me com um esforço quase invisível, caminhando em direção ao professor, que me emprestou uma das máquinas da escola, já um pouco gasta, porém ainda funcional. O peso era diferente, a textura não era a mesma, senti-me subitamente deslocada, como se estivesse a tentar encaixar-me num espaço que não era meu.
Enquanto começava a explicar o plano para a aula, senti uma ligeira vontade de pegar no celular, de mandar uma mensagem para ela, talvez perguntar se estava bem. Os dedos chegaram a roçar o tecido do bolso, traindo o impulso que eu tentava conter. No entanto a realidade caiu sobre mim, seca e pesada, eu nunca tive coragem de lhe pedir o número. Nunca criei esse espaço entre nós. Mordi a bochecha, sentindo o sabor agridoce da minha própria hesitação.
— Como sabem, no próximo sábado vamos ao Doug Jennings Park para trabalharmos nos vossos projetos. Provavelmente muitos de vocês já começaram a desenvolver as ideias, mas quero que aproveitem este espaço para explorar ambientes diferentes, ajustar composições, enriquecer os detalhes, aprofundar o que querem transmitir com as vossas imagens. — A voz do professor cortou os meus pensamentos, enchendo a sala com um entusiasmo discreto.
O estômago contraiu-se num aperto frio, como se uma mão invisível o esmagasse sem aviso. Doug Jennings Park. O projeto. As palavras ecoaram dentro de mim com a força de uma sentença. Como é que eu podia ter esquecido completamente disso?
A ideia de voltar a trabalhar naquele projeto agora depois do que acontecera, o calor subiu-me às faces num rompante que não consegui controlar, tingindo-me a pele enquanto o pensamento se instalava.
Como é que eu vou voltar a trabalhar com ela? Como é que vou suportar a proximidade?
A imagem surgiu vívida, feroz, tão real que quase podia sentir de novo o gosto do momento. Mordi a bochecha com mais força, desviando o olhar para o caderno aberto à minha frente.
Será que ela iria estar presente no sábado? Será que também sentia esta ansiedade?
As palavras do professor mantinham-se agora longínquas, abafadas pelo pulsar do meu próprio coração. Sentia-me dividida entre o desejo absurdo de me levantar e correr dali para fora, e a urgência quase desesperada de a ver, de a encontrar, de saber se ela sentia o mesmo nó apertado na garganta, o mesmo tremor antecipado nas mãos.
Fechei os olhos por um instante, respirando fundo, tentando acalmar a tempestade silenciosa que me atravessava o corpo. Porém era inútil. Ela estava lá. Chloe. Impressa na minha pele como uma marca que não sai, gravada no meu peito como uma cicatriz que não fecha.
Apertei a câmera entre os dedos, tentando ancorar-me à sua solidez, à sua frieza reconfortante. Mas não era suficiente. Porque no fundo, no fundo, o que eu queria mesmo apertar eram os contornos dela. O que eu queria mesmo era sentir de novo o calor da sua respiração, a maciez dos seus lábios, a entrega crua e silenciosa do seu corpo no meu.
O rubor invadiu-me as faces de repente, como se todos ao meu redor pudessem ler os meus pensamentos. Abaixei a cabeça instintivamente, deixando que o cabelo caísse como uma cortina protetora. Mexi-me desconfortavelmente na cadeira, a vontade de desaparecer foi tão grande que tudo o que consegui fazer foi fingir interesse num dos livros empilhados à minha frente.
***
Sentada com as pernas cruzadas sobre o tapete, rodeada de apontamentos e livros que fingiam receber a minha atenção, eu observava Piper pelo canto do olho, esta permanecia sentada do outro lado, balançando uma caneta entre os dedos. Os cabelos ruivos caíam-lhe sobre o rosto enquanto olhava fixamente para um exercício de matemática. Ocasionalmente, rumorejava de frustração e rabiscava algo no caderno.
Minutos depois espreguiçou-se, esticando os braços para o teto com um gemido exagerado.
— Preciso de uma pausa ou o meu cérebro vai explodir — declarou, deixando a caneta cair dramaticamente. — É oficial, os números estão a conspirar contra mim.
Sorri, embora o gesto não tenha chegado aos olhos.
— Daqui a pouco acaba — respondi, vagamente.
O livro da pastora Collins permanecia do meu lado, um peso silencioso a sussurrar verdades incómodas. Desde que o terminara ontem à noite, sentia algo diferente a agitar-se dentro de mim. Não era apenas dúvida, era quase coragem. Uma espécie de inquietação elétrica que não me deixava permanecer na mesma posição por muito tempo, nem física nem emocionalmente.
Mordi o interior da bochecha, ponderando. Piper era tudo o que eu não era, direta, desinibida, sem medo de verdades cruas. Partilhar algo tão íntimo com ela aterrorizava-me, no entanto talvez fosse precisamente por isso que precisava fazê-lo.
Os dedos traçaram a lombada gasta do exemplar, indecisos. A certa altura, o movimento deve ter sido óbvio demais, porque captei a sua atenção sobre mim, intenso e interrogativo.
— Acho que o teu livro não vai fugir se o largares por um segundo — comentou, erguendo uma sobrancelha com aquela curiosidade que tanto me intimidava.
Senti o calor subir ao rosto.
— Não é isso, é só que
Parei, sem saber como continuar. As palavras enroscavam-se dentro de mim como um novelo de lã demasiado apertado.
Vi-a largar o celular e a endireitar-se, de repente a sua atenção estava totalmente em mim.
— Oh, reconheço essa expressão — declarou. — Essa é a expressividade de alguém prestes a dizer algo importante, mas que está com tanto medo que provavelmente vai engolir as palavras e fingir que estava apenas a pensar sobre tempo.
O seu tom era provocador, contudo havia uma gentileza surpreendente nos seus olhos. Soltei um riso nervoso.
— Tão transparente assim? — questionei, baixando o rosto para o livro.
— Não. Na verdade, és praticamente uma fortaleza — respondeu, inclinando a cabeça. — É só que eu tenho um radar para momentos de quase coragem. Em ti, é sempre acompanhado por esse franzir de sobrancelhas. Como agora.
Parei imediatamente, surpreendida por ser tão previsível. Respirei fundo. Era agora ou talvez nunca.
— A pastora Collins, ela emprestou-me este livro — prossegui acariciando a capa. — Fala sobre como a fé pode ser maior. Menos rígida. Sobre como Deus não nos pede para sermos menos do que somos, mas para sermos inteiros.
Esta fez um gesto lento, pedindo para ver o exemplar. Estendi-o com cuidado. Ela folheou algumas páginas com uma expressão surpreendentemente séria.
— "Não é no afastamento que Deus te encontra, mas na fenda exata onde te partes" — leu, num murmúrio. O seu semblante voltou-se na minha direção. — Isto é inesperadamente profundo.
— Acho que, acho que sempre acreditei que para ser aceite por Deus, precisava de ser perfeita — confessei. — De nunca sentir coisas erradas. De nunca desejar.
A palavra ficou presa, pendurada no ar entre nós.
Piper para minha surpresa não se apressou a preencher o silêncio. Após um momento, deslizou da cadeira para o chão, aproximando-se, contudo, mantendo espaço suficiente para eu respirar.
— Maya, posso perguntar-te uma coisa? — O seu tom era imprevistamente suave. — O que te assusta mais? Que o teu Deus te rejeite, ou que o teu pai o faça?
A pergunta atingiu-me como um soco. Senti os olhos arderem com lágrimas que se recusavam a cair. As minhas mãos apertaram o livro até os nós dos dedos embranquecerem.
— Eu nem sei mais — admiti, a voz a falhar. — É tudo a mesma coisa para mim, há tanto tempo. A voz dele, a voz de Deus, os versículos, os avisos
— E a tua voz? — interrompeu. — Onde se encontra a tua voz no meio de tudo isso?
Fiquei em silêncio, atordoada. A minha voz? Existiria sequer?
— Não sei se alguma vez tive uma — respondi finalmente, olhando pela janela. — Sempre houve tantas regras, tantas expectativas. E eu só queria estar à altura.
— À altura de quê? — Inclinou-se, os olhos intensos fixos nos meus. — De ser algo que nem sequer és?
Foi como se tivesse ligado um interruptor. Subitamente, senti algo quebrar-se, uma comporta interna cedendo sob pressão.
— Eu não devia sentir o que sinto — disparei, as palavras a jorrar agora. — Não devia pensar nela assim. Não devia querer estar perto dela, querer tocá-la.
Parei, horrorizada com o que acabara de confessar. Os dedos voaram para cobrir a boca, como se pudesse enfiar as palavras de volta. O meu coração trovejava no peito como um animal assustado.
A ruiva permaneceu absolutamente imóvel, um sorriso suave nos lábios.
— Finalmente — murmurou, num suspiro quase aliviado. — Já começava a pensar que ia ter de esperar pelo teu casamento com um seminarista para ouvires a tua própria voz.
— Tu sabias? — questionei, sentindo o pânico a subir.
— Maya, por favor. Não me insultes. — O riso foi breve, contido, porém sem traço de escárnio. — A forma como estás sempre á sua procura com o olhar, como desapareceste da festa e ela saiu atrás de ti como se o mundo fosse acabar, francamente, só não viu quem vive debaixo de uma pedra. E mesmo essas pedras devem ter suspeitado.
— Oh. —Definitivamente ela prestava mais atenção do que eu imaginara. — Bem, não sei o que fazer — confessei, a voz quase inaudível.
Ela ajeitou-se, refletindo por um momento. Quando falou, esta transmitira uma seriedade rara.
— Sabes, passei muito tempo a observar a forma como o meu pai olhava para a minha mãe — expôs, surpreendendo-me com a mudança de rumo da conversa. — Aquele brilho, como se ela fosse a coisa mais espantosa que ele já viu, mesmo após vinte anos juntos. Um dia perguntei-lhe como sabia que a amava, e sabes o que ele respondeu?
Abanei a cabeça, incapaz de falar.
— Ele disse, porque quando estou com ela, eu me sinto mais vivo, mais eu próprio do que quando estou sozinho. — Fez uma pausa, os olhos fixos em mim. — É por isso que não entendo esta tua luta. Como pode ser errado sentir algo que te faz ser tu própria?
Aquelas palavras atravessaram-me como uma lâmina afiada. Ser eu mesma? Seria isso que sentia quando estava com Chloe? Aquela sensação de estar simultaneamente mais exposta e mais completa?
— Tenho tanto medo — admiti finalmente.
— Claro que tens — disse Piper, arqueando uma sobrancelha. — Harper não vem com um manual de instruções.
Lancei-lhe um olhar atravessado. Ela sorriu, quase encolhendo os ombros.
— Olha, não existe paixão sem medo. Nem amor. O medo é o bilhete de entrada. — Fez uma pausa breve. — Mas agora eu te pregunto, medo de quê, exatamente?
— De dececionar todos. De me dececionar a mim mesma. De que se eu aceitar isto —Parei. A garganta apertada. — De que se ele souber, o meu pai que ele me olhe e já não me reconheça. Que deixe de me amar.
Piper não reagiu de imediato. Apenas respirou fundo, como se absorvesse o peso daquelas palavras.
— Medo que não sobre nada? — completou, surpreendendo-me com a sua perspicácia. — Maya se isso acontecer, se ele realmente te rejeitar por amares alguém, por sentires, por escolheres viver inteira, então talvez ele não te ame como deveria.
As palavras ecoaram dentro de mim como uma fresta que se abre num quarto escuro.
— Tu — continuou pousando a mão sobre a minha — tu não vais ficar sozinha. Nem por um segundo.
Observou-me com uma espécie de ternura que me apanhou desprevenida.
— Sabes por quê? Porque aqui em casa, com os meus pais, contigo já há um lugar para ti. Já há uma cadeira posta na mesa. Já há chá suficiente e sarcasmo garantido. Não precisas de fazer nada para o merecer. Só aparecer.
Assenti, as palavras a faltarem-me.
— Maya, posso ser brutalmente honesta contigo? — interrogou, aquele brilho familiar de desafio a regressar à sua expressão.
— Quando é que não és? — respondi, apanhando-me a sorrir apesar da tensão.
— Justo. — Gargalhou. Depois pousou os cotovelos nos joelhos, séria. — Olha, não conheço o teu Deus. Não cresci com isso. Mas conheço pessoas, e sei que estás presa numa fantasia.
— Uma fantasia?
— Não, não é a da Chloe em câmera lenta ao som de Bon Iver — disse, levantando um dedo — essa é outra.
Revirei os olhos, mas não consegui evitar um riso abafado.
— Refiro-me à fantasia da perfeição. Do controlo. Achas que tens duas opções, ser perfeita ou ser condenada. E se existir um terceiro caminho? E se pudesses ser simplesmente humana, com desejos, impulsos, confusões e tudo mais, e ainda assim ser amada? E se a tua fé fosse sobre crescer através das tuas imperfeições em vez de negá-las?
As suas palavras atingiram-me como ondas, cada uma mais forte que a anterior. Senti algo dentro de mim a mover-se, a reordenar-se.
— Não sei como fazer isso — confessei, a voz mais firme agora.
— Ninguém sabe — respondeu com um encolher de ombros. — É por isso que estamos todos aqui, a tentar e a falhar e a tentar outra vez. A diferença é que alguns de nós pelo menos aproveitam a viagem em vez de se castigarem por estarem nela.
Encarei o livro nas minhas mãos.
— O que devo fazer em relação à Chloe? — perguntei, a voz a fraquejar ao pronunciar o nome.
— Ah, essa parte é fácil — respondeu Piper, com um sorriso provocador.
— É?
— Sim. Para de fugir. — Ela ergueu-se num movimento fluido. — Não estou a dizer para te atirares para cima dela, embora deva dizer que tenho quase a certeza que ela não se importaria.
Senti o calor subir-me ao rosto novamente.
— Piper!
— O quê? É verdade. — Soltou uma risada. — A sério, Maya. Parar de fugir não significa que tens de ter todas as respostas ou tomar decisões drásticas. Significa apenas permitires-te estar presente. Sentir o que sentes sem julgamento. Observar em vez de concluir. E talvez, só talvez, perceberes que Deus, se existe, é muito maior do que as caixas onde o tentamos enfiar.
Fiquei em silêncio, por instantes. Avaliando-a, com uma outra pergunta a ferver-me por dentro. Porque algo não se encaixava.
— Espera — murmurei, fixa nela. — E as tuas insinuações? As conversas em que me disseste para ter cuidado com a Chloe? Que ela era um fenómeno, que quem se apaixonava raramente saía inteira?
A ruiva não respondeu de imediato. O sorriso esbateu-se lentamente, dando lugar a uma expressão que lhe via poucas vezes, invulgarmente séria.
— Disse isso, sim — admitiu, com aquele raro cuidado de quem, por uma vez, queria ser compreendida. — E não retiro uma vírgula.
Esperei, tensa. A dúvida crescia dentro de mim, entrelaçada com uma pontada surda de desilusão.
— Maya, eu avisei-te porque, enfim, tu moras aqui, e isso faz de nós quase irmãs por coabitação. — Encolheu os ombros, como se isso fosse um facto burocrático incontornável. — Então, sim, sinto uma espécie de responsabilidade. Sei que a Chloe, por mais que brilhe, e, vamos ser honestas, ela brilha, às vezes queima sem querer. Tem esse talento inato de não saber o que fazer com o afeto quando este deixa de ser distração.
Mordi o interior da bochecha. As palavras dela doíam de forma inesperada, como se me arrancassem uma esperança que eu mal sabia que tinha depositado ali.
— Então porque é que agora dizes para não fugir?
Ela inclinou-se, o olhar fixo no meu com uma firmeza rara, sem desvios.
— Porque, apesar de tudo isso — vacilou, tocando no queixo com um ar quase pensativo — olha, não sei se sou eu quem deve dizer isto. Mas vou simplesmente dizer o que penso.
Fez uma pausa, como se estivesse a alinhar as palavras no lugar certo.
— Eu continuo a achar que a Chloe é o caos em forma de gente. E não do tipo leve e boémio. Do tipo que rasga e reconstrói. Mas também acredito que há pessoas que, por alguma razão cósmica, seja alinhamento de planetas, destino, trauma partilhado, sei lá, conseguem tocar o que ninguém mais toca. E parece-me que tu és uma dessas pessoas. Para ela.
Depois sorriu, de lado. Aquele sorriso torto e cheio de sarcasmo, o suficiente para suavizar o que acabara de dizer.
— E vamos ser sinceras, tu também não és exatamente uma fortaleza de estabilidade emocional, querida. Entre vocês as duas, não sei qual vai rebentar primeiro. Mas porr* pelo menos sejam honestas uma com a outra enquanto isso acontece.
Soltei um riso fraco, uma espécie de alívio disfarçado.
— Honestidade assusta-me.
— Claro que assusta — disse ela, dando-me uma palmada leve no joelho. — Mas a mentira, essa que vive aí dentro, que tu alimentas, está a matar-te lentamente.
Olhei para o chão. Depois para ela. Depois para o céu lá fora, que se despedia em tons de cobre e violeta.
— Como é que consegues ser tão boa nisto? — perguntei, tentando disfarçar a emoção.
Um meio sorriso, surgiu no seu rosto.
— Porque alguém tem de ser adulta nesta casa. E claramente não sou eu — piscou-me o olho, arrancando-me um riso tímido.
Depois levantou-se num só movimento e estendeu-me a mão, casual, contudo determinada.
— Vamos. Chega de penitência estudantil por hoje.
Hesitei.
— Onde vamos?
O seu sorriso alargou-se, misterioso e desafiante.
— A lado nenhum em particular. Só para fora. Ar fresco. Um passeio. Às vezes, as melhores revelações acontecem quando estamos em movimento, sabes?
Olhei para a sua mão estendida, depois para o livro, e finalmente para a janela. E num gesto que me surpreendeu a mim mesma, peguei na mão dela e deixei-me ser puxada para cima.
***
Quinta-feira chegou impiedosa, despedaçando cada momento em que eu tentava concentrar-me sem conseguir. Três dias. Três dias a vaguear pela escola, os pensamentos sempre prontos a disparar para longe, sempre para o mesmo lugar.
Como habitual, eu e Piper chegamos à escola no carro de Jayden, por isso quando vi Chloe ao fundo do corredor, quase não acreditei. O corpo moveu-se antes que a cabeça entendesse, o coração disparou num tropeço miúdo, e as palavras, tudo que eu tinha ensaiado mentalmente nos últimos dias, evaporaram-se como vapor num espelho frio.
Ela permanecia encostada ao armário, a postura descontraída, como se tivesse estado sempre ali, como se não tivesse arrancado um pedaço de mim nos últimos três dias. A mochila caída num ombro, o cabelo propositadamente desalinhado, os olhos semicerrados enquanto mexia no celular com um ar de quem sabia exatamente o efeito magnético que causava.
Aproximei-me devagar, o coração martelando forte demais, tentando encontrar espaço no peito, a pele a eriçar-se levemente nos braços. Cada passo era um misto de urgência e dilema, como se eu não soubesse se devia correr para ela ou tomar outro rumo. Quando finalmente parei do seu lado, senti as palavras empilharem-se desordenadas na garganta.
Ela ergueu a cabeça, devagar, voltando-se para mim com aquele traço enviesado, carregado de significados ocultos.
— Três dias e já achaste que eu tinha desaparecido? — murmurou, a voz baixa, a deslizar pelo espaço entre nós como um sopro quente.
O meu estômago deu um nó. As mãos tremeram ligeiramente, e de repente não soube onde pousar os olhos, nem os dedos, nem a respiração. Parte de mim queria atirar-lhe todas as perguntas que me queimavam por dentro, exigir explicações, respostas, certezas. Mas não o fiz.
Clareei a garganta. Dirigi-lhe o olhar, lentamente, tentando encontrar uma pista, uma abertura, qualquer coisa que me dissesse que podia dar um passo em frente. E quando finalmente encontrei aquele azul-turquesa intenso, não consegui evitar um pequeno sorriso acanhado.
— Estava só preocupada. — Murmurei, a voz presa na garganta, quase arranhada de tanto conter palavras. — Só queria saber se estás bem.
Por um instante, vi o susto rápido nos olhos dela. Um piscar breve, como se a minha frase a tivesse apanhado desprevenida, como se não esperasse que eu fosse tão direta. Estudou-me em silêncio, os olhos deslizando pelo meu rosto, demorando-se por um segundo a mais nos meus lábios. Engoli em seco, sentindo o calor a subir-me às faces, uma corrente elétrica a percorrer-me o corpo, mas antes que pudesse fixar-me nesse olhar, ela desviou-o.
Passou as mãos pelo cabelo num gesto deliberadamente casual, e por um momento, só por um momento, vi ali uma fissura. Um pequeno recuo.
— Estou ótima. — afirmou, a voz suave, todavia contendo uma vibração oculta. — Só precisava de espaço.
As palavras bateram-me mais fundo do que eu esperava. Espaço. Um eufemismo perfeito para fuga. Porém doeu mesmo assim.
Humedeci os lábios, lutando novamente contra a vontade de a bombardear com perguntas. Ela inclinou-se ligeiramente para trás, encostando-se melhor ao armário, os olhos de novo presos em mim, faiscando com um brilho que eu não conseguia decifrar.
E naquele instante, como um estalo súbito que me atravessou o peito, lembrei-me.
“Quero-te inteira. Não pedaços. Não fragmentos.”
Essas palavras tinham-me perfurado na altura, feito recuar, afundar-me ainda mais na culpa, na dúvida, na ideia de que nunca seria suficiente. No entanto agora, naquele momento, olhando para ela, conseguia ver algo diferente.
Eu ainda não me sentia inteira. Ainda não. Ainda existiam resquícios em mim que tremiam, que duvidavam, que queriam fugir. Mas, uma versão nova de mim começava a querer existir.
Enquanto sustentava aquele contato visual, senti uma vontade imensa de a alcançar, de me entregar. Não da mesma forma apressada e impulsiva daquela noite, contudo de uma forma mais suave, mais completa, mais verdadeira.
O silêncio entre nós tornou-se tão denso que quase doía. O som do corredor, os passos distantes, as vozes abafadas, tudo se dissolveu, como se o mundo inteiro se tivesse retraído até restar só aquele pequeno espaço carregado, vibrante, eletrificado pela nossa tensão.
A sua atenção demorava-se em mim de um jeito que me deixava sem fôlego, como se a qualquer momento pudesse desvendar-me inteira, camada por camada. O meu coração batia-me nas costelas, feroz e doce, e por um segundo senti as palavras tremerem-me na garganta, como pétalas prestes a cair. Respirei fundo, indecisa, mas incapaz de as conter.
— Chloe — murmurei, mais rouca do que pretendia— no sábado, vais estar lá? No parque? Para o projeto?
Ela inclinou ligeiramente a cabeça, e por um momento, algo suavizou no seu rosto. Uma luz discreta despontou no seu tom de azul.
— Claro que vou. — disse apenas, a voz baixa, como se partilhasse um segredo só nosso. — Não perderia isso por nada.
Fechei os olhos por um instante, sentindo o alívio misturado ao medo, ao desejo, àquele nó quente e doce que parecia apertar-me o peito cada vez que ela estava por perto.
O meu corpo inclinou-se ligeiramente para a frente, como se movido por um íman, querendo apenas encurtar aquele espaço, dissipar a distância, anular a dúvida. Mas travei-me a tempo. Ainda não era o momento.
Engoli em seco, deixando escapar um sorriso pequeno, tímido, uma curva nos lábios que mal consegui sustentar.
— Ótimo — sussurrei, sentindo o coração dar um salto estranho. — Eu vejo-te lá, então.
Recuei um passo, devagar, como quem ensaia uma retirada. Mas os olhos dela, sempre os olhos, ficaram presos nos meus, brilhantes, intensos, como se carregassem uma pergunta que eu não saberia responder. Senti uma pontada miúda de adrenalina a subir-me pela espinha. O corredor estava vazio, quase cúmplice. Antes que pudesse racionalizar, o meu corpo moveu-se sozinho rápido, silencioso, reduzindo o espaço entre nós.
Aproximei os lábios do seu ouvido, sentindo o calor da sua pele a mudar, um leve rubor a tingir-lhe a pele da orelha, quase impercetível, quase uma vitória invisível.
— Se eu quiser falar contigo antes de sábado — murmurei, controlando o sorriso que ameaçava romper — tenho de esperar encontrar-te por acaso, esperar até de manhã quando chegares com o teu irmão, ou vais finalmente dar-me o teu número?
Afastei-me devagar, só o suficiente para lhe analisar a expressão, aquele semicerrar provocador, o sorriso malicioso a erguer-se num canto da boca. Chloe estudou-me em silêncio, inclinando ligeiramente a cabeça como quem aprecia um lance ousado.
— Olha para ti — murmurou, com aquela voz arrastada que parecia acariciar cada palavra. — Quem diria, sabes ser direta para pedir o que queres.
Afastou o corpo ligeiramente do armário, apenas para encher o espaço, para adensar o ar entre nós. Baixou o olhar, devagar e deliberadamente, até aos meus lábios e de volta, deixando o azul faiscar quando me encarou.
— Sabes, Maya — o seu timbre desceu ainda mais, até ser quase um sussurro de veludo — Quase apetece fazer-te implorar um pouco. Só para ver até onde chegas para teres o que queres.
Curvou-se para a frente, deixando as palavras deslizarem na minha pele como um toque físico.
— Tens mesmo noção do que estás a fazer? Ou estás só a brincar com fogo, para ver até onde consegues chegar sem te queimar?
O meu coração martelava tão alto que quase não ouvi a próxima frase.
— Porque, se realmente quiseres, se pedires, eu dou-te tudo. — Um sorriso lento, perigoso, curvou-lhe os lábios. — O número. As horas. O espaço. Tudo. Só tens de me mostrar até onde estás disposta a ir para me teres.
E naquele momento, juro, senti o ar rarefazer-se à nossa volta. Como se tivéssemos entrado numa área própria, um universo só nosso, onde as regras do mundo já não se aplicavam. Onde o toque, o desejo, o medo, a entrega, tudo se condensava naquele pequeno espaço de ar quente entre nós.
Senti os dedos formigarem, um tremor minucioso que me percorreu os braços até às mãos. Por um instante, quase recuei, quase me encolhi debaixo do peso da provocação.
Mas não.
Algo em mim, pequeno, frágil, todavia teimoso, empurrou-me para a frente. Um impulso mais forte do que a dúvida. Uma vontade, ainda titubeante, de atravessar a linha, de desafiar aquela força gravitacional que era Chloe.
Elevei o queixo tenuemente. Só um pouco. O suficiente para que os nossos olhares ficassem nivelados.
— E se eu não quiser tudo agora? — murmurei, a voz baixa, trémula num canto, mas firme no outro. — E se eu quiser, que tu sintas a falta?
As palavras saíram-me antes que a mente as filtrasse, e por um segundo o meu coração literalmente parou.
O susto atravessou a sua expressão, os seus lábios entreabriram-se e logo voltaram-se a fechar. O calor subiu-me pelo rosto, mas forcei-me a sustentar o olhar. Forcei-me a ficar. A não recuar.
Engoli em seco, o corpo inclinar-se levemente para a frente, como se eu estivesse a atravessar uma linha invisível.
— Não sei se quero tudo — continuei, e agora a voz soava mais baixa, mais íntima, quase um burburinho só para ela. — Mas sei que quero que me dês algo, por vontade própria, não porque eu implorei.
As palavras ardiam-me na boca, no peito, no fundo do estômago. Sabia o que diziam. Sabia o que estava por baixo.
Não queria mais repetir aquilo. Não queria mais ser a garota que cede num momento de tempestade, que beija porque não aguenta o peso do mundo, que avança porque o coração explode sem aviso. Não queria que ela me desse algo só porque me viu quebrada.
Queria que me desse porque queria. Porque olhava para mim e via mais do que pedaços espalhados, mais do que um caos por resolver.
A sua expressão mudou, percebi. Um brilho novo, mais quieto, menos afiado. A sua mão estendeu-se, lenta e segura. Tirei o celular do bolso com dedos trémulos, entregando-lho como se nas suas mãos estivesse mais do que um simples objeto. Ela digitou rápido e devolveu-mo com um roçar de dedos propositado, um toque leve, mas suficiente para incendiar.
— Agora já não tens desculpa para te esconderes de mim — segredou, piscando-me o olho antes de se afastar com passos lentos e fluidos.
Fiquei ali, sozinha no corredor vazio, o celular apertado contra o peito, enquanto o lugar ao redor ainda vibrava com o rasto dela, calor, desafio, promessa. Um arrepio subiu-me pela espinha e, por um instante, senti-me mais viva do que nunca.
Desde quinta-feira à noite, o meu celular tornara-se um campo minado de emoções. As mensagens fluíam timidamente, cada palavra escolhida com cuidado, cada frase relida mil vezes antes de ser enviada, como se o simples ato de digitar pudesse queimar os dedos.
Chloe: Então sobreviveste à aula de fotografia sem mim? Ou já te rendeste à magia encantadora da máquina gasta do professor?
Senti um pequeno riso escapar-me, involuntário, como uma bolha de ar quente subindo pelo peito.
Eu: Sobrevivi. Digamos com dificuldade.
Demorou a responder. Quando finalmente o fez, quase pude ouvir o tom arrastado da sua voz.
Chloe: Isso soa como dependência. Sabias que uma ferramenta só se torna indispensável quando quem a usa não sabe se adaptar?
Engoli em seco. Mordi o interior da bochecha, o gesto nervoso a trair o efeito daquelas palavras. O calor subiu-me às faces, a pele a formigar com a insinuação velada.
Eu: Estás a comparar-te a uma ferramenta? Isso soa menos brilhante do que o habitual.
Chloe: Estou a comparar-me à tensão que a ferramenta carrega. Ou pensavas que era só sobre o objeto?
O peito apertou-se, o ar rarefeito nos pulmões.
Eu: Eu acho que a culpa é de quem me ensinou. Quem terá sido, mesmo, a pessoa que ficou de me mostrar o básico?
A pausa dela foi mais longa agora.
Chloe: Culpa é um conceito pouco produtivo. Acredito em responsabilidade partilhada, com margem para improviso. Aliás sábado vamos inverter. Tu fotografas. Eu poso.
Fiquei a olhar para a tela, os dedos suspensos sobre o teclado, o coração a martelar contra as costelas. A imagem dela posando para mim, entregue, exposta, à mercê do meu olhar e da lente, invadiu-me a mente como um relâmpago, quente e afiado.
Eu: Se estás a sugerir isso. É porque realmente não te preocupa a nota que vamos receber.
Chloe: A nota é apenas um detalhe. Eu acredito fielmente que a minha metodologia sensorial teve efeito. Tenho quase a certeza de que vais conseguir manter as mãos firmes.
Tremi por dentro, um arrepio líquido a percorrer-me a espinha. As mãos firmes. Como naquela noite, quando a toquei, quando a tentei despir com a urgência crua de quem já não pode conter o desejo. A memória ainda estava lá, gravada na pele, pulsando sob a superfície.
Eu: Confiança excessiva costuma ser um defeito trágico.
Chloe: Talvez. Mas dizem que o trágico dá sempre boas imagens.
Deixei escapar a respiração que não sabia que prendia, lenta, trémula. O mundo à minha volta parecia interrompido naquele instante, como se o tempo tivesse parado só para que eu pudesse sentir cada contorno daquela verdade que se instalava entre nós. As suas palavras pairavam no ar, carregadas de significados.
Boas imagens. Seria isso que éramos?
Uma bela tragédia à espera de ser fotografada?
Baixei o olhar para as minhas mãos, estas mãos que sabiam agora o que era tocá-la, e senti o peso de todas as escolhas que ainda estavam por fazer.
Fim do capítulo
Este capítulo não se fecha com uma resposta.
Abre-se, antes, com uma pergunta.
Maya está a aprender que desejar não é necessariamente trair. Que o medo talvez seja apenas o modo do coração dizer que algo verdadeiro está a acontecer.
Entre o peso do passado e o chamamento do que ainda não tem nome, ela começa a dizer “não sei” com a coragem de quem já não quer mentir a si própria.
Obrigada!
Até ao próximo
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