O Peso do Azul por asuna
Capítulo 16
O dispositivo vibrava, incompassivo, sobre a mesinha ao lado da cama, emitindo pequenos saltos contra a madeira, cada zumbido ecoava na minha pele como um lembrete cruel do mundo que me esperava fora daquele instante. Ficámos ambas imóveis, como se o tempo tivesse congelado entre nós.
A respiração bloqueada na garganta, o seu olhar trespassava-me, tão perto que quase sentia o calor que irradiava do seu corpo, porém distante, infinitamente distante, como se um abismo intransponível se tivesse aberto entre nós.
O ruído abafado da festa no andar de baixo misturava-se àquela realidade asfixiante, o estalar da música contra as paredes, o som das garrafas a tilintar, um mundo que continuava a girar, vibrante e descomprometido, alheio, enquanto o meu universo implodia num silêncio compacto.
O meu corpo permaneceu fixo ao chão, incapaz de obedecer a qualquer impulso. Quis correr. Quis desvanecer. Quis agarrá-la. Quis suplicar-lhe que ficasse.
Chloe libertou o meu pulso com uma lentidão quase dolorosa, os dedos deslizaram pela minha pele num roçar que me incendiou ainda mais profundamente. Vi-a vacilar por um instante, antes de recuar um passo, depois outro.
O celular vibrou de novo, o som diluído agora no latejar apressado do meu próprio sangue.
— Devias atender — proferiu, a voz baixa, quebrada nas bordas, como se cada palavra lhe custasse mais do que permitia transparecer.
Engoli em seco.
Sem esperar resposta, virou-se, os passos suaves sobre o tapete, a porta entreaberta a engolir a sua silhueta como um sopro final.
Fiquei sozinha. Não apenas com a sua ausência, mas com a falta de mim mesma. Com a vergonha crua a escorrer-me pelo peito, com o travo amargo de quem sabe que está a viver pela metade.
Caminhei com vagar, cada passo um arrastar pesado, como se o ar dentro do quarto tivesse ganho espessura. A mão trémula estendeu-se para a mesinha. A vibração na minha palma, o seu nome iluminado, inevitável.
A garganta já cerrada. O dedo tremeu ao deslizar pelo visor.
Atendi.
Claro que atendi. Como poderia não atender?
— Maya? — A voz do meu pai irrompeu pela linha com a firmeza habitual. Um soco lento, profundo, no estômago.
Senti o nó apertar-se ainda mais na garganta, sufocando qualquer palavra que pudesse escapar. Se ele soubesse. Se imaginasse sequer por um instante o turbilhão que me consumia por dentro. Os sentimentos que me inundavam, o calor que me percorria a pele.
Fechei os olhos, mordendo o lábio até a dor se sobrepor à culpa. Agarrei o celular com força excessiva, como se isso pudesse conter as emoções que ameaçavam transbordar.
— Estou aqui — sussurrei, a voz saiu mais rouca do que eu pretendia.
Sentei-me na beira da cama, as costas curvadas como se pudesse encolher-me o suficiente para desaparecer, para voltar a ser invisível aos olhos que agora pareciam perscrutar-me através da distância.
Um silêncio breve pairou do outro lado, carregado de um desconforto silencioso.
— Estás bem? — interrogou, com uma subtileza ameaçadora, mais avaliação do que genuína preocupação.
— Estou só cansada — tentei soar leve, mas a mentira pesou, amarga na ponta da língua.
— Realmente pareces diferente. — A suspeita velada na sua voz, os músculos tensionaram-se instintivamente.
A mão livre retraiu-se, os dedos fechados contra a perna. Diferente. Como ele reagiria se soubesse da verdade?
Mentalmente, agradeci por este não ter ligado por videochamada.
— Acho que estou a ficar doente, já estava pronta para ir dormir —acrescentei rapidamente, acumulando outra mentira em cima da primeira, afundando-me um pouco mais naquele lodaçal interior.
Um ruído abrupto do outro lado da porta fez-me estremecer. O estilhaçar de algo frágil, vozes abafadas e o timbre irritado de Piper atravessaram as paredes, trazendo-me abruptamente de volta ao presente.
— O que foi isso? — O seu tom ganhou dureza, cortante, alerta.
— Nada — apressei-me a responder, o coração acelerou-se no peito. — Acho, acho que foi o vento. Bateu alguma porta.
Outra mentira, outro golpe no estômago.
A ausência de som prolongou-se. Imaginei-o sentado no escritório, olhos semicerrados, avaliando cada pausa, cada hesitação. Podia sentir o peso da sua desconfiança.
— Maya — a voz grave fez-me regressar à menina pequena sentada na igreja, sentindo-se sempre insuficiente. — Precisas de ter cuidado. A distância, a liberdade excessiva. São caminhos enganosos. Pequenos desvios podem levar-nos para muito longe daquilo que fomos chamados a ser. Não deixes que a tua luz se apague — prosseguiu, implacável. — Não foste criada para te perderes neste mundo. Foste escolhida. Lembra-te disso.
O peito comprimiu-se, sufocando-me lentamente. O peso da culpa esmagava-me contra uma verdade que não podia admitir-lhe.
Chamados a ser?
Escolhida?
Como poderia eu ser escolhida se dentro de mim tudo era errado?
Como poderia eu ser luz, se a única coisa que arde em mim é exatamente aquilo que ele mais condena?
Uma revolta súbita subiu-me pelo peito, escaldante, amarga. O desejo de quebrar aquela ligação, de atirar o telefone contra a parede, cortando de vez os fios invisíveis que ainda me prendiam.
Contudo apenas respirei fundo.
— Eu vou lembrar-me — murmurei, com esforço.
As palavras ecoaram com ironia dentro de mim, pontadas surdas de uma promessa impossível de cumprir. Lembrar-me-ia, sim, da forma como me fragmentava para caber no seu molde, como me dividia entre aquilo que sentia e a sua expectativa.
— Muito bem. — A sua voz suavizou-se ligeiramente, talvez satisfeito pela promessa arrancada à força. — Vou orar por ti esta noite.
Fechei os olhos com força, uma lágrima ardente escorrendo silenciosa pela face.
— Obrigada, pai.
— Deus te abençoe, filha.
Desligou antes que eu pudesse responder.
O silêncio caiu sobre o quarto como um peso impossível de suportar.
Deixei o dispositivo cair sobre a colcha, o corpo dobrando-se sobre si mesmo, vencido pela exaustão. Pressionei as palmas contra o rosto, sentindo os soluços subirem agora não como arrependimento, mas como uma raiva uma raiva surda e incógnita, fervilhando sob a superfície da pele.
Lá em baixo, a festa continuava risos, música, promessas de uma liberdade que eu não conseguia sequer saborear.
Levantei-me num impulso, arrancando as roupas amarrotadas, como se pudesse despir-me também daquela vulnerabilidade que me queimava por dentro. Escolhi peças largas, confortáveis, que pudessem esconder aquilo que não conseguia enfrentar. Vesti-as depressa, quase como uma armadura improvisada.
Parei diante do espelho, os dedos indecisos tocando levemente o vidro frio. O instinto era desviar o olhar, evitar o confronto com aquela estranha familiar que me observava. No entanto os meus olhos fixaram-se nos dela, presos num embate silencioso. Não via apenas um rosto marcado pela exaustão e insegurança, mas alguém que começava a emergir, hesitante, das profundezas.
O reflexo oscilou diante de mim, uma versão minha à beira de romper ou recuar, cada respiração pesando mais do que a anterior. O peito latej*v*. O maxilar crispou-se, os dentes cerrados. Não era o espelho que tremia, mas algo dentro de mim, prestes a partir-se ou libertar-se.
Num gesto brusco, afastei os olhos do reflexo, como se isso pudesse apagar aquilo que já não conseguia negar. Saí do quarto sem rumo certo, levada pela inquietação. No andar de baixo, a festa pulsava alheia ao turbilhão dentro de mim. Os corpos preenchiam o espaço, indiferentes à minha luta interna.
Procurei-a rapidamente, quase inconscientemente, mas logo percebi que não podia ficar ali. Deslizei discretamente entre as pessoas, pedindo desculpa pela minha própria existência, atravessando a sala até à porta de vidro que dava acesso ao jardim.
Lá fora, o ar fresco da noite envolveu-me num abraço reconfortante. Libertei o ar dos meus pulmões, sentindo pela primeira vez em horas que podia suportar o peso do mundo sem me afundar. Caminhei lentamente pelo relvado húmido, até encontrar uma cadeira isolada entre as sombras do jardim. Deixei-me cair sobre ela, o corpo finalmente cedendo ao cansaço.
Os olhos fecharam-se, mas a garganta continuava apertada, prendendo as lágrimas que recusava soltar. A harmonia ao fundo misturava-se ao suave murmúrio das folhas ao vento. Ergui lentamente o olhar para o céu, as estrelas brilhando indiferentes ao caos que se formava em mim.
Contemplei-as em silêncio, buscando nas constelações uma resposta que talvez ainda não estivesse pronta para aceitar, porém que já começava a pressentir. Nesse momento, senti algo no bolso. Retirei o papel amarrotado, reconhecendo imediatamente.
“Nem tudo o que te afoga é fundo.”
O papel era uma mensagem quase cruel na sua suavidade. As palavras reverberaram em mim com um significado novo, profundo e inquietante. Observei novamente o céu, permitindo-me, por um instante, imaginar.
Como seria a minha vida sem o peso constante que carregava nos ombros? Se não tivesse sido moldada a ferro e silêncio, para caber num molde que nunca foi meu? Como seria se o amor não fosse pecado, se o toque não fosse ameaça, se a minha vontade fosse suficiente?
Pensei em Chloe, na sua intensidade, na forma como o seu toque me queimara e como, no último instante, me travara com uma gentileza dolorosa. Pensei até em Piper, na sua rebeldia livre, na sua coragem descomplicada, ambas vivendo com uma ousadia que me fascinava de formas diferentes e assustava simultaneamente.
Aqui, longe da segurança rígida da minha casa, cada limite parecia estilhaçar-se com mais facilidade. Cada descoberta nova mostrava-me o quão enclausurada e acorrentada eu sempre vivera.
Talvez o meu pai já soubesse disso. Talvez o seu dilema em deixar-me vir tivesse sido por entender que a liberdade trazia consigo um abismo que eu não saberia enfrentar sozinha.
Pela primeira vez, permiti que o pensamento ganhasse força dentro de mim, inteiro e real.
E se eu também pudesse?
E se, por uma vez, deixasse de me esconder?
Levantei-me devagar da cadeira, sentindo os músculos ainda tensos, como se o corpo protestasse contra aquela decisão silenciosa. O ar frio roçava-me a pele, lembrando-me de cada sensação que eu tentara ignorar durante tanto tempo. Inspirei fundo, enchendo os pulmões como se pudesse ganhar fôlego suficiente para atravessar a noite, atravessar-me a mim mesma.
Os sons do divertimento chegavam-me amortecidos pela distância, risos entrecortados, música em surdina, passos apressados. Apertei o papel na mão.
Com um gesto ainda indeciso, comecei a caminhar de volta para a casa. Cada passo parecia mais pesado do que o anterior, como se arrastasse comigo as versões antigas de mim mesma, aquelas que sempre recuavam, sempre se escondiam, sempre pediam desculpa antes mesmo de existir.
Atravessei o jardim quase sem perceber. Quando alcancei a porta de vidro.
Entrei.
A luz, o ritmo, as conversas envolveram-me imediatamente, como um manto de ruído e cor. Passei pelos rostos conhecidos, pelos corpos que dançavam e se misturavam no espaço, procurando-a. Os meus olhos varriam a sala, buscando aquela silhueta familiar, aquele olhar azul turquesa.
Mas ela não estava lá.
Fui percorrendo o espaço devagar, sem querer chamar atenção, apenas movendo-me entre as sombras e a luz, sustentada por um impulso que eu própria não sabia explicar. Talvez sua ausência fosse um lembrete, um sussurro de que possivelmente ainda não fosse o momento, que talvez houvesse coisas dentro de mim que precisavam primeiro de se assentar, de ganhar forma.
Deixei escapar um suspiro, sentindo o peito apertar-se, não de derrota, mas de aceitação. Não era sempre que a vida nos entregava aquilo que desejávamos no momento exato em que o queríamos. E talvez isso também fosse parte do aprender a não me esconder.
Apertei o papel mais uma vez na mão e voltei para o quarto.
***
Era de manhã, e por mais que tentasse, não consegui dormir. Durante a noite, passei algum tempo sentada à minha mesa de estudo, escrevendo, na esperança de que isso me ajudasse a ganhar alguma claridade. Em algum momento, o barulho cessou, e a casa mergulhou num silêncio noturno familiar.
Examinei o relógio, era domingo. Ergui-me devagar e vesti algo apropriado para a congregação. Sabia que chegaria cedo, contudo, havia algo dentro de mim que sussurrava que eu precisava sair de casa agora. Como se ficar mais tempo ali me enredasse novamente nas dúvidas que durante a noite tentei arrumar em palavras.
Apressada, desci os degraus, os pés quase tropeçando nos tapetes desalinhados, a visão fugidia das almofadas caídas, a casa exalava a álcool derramado, tentei ignorar. Quando passei pela sala, algo chamou a minha atenção. Dei um passo atrás, os olhos fixaram-se no sofá.
Piper dormia, entrelaçada a Jude, as duas cobertas com um cobertor fino que deixava visíveis partes do corpo nu, abandonado à intimidade. Fiquei presa naquele pensamento por mais tempo do que gostaria, um calor subtil subindo-me ao rosto. Não era apenas surpresa. Era um reconhecimento estranho, como se, ao olhar para elas, eu visse não apenas algo exterior, todavia algo que começava, subtilmente, a despertar dentro de mim.
Pensei em Chloe.
Não na provocação, nem na tensão, nem sequer no beijo. Pensei nela na forma como o seu olhar atravessava os espaços, como parecia mover-se pelo mundo sem pedir licença. Perguntando-me, baixinho, se um dia eu teria coragem não apenas de desejar, mas de me permitir ser desejada com essa mesma inteireza.
Engoli em seco, sacudindo suavemente a cabeça, afastando o pensamento como quem afasta um pensamento sabendo que ele voltará, inevitável. Ajustei a alça da bolsa no ombro, caminhei até à porta, abrindo-a suavemente.
O vento da manhã roçava-me a pele, levantando pequenos arrepios na curva exposta do pescoço.
A igreja familiar apareceu no campo de visão, porta entreaberta, deixando escapar um murmúrio suave vindo do interior. Dei um passo indeciso na sua direção, porém logo me detive, o corpo vacilou como se pressentisse a batalha intangível que se travava dentro de mim.
Na minha mente, os pensamentos turbilhonavam num remoinho caótico, tropeçando uns nos outros, fragmentos dispersos de dúvidas e anseios a digladiarem-se pela supremacia. Mordi o interior da bochecha, o gesto nervoso a trair a indecisão que me tolhia os movimentos. Os músculos das pernas fraquejavam, ameaçando ceder sob o fardo invisível que carregava nos ombros.
Minutos arrastaram-se, cada segundo a pesar como chumbo, até que senti o meu pé recuar instintivamente, como se o próprio corpo decidisse por mim, sussurrando mais uma vez em silêncio que eu já não pertencia por inteiro àquele espaço outrora sagrado, ou, pelo menos, não da mesma forma incontestada.
O estômago revirou-se num aperto fino, como se as dúvidas ganhassem forma física e me esmagassem por dentro. Estava prestes a virar costas, pronta para me evadir daquela encruzilhada emocional, quando uma voz feminina familiar cortou o ar como uma lâmina de luz em meio à névoa.
— Bom dia! — A voz veio suave, no entanto firme, cortando-me o movimento.
Sobressaltei-me. Os olhos arregalaram-se, e só então percebi a mulher que se aproximava. Morena, de cabelos puxados para trás num coque baixo. O sorriso era leve, sem formalidade, quase curioso.
— Está tudo bem? Precisas de ajuda? — questionou ela, sem perder a ternura.
Fiquei ali, a meio movimento de fuga, tentando articular uma resposta. O coração batia tão forte que tive medo que ela ouvisse. O ar rasgou-me ao passar, puxando um sorriso tímido, quase automático.
— Ah não obrigada, eu só estava de passagem. — Murmurei, a voz a falhar ligeiramente.
O seu rosto iluminou-se.
— Primeira vez aqui? — O sotaque australiano era inconfundível, porém havia nele uma cadência tranquila
Estendeu a mão com naturalidade.
— Sou a pastora Collins. — Apresentou-se, inclinando ligeiramente a cabeça, os olhos escuros pousados em mim com uma atenção serena, sem invadir. — E tu, como te chamas?
Hesitei um instante antes de aceitar o cumprimento.
— Maya. Sou a Maya.
O olhar atento dela percorreu-me, com aquele tipo de interesse genuíno, pastoral.
— Maya, não és daqui, pois não? — Um sorriso discreto, quase brincalhão, desenhou-se-lhe no rosto. — O sotaque não mente.
— Sou de fora, sim. Estou aqui há uns três meses, mais ou menos.
— E o que te trouxe até nós hoje, Maya? — perguntou, a voz calma, os olhos atentos, querendo realmente ouvir.
— Na verdade, não é a primeira vez que venho, costumo participar nas cerimónias quase todos os domingos.
A pastora deixou transparecer um acolhimento amplo, uma suavidade que vinha mais do gesto comunitário do que de um entusiasmo genuíno.
— Ah sim, claro. Já te vi algumas vezes, sentada atrás, perto da última fila. — Comentou ela, com um aceno breve na direção da porta da igreja, os lábios a curvarem-se transmitindo tranquilidade. — Sabes, é sempre muito bonito quando jovens escolhem estar aqui. É especial, significativo, sobretudo quando estão em busca de algo mais, quando sentem uma inquietação e nos procuram para serem orientados, para encontrarem um caminho que lhes faça sentido.
Engoli em seco. Algo mais. Era isso mesmo que eu andava á procura? Respostas para as perguntas que me perseguiam? Um nome para os sentimentos que me rasgavam por dentro?
— Eu não sei bem o que estou á procura — murmurei, a voz baixa, incerta. — Só sei que preciso de algo, algo que me ajude a entender.
Ela assentiu devagar, como quem entende sem precisar de grandes explicações.
— Sabes — disse num tom calmo, quase como quem oferece uma pausa — se quiseres conversar, temos um espaço ali dentro, mais sossegado. Ou podemos só tomar um chá.
As mãos enfiadas nos bolsos do casaco estavam rígidas, os dedos dormentes de tanto se apertarem. Respirei fundo, sentindo a garganta seca.
— Um chá, talvez — sussurrei, surpreendida pela fragilidade da minha própria voz.
O sorriso dela manteve-se discreto, apenas acolhedor.
— Então vamos. Às vezes é bom simplesmente sentar e ser ouvida.
A sala era simples, pequena, com uma janela onde a luz esmorecia atrás das cortinas bege. Uma mesa redonda, duas cadeiras, uma estante cheia de livros já manuseados. Um cheiro leve de chá e madeira antiga pairava no ar, aquecendo ligeiramente o ambiente.
Sentei-me devagar, as mãos ainda presas nos bolsos, como se o tecido grosso pudesse proteger-me das perguntas, das verdades que eu mal ousava enfrentar. O peito apertava, e nem as respirações fundas alargavam aquele espaço comprimido.
A pastora Collins sentou-se à minha frente, empurrando uma xícara de chá na minha direção com um gesto simples, quase maternal.
— Maya — o meu nome saiu-lhe com uma suavidade desarmante. — Não precisas de contar-me nada que não queiras.
Uma pressão fina espalhou-se pelo peito, subindo até aos olhos, pronta a transbordar. Baixei o olhar para as mãos, que agora tremiam levemente.
— Eu só — inspirei fundo, tentando manter a compostura — não consigo parar de sentir que estou a falhar.
A palavra ecoou na minha mente, ganhando forma. Falhar. Como se eu fosse uma equação mal resolvida.
Esta inclinou-se ligeiramente para a frente, os cotovelos apoiados com suavidade na mesa.
— Posso perguntar a quem sentes que estás a falhar?
As lágrimas queimaram-me os olhos antes que conseguisse travá-las. Pisquei rápido, irritada comigo própria.
— Ao meu pai. A Deus. Àquilo que devia ser. — A voz saiu num fio quebrado. — Eu fiz algo que não devia ter feito.
Ela não pediu explicações. Não quis detalhes. Apenas permaneceu, atenta.
— E sentes que isso te afastou de Deus? — perguntou, num tom tão tranquilo que parecia atravessar todas as barreiras que eu nem sabia ter erguido.
Respirei fundo, cerrando os olhos por um instante.
— Sabes, Maya, há uma história na Bíblia que sempre me tocou profundamente. A do filho pródigo.
Franzi ligeiramente o cenho, tentando recordar-me dos detalhes daquela parábola tão conhecida.
— O filho que deixou a casa do pai e esbanjou toda a sua herança, certo?
— Sim, esse mesmo. Mas sabes qual é a parte mais bonita dessa história? — a sua expressão ganhou um brilho suave, não de excitação, mas de ternura tranquila. — A parte em que o filho decide voltar para casa, mesmo depois de todos os erros que cometeu. E o pai, em vez de o rejeitar ou condenar, corre para ele de braços abertos, pronto para o receber de volta.
O peso dentro de mim cresceu, empurrando as lágrimas novamente contra os olhos. Porque, naquela simplicidade, naquela história antiga, havia algo que tocava diretamente no âmago do meu conflito.
— Mas e se, e se o filho tivesse feito algo imperdoável? — A pergunta escapou-me dos lábios antes que eu pudesse contê-la, carregada de uma angústia que eu já não sabia disfarçar. — Algo que o pai nunca poderia aceitar?
Esta aproximou-se um pouco mais, o seu olhar firme, no entanto cheio de uma compaixão que quase doía.
— Maya, o amor de um pai, o amor de Deus é maior do que qualquer erro que possamos cometer. Não há nada, absolutamente nada, que possa separar-nos desse amor. Nem os nossos erros, nem os nossos medos, nem mesmo as partes de nós que tememos que sejam imperfeitas ou inaceitáveis.
Estou-me com uma compaixão que parecia emanar de cada célula do seu ser. Era como se, de alguma forma, ela conseguisse ver através das camadas de medo e confusão que me envolviam, alcançando o íntimo da minha alma.
— Sei que pode ser difícil acreditar nisso, especialmente quando nos sentimos perdidos ou confusos. Mas quero que saibas que este é um lugar seguro, Maya. Um lugar onde podes trazer as tuas dúvidas, os teus medos, as tuas lutas. Aqui, não serás julgada ou condenada. Apenas acolhida, exatamente como és.
As sua palavras atingiram-me como uma onda quente, envolvendo-me num abraço invisível. Senti os olhos encherem-se de lágrimas, a garganta apertada com um choro contido. Engoli o nó que me sufocava, assentindo, incapaz de encontrar a minha voz para responder.
Vi-a esboçar um sorriso breve, sereno.
— Tenho algo para ti — disse ela suavemente, levantando-se. — Espera aqui um instante.
Segui-lhe os movimentos com o olhar, os passos firmes enquanto caminhava até à estante, mãos seguras, como quem já sabe exatamente o que procura. Quando voltou, trazia nas mãos um livro de capa gasta, as páginas amareladas pelo tempo e pelo manuseio frequente.
— É um livro repleto de reflexões, histórias e pensamentos que podem ajudar-te nesta jornada de autodescoberta — explicou, estendendo-me o volume com um gesto gentil. — Sei que pode parecer assustador enfrentar certas questões, sobretudo na tua idade, longe da família, dos amigos. Mas às vezes, as respostas estão mais perto do que imaginamos. Estão dentro de nós, só à espera de serem ouvidas.
Agarrei o livro com dedos trémulos, sentindo o peso morno nas mãos.
— Obrigada — sussurrei, a voz embargada. — Eu vou ler com atenção.
— Lembra-te sempre Maya, não estás sozinha nesta caminhada. E seja qual for o caminho que escolheres, há sempre um lugar para ti na casa d’Ele.
Fez uma breve pausa, como quem mede o peso das palavras.
— Podes ficar aqui um pouco mais, se precisares. Fica até te sentires pronta para sair.
Com um último sorriso calmo e um toque leve no meu ombro, a pastora afastou-se, deixando-me ali, sozinha com o livro apertado entre as mãos e um sussurro novo a crescer no peito. Ainda tremia ligeiramente quando saí de la, o ar da rua frio demais contra a pele quente, como se o corpo não conseguisse regular-se, não ainda.
Quando abri a porta de casa, percebi que Amanda e Paul ainda não tinham chegado. Avancei devagar, até que as vozes surgiram ao fundo, abafadas, misturadas com risos abafados e pequenos sons de coisas a serem movidas. Jude, Noah, Amber, até Ethan, imaginei, pela sombra alta junto à janela estavam todos ali, a ajudar Piper a reorganizar a sala, as almofadas no chão, os copos esquecidos, os objetos fora do lugar.
O meu olhar correu pela sala num impulso, quase automático, à procura do sexto elemento. Dela. Senti o lábio inferior contrair-se, aquele gesto involuntário. Ela não estava ali.
— Olha, olha quem resolveu finalmente aparecer para ajudar a arrumar esta bagunça — resmungou Piper, a voz rouca, pesada, visivelmente marcada pela ressaca que lhe toldava os olhos semicerrados. Um sorriso enviesado, sem paciência, atravessou-lhe o rosto enquanto limpava a mesinha de centro. — Ou vieste só ver o espetáculo? Porque não te iludas, Maya, isto hoje é só sobrevivência básica.
O riso dela foi curto, seco, seguido de um leve gemido quando se curvou para apanhar uma almofada caída.
— Claro, vou ajudar, dá-me só um minuto — murmurei apressada.
Caminhei até ao quarto, largando o livro em cima da cómoda, tirando a bolsa e o casaco. Inspirei fundo, as mãos ainda trémulas, desci os degraus de novo, já preparada para mergulhar no caos da sala. Contudo no último degrau, Ethan surgiu, bloqueando-me a passagem. Passou a mão pelo cabelo, um gesto visivelmente nervoso.
— Hey! Hum será que podemos conversar por alguns minutos? — questionou.
Examinei-lhe o rosto. De imediato percebi que depois daquela manhã, tendo em conta o que ainda borbulhava dentro de mim, eu sabia que o quer que fosse eu não iria querer ter aquela conversa. Não hoje.
Forcei um pequeno sorriso
— Ethan desculpa, mas neste momento precisamos mesmo de deixar esta casa impecável antes que a Amanda e o Paul cheguem. A sério, podemos falar amanhã? Prometo que amanhã serei toda ouvidos.
Ele hesitou, os olhos piscando como se quisesse insistir, mas no fim apenas assentiu, um pouco derrotado, afastando-se com um encolher de ombros. Deixei escapar o ar dos pulmões devagar, tentando alinhar-me ao ruído da sala, o som das vozes, das coisas a serem arrastadas, das pequenas explosões de riso rouco vindas de Piper, que conseguia transformar até um pano de limpeza num espetáculo de circo.
As horas passaram. O corpo moveu-se em piloto automático, recolhendo apressadamente garrafas, varrendo meticulosamente as migalhas, alinhando livros e objetos. Aos poucos, a residência pareceu familiar de novo.
Quando Amanda e Paul chegaram, a casa já respirava de novo, as linhas da sala reconquistadas, os tapetes alisados, os cheiros misturados de velas acesas e chá fresco. Amanda percorreu o espaço com um olhar atento, a atenção varreu os cantos, os móveis, as superfícies limpas, até se deterem em nós, exausta, porém satisfeita.
Finalmente sozinha no quarto, depois de um banho quente, deitei-me na cama, a luz suave pousava como um lençol morno sobre a capa azul do livro que repousava no meu colo. Passei os dedos pela lombada, sentindo a textura gasta, os relevos das letras douradas quase apagados. Suspirei. Abri-o com cuidado, sentindo o cheiro familiar das páginas.
As primeiras palavras prenderam a minha atenção.
“Não é no afastamento que Deus te encontra, mas na fenda exata onde te partes. É na falha, não no controlo. Na vulnerabilidade, não no recuo.”
As mãos apertaram-se levemente no canto da página. Respirei fundo, lendo de novo. Uma, duas vezes. A garganta apertou-se, e por um instante, precisei de pousar o livro no colo, fechar os olhos e refletir.
Eu sempre achei, não, sempre temi que ser amada por Deus exigia pureza. Uma pureza imaculada, feita de obediência, de silêncios bem medidos, de desejos calados antes mesmo de nascerem. Sempre pensei que cada falha me afastava dele, como passos dados para trás no escuro.
Tentei acalmar a inquietação que crescia dentro de mim. Voltei a pegar no livro, folheando-o lentamente.
Parei numa outra passagem que parecia saltar da página, como se tivesse sido escrita especialmente para mim.
"O amor verdadeiro nunca exige que sejamos alguém que não somos. O amor verdadeiro aceita-nos exatamente como somos, com todas as nossas falhas, todos os nossos desejos, todas as nossas dúvidas. O amor verdadeiro não nos julga. Apenas nos abraça."
As lágrimas subiram, quentes, insistentes. A visão tornou-se turva. Porque naquelas palavras simples, naquelas frases que pareciam sussurradas diretamente ao meu coração, havia uma verdade que eu passara a vida inteira a tentar negar.
A verdade de que eu não precisava de me esconder. De que eu não precisava de me envergonhar dos meus sentimentos, dos meus desejos, de quem eu era.
Por um instante, recordei o toque dela, o toque que ficara preso à minha pele, mesmo horas depois. Chloe. O calor que não era pecado, que não era condenação, mas presença. Verdade. E eu, tão acostumada a fugir de mim mesma, começava a perceber que talvez não fosse Deus quem me afastava. Talvez fosse eu própria.
Deus, se ele realmente existia, se ele realmente me amava, então ele amava-me por inteiro. Mesmo as partes de mim que eu tentara esconder, mesmo as partes de mim que eu temera que fossem imperfeitas ou inaceitáveis.
E se Deus podia amar-me assim, talvez, apenas talvez, eu também pudesse aprender a amar-me da mesma forma.
Fechei o livro devagar, apertando-o contra o peito. Aquelas palavras pareciam ter sido escritas apenas para mim, eu encontrara algo que passara a vida inteira a procurar.
Aceitação. Não apenas de Deus, ou dos outros. Mas de mim mesma.
Sorri, sentindo uma lágrima solitária deslizar pela bochecha. Não porque deixei de ter medo, mas porque o medo, sozinho, já não chegava para me manter imóvel.
Segunda-feira tinha começado. A luz da manhã filtrava-se suavemente pelas cortinas. Estava à janela, os dedos pousados no parapeito frio, lá fora, a rua permanecia vazia, o silêncio apenas quebrado pelo ocasional trinado de um pássaro.
O carro de Jayden surgiu ao longe, primeiro apenas uma mancha escura no horizonte, depois tomando forma, aproximando-se devagar. A respiração ficou-me presa no peito. Não consegui evitar. O coração martelava num ritmo desconfortável, e não era por causa do dia de escola, nem das aulas, nem dos exames.
O veículo estacionou. Piper desceu primeiro, sacudindo o cabelo ruivo, os gestos despreocupados, a voz a ecoar em gargalhadas leves, enquanto dizia algo a Jayden que abanava a cabeça, indulgente. Observei-os de cima.
Respirei fundo, os dedos a apertarem a alça da mochila. Era agora. Passo a passo, desci. O ar fresco da manhã abraçou-me, fazendo-me puxar o casaco mais para junto do corpo. O nervosismo espraiava-se sob a pele, um formigueiro inquieto, hoje seria a primeira vez que a iria ver depois de sábado à noite.
Aproximei-me do automóvel, os olhos a varrerem o interior, procurando, ansiando pelo vislumbre de olhos azul-intensos, de cabelos desalinhados. Mas não havia ninguém.
Entrei no carro, tentando disfarçar o desapontamento. Um calor desconfortável subiu-me às faces e, com um esforço quase sobre-humano, tornei a minha voz casual.
— Jayden, a tua irmã não vem hoje? — perguntei, o tom demasiado leve, demasiado estudado, como se não me importasse realmente com a resposta.
Este lançou-me um olhar breve pelo espelho retrovisor enquanto ligava o carro.
— Não. Disse que não se sentia bem, ficou em casa.
A frase caiu sobre mim com um peso inesperado, fazendo o meu peito afundar-se um pouco, como se o ar à minha volta tivesse ficado mais denso, mais difícil de respirar. Piper bufou de leve, já a mexer no celular, completamente alheia ao silêncio estranho que se instalara em mim.
Mordi o interior da bochecha, lutando contra o turbilhão de pensamentos que ameaçava sufocar-me. Será que ela estava realmente doente? Ou estaria a evitar-me depois do que tinha acontecido entre nós? A dúvida queimava-me a garganta.
— É alguma coisa grave? — ouvi-me dizer, os olhos fixos na janela, como se falar para o vidro fosse mais fácil do que encarar qualquer resposta.
Piper soltou uma gargalhada seca, quase divertida, cruzando as pernas no banco enquanto inclinava o corpo para trás. Pelo canto do olho, vi-a lançar-me um olhar pelo espelho lateral, um sorriso puxando-lhe os lábios com uma ponta de malícia.
— Grave? — repetiu, arrastando a palavra como quem saboreia uma piada só dela. — Por favor, Maya. A única gravidade foi a forma como ela se afundou nos copos no sábado à noite. — Fez um gesto leve com a mão, como quem afasta um pensamento incómodo. — Eu até tentei intervir, sabes? Mas, sinceramente, algumas pessoas, preferem mergulhar fundo quando as coisas começam a pesar.
O sarcasmo na sua voz era evidente, misturado com um certo desdém que ela mal se dava ao trabalho de disfarçar. Virou ligeiramente a cabeça, o cabelo ruivo espalhando-se preguiçosamente pelo encosto do banco.
— Mas olha, nem toda a gente tem a sorte de acalmar a cabeça com chá de camomila e leituras sagradas antes de dormir, pois não? — acrescentou, lançando-me um meio sorriso afiado, os olhos brilhando com uma diversão que escondia mais do que dizia.
Arqueei uma sobrancelha, uma pergunta formulou-se rapidamente na minha mente. No entanto pressionei os lábios, engolindo as palavras antes que pudessem escapar. Não valia a pena entrar em confronto, não agora.
Em vez disso, apenas respirei fundo e encostei a testa ao vidro gelado da janela, absorvendo a ideia, a imagem de Chloe encontrando refúgio no álcool e nesse instante, o frio do vidro contra a minha testa parecia ser a única coisa capaz de segurar o calor desordenado que me fervilhava sob a pele.
Fechei os olhos, desejando, por um instante, poder estar com ela. Porém esse pensamento era ainda perigoso. E por isso, empurrei-o temporariamente para o fundo da mente.
Fim do capítulo
Na minha opinião há capítulos que não são apenas parte da história. São fronteiras.
Eu, sinceramente, não tenho muito mais a acrescentar sobre este capítulo, ele fala por si, ou pelo menos espero que fale...
Espero também que vocês tenham sentido, compreendido, absorvido a coerência emocional das personagens, os pequenos laços que as unem e as rupturas subtis que começam a desenhar-se.
Obrigada, de coração, a quem continua a acompanhar esta história, com paciência.
Vemo-nos no próximo!
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