Capitulo 31 – Reencontrando o passado
Camila
Ajeito-me na cadeira. Deixo o garfo cair ao lado do prato que contém o bolo delicioso de laranja que minha mãe faz. Meu pai apoia-se sobre as mãos, inclinando o corpo para frente.
- O que quer falar sobre seu irmão?
- Quero saber o que aconteceu para que ele fosse embora daquele jeito daqui.
- Ele não te contou?
- Sim, papai. Ele contou, mas preciso saber de vocês. Queria escutar de vocês dois, pois para mim pareceu uma ideia absurda tudo o que ele me narrou.
- Nada do que ele tenha dito é mentira. Não aceito essa condição dele. – Afirma.
- Anderson, querido. – Mamãe tenta tocar seu braço.
- Não. Já disse, não vou virar motivo de piada nessa cidade por conta de um filho degenerado.
- Degenerado? Papai, isso é um absurdo. - Sinto a revolta tomar conta de mim.
- Absurdo é o seu irmão se agarrando com um marmanjo dentro da nossa casa.
- Preferia que ele fizesse isso na rua?
- Isso é uma abominação. Eu não sei onde errei com aquele garoto. Todos já comentavam, as brincadeiras na oficina não paravam quando ele ia lá. Todos sabiam.
- E colocá-lo para fora iria mudar algo? Por favor, papai. Tenha santa paciência. Ele é seu filho.
- Não é mais, desde que resolveu ser assim. – Aquilo me atingiu em cheio.
- Então é isso, ele deixou de ser seu filho apenas por gostar de homem? Por amar de uma forma diferente do que o senhor ou a sociedade considera normal? Mamãe, me ajuda aqui. – Peço. Ela chora, noto a tristeza em seu olhar. Mas seu silêncio segue. – Eu não consigo acreditar que vocês possam ser tão preconceituosos a ponto de abandonar um filho, o único filho homem de vocês.
- ELE NÃO É MEU FILHO. – Ele grita, juntamente com um trovão que parece estremecer até o chão da casa.
- Certo. Se ele não é seu filho, eu também não sou. – afirmo buscando uma coragem que nem eu sabia que tinha.
- O que está querendo dizer?
- Que eu sou lésbica. Que namoro uma mulher.
Ele gargalha com histeria. Passa as mãos no cabelo, chuta uma cadeira. Minha mãe continua quieta no canto. Chora silenciosamente. Nunca havia visto meu pai daquele jeito.
- Eu não me importo quem aquece sua cama, desde que seja longe daqui. – afirma. – E não é como se nós não soubéssemos o que aconteceu com Helen e você. Mas aquele garoto, aquele garoto aqui nessa cidade não fica. – sai batendo a porta. Eu fico surpresa com suas palavras.
A chuva que se inicia lá fora é tempestuosa. Encaro minha mãe, ela ajeita a cadeira. Dou as costas para ir em direção ao quarto, pegar minhas coisas e ir embora, não há nada a fazer ali.
- Não vá. – Ela suplica. – Tenho esperanças que seu pai mude essa cabeça dura dele, talvez você consiga fazê-lo enxergar de forma diferente o que está acontecendo.
- Não sei se sou bem vinda aqui. – Digo magoada.
- Esse é o seu lar. – Ela afirma segurando minhas mãos nas suas.
- A casa continua a mesma, mamãe, mas meu lar não parece ser mais esse. – Dou as costas e vou em direção ao quarto.
O vento entra forte pela janela. Fazendo a porta bater. Empurrou-a e entro no quarto. Seguro um grito quando vejo que não estou sozinha.
- Desculpa, não quis te assustar. – Helen diz apressada se pondo de pé.
- O que está fazendo aqui? – Questiono enquanto fecho a janela.
- Vi seu pai sair. Ele parecia bravo. Pensei em vir ver se estava tudo bem. – Sorriu sem graça.
- Não poderia ter usado a porta da frente?
- Velhos hábitos. – Sorri. E eu por um instante consigo relaxar.
- Afinal, como você conseguiu subir sem a árvore? – Indago sentando no tapete e me escorando na parede.
- Eu cresci. Não foi tão difícil. – Dá de ombros.
Ficamos em silêncio. Eu mantenho meus olhos fechados tentando assimilar tudo o que aconteceu há alguns minutos. Nunca pensei que meus pais soubessem o que aconteceu comigo e Helen. Por pensar nela, sinto o calor de seu corpo próximo ao meu. Seu joelho bate levemente no meu, me fazendo abrir os olhos.
- Quer conversar? – Indaga com receio.
- Não sei se é uma boa.
- Podemos tentar. Primeiro quero dizer que sinto muito?
- Pelo quê?
- Você sabe. – Eu sabia. Mas não queria falar sobre isso.
- Tudo bem, isso já faz tempo.
- Mesmo assim, queria me desculpar. Eu fui imatura e boba.
- Hell, não precisa disso. – O nome saiu como se não tivesse passado todos aqueles anos. Ela abriu um largo sorriso. Eu fitei meus dedos.
- É bom voltar a ser a sua “Hell”. – Ficamos em silêncio por longos minutos. – Por que Samuel foi embora? Esse é o motivo de você estar aqui?
- Sim. Ele é gay. Papai descobriu e o colocou para fora. E eu estou furiosa. – Fecho os olhos com força. Minha cabeça dói.
- Nossa! E o que ele disse sobre você ser lésbica? Quer dizer, você é? Digo isso porque vi você beijando aquela mulher no bar.
- Aquela mulher é minha namorada. – Digo com certo prazer, talvez apenas para magoá-la. Sua expressão continua séria. – Sim, eu disse sobre ser lésbica. E você pode imaginar o que ele disse.
- Não faço ideia. – Dá de ombros.
- Aparentemente ele não se importa de eu ser lésbica, desde que eu esteja longe daqui. – Falo magoada. As lágrimas já ameaçam banhar meu rosto. Ela se inclina e me abraça. Afagando meus cabelos.
Seu cheiro me é muito familiar. É como estar de volta ao ensino médio, quando eu chorei em seus braços por ter perdido um campeonato importante. Ela sempre soube como me acalmar, mesmo sem usar uma única palavra. Seu abraço era meu porto seguro, e foi durante muito tempo meu ponto de paz. Mas também foi um dos motivos que me fez ir embora daqui. Afasto-me assim que sou invadida por lembranças. Ela parece entender o que se passa na minha cabeça. Fica quieta, apenas me fitando.
- A chuva passou. – Diz repentinamente.
- Estou vendo. Vou entender se quiser ir.
- Ir? Não vou a lugar nenhum sem você. E que tal se formos até a quadra. Aposto que ainda consigo sacar melhor que você. – Desafia com ar de riso. Sua mão está esticada em minha direção.
- Não seja idiota, sabemos bem quem era a melhor. – Seguro sua mão e sinto um choque percorrer meu corpo. Acho que ela também sentiu, pois sua expressão muda.
- Vamos ver. – Sorri de canto pegando a bola.
Seguimos por algumas ruas. Apenas jogando conversa fora. Quando chegamos a quadra vimos que ela estava vazia por conta da chuva. Essa criançada não sabe aproveitar as coisas boas da vida. Na nossa época estaríamos brincando nas poças de lama.
- Vamos apostar. – Ela diz.
- Apostar?
- Isso mesmo. Está com medo?
- Não. – Afirmo. – O que quer apostar?
- Se eu ganhar, você vai ter que sair para jantar comigo.
- Tudo bem. Mas e se eu ganhar?
- Eu saio para jantar com você. – Ela brinca.
- Não. Assim não vale.
- Tudo bem. Então diga o que tem em mente.
- Se eu ganhar viro sócia do seu escritório. – Afirmo.
- Fechado. – Ela aperta minha mão com força.
Iniciamos a partida. Claro que jogar vôlei sem o time completo não é algo fácil de fazer. Não lembrava o quanto Hellen jogava bem até perder o primeiro set. Combinamos que quem fizesse dez pontos primeiro ganharia a partida.
- Pelo visto você esqueceu como se joga. – Provoca com um sorriso.
- Jogue logo a bola.
Dois sets a dois. O terceiro decide o rumo daquela aposta. Estamos empatadas na pontuação também, seis a seis. Mas aparentemente ela guardou todo o fôlego para o final e conseguiu pontuar quatro vezes seguidas. Eu caí na quadra, nem me importei em deitar nas poças. Minha respiração estava pesada, cansei de verdade. Escuto a risada de Hellen, seus passos em minha direção. Até que seu corpo cai ao lado do meu.
- Foi como tirar doce de uma criança. – Brinca provando.
- Só quero saber onde vai me levar. – Digo curiosa.
- Surpresa. – Ela me fita. Seus cabelos em desalinho, colados ao rosto suado. Seus dentes perfeitamente alinhados surgem logo que ela abre um largo sorriso.
Sinto um ímpeto de me levantar, mas algo me prende ao chão. Ela continua linda. E isso me irrita. O simples fato de constatar que ela ainda tem algum tipo de poder que me hipnotiza me assusta. Volto a fitar o céu, desviando de seu olhar que é intenso demais para mim. Mas ela não me deixa em paz, seus dedos tocam minha mão, buscando enlaçá-los nos meus. E assim ela o faz. Ficamos ali em silêncio. Enquanto ela faz gestos circulares nas costas de minha mão.
- Só para você saber, a questão de ser minha sócia, eu aceitaria sem problemas. Caso as coisas não deem certo por lá, você sabe para onde voltar.
Por um segundo não tive certeza do que estava falando. Se era apenas sobre o emprego, ou se naquela frase de duplo sentido, ela também se referia ao meu namoro com Mariana. Droga! Mariana. Como posso simplesmente esquecer que tenho uma namorada e que possivelmente deva estar preocupada com o meu sumiço.
- Preciso ir. Esqueci o celular. – Digo me pondo de pé.
- Claro. Vamos. – Faz o mesmo.
Fizemos todo o percurso de volta. Ela se vangloriou da vitória, e eu precisei aguentar caladinha para não ser uma má perdedora. Quando chegamos na nossa rua. Segura minha mão delicadamente, me impedindo de atravessar a rua.
- Te espero às oito. Aqui em frente.
- Jura que vamos mesmo levar essa aposta a sério?
- Claro que sim. Até daqui a pouco. – Inclina-se em minha direção e beija meu rosto.
Eu começo a andar para casa, até que escuto sua voz me chamar:
- Ah! Mila, sua bola. – Arremessa o objeto e entra em casa gargalhando por quase ter acertado meu rosto.
Subo as escadas com pressa. Não quero esbarrar em nenhum dos meus pais. Só quero ir embora na manhã seguinte e esquecer que escutei tanta barbárie do meu pai. Deixo a bola no mesmo lugar de antes. Pego o celular em cima da mesinha. Me sento na cama. Resolvo fazer uma videochamada com Mariana. Disco e enquanto espero sorrio lembrando como foi divertido jogar com Hellen.
- Nossa! Que sorriso lindo. Isso tudo por que vai me ver? – Indaga feliz.
- Sim. – Minto. Não queria explicar o motivo.
- Como você está?
- Péssima. A conversa com eles não foi fácil.
Comecei a narrar o que aconteceu, ela prestava completa atenção em cada palavra que eu disse. O que me acalmava era saber que logo eu estaria com ela. Poderia seguir minha vida e diria a Samuel que ele precisa fazer o mesmo. Contei a ela sobre ter reencontrado uma amiga. Notei certo tom de ciúme em sua voz, mas ela disfarçou muito bem. Disse que iria sair com ela para jantar, mesmo a contra gosto ela me incentivou dizendo que eu precisava mesmo me distrair.
Nos despedimos alguns minutos depois. Fui para o banho, enquanto a água descia por meu corpo me recordava da conversa de mais cedo. Ainda não consigo entender como um pai prefere um filho longe do que perto, apenas por ser quem é. Apoio a cabeça no azulejo frio. Escuto a porta do quarto abrir.
- Mamãe?
- Sim. Sou eu. Só queria saber se você está bem. – Saio enrolada na toalha.
- Bem? A senhora acha que tem como ficar bem com essa situação?
- Não. – Fita os pés. – Vai sair?
- Sim. Hellen me convidou para jantar. – Minha mãe abre um sorriso largo. Claramente a ideia da minha reaproximação com ela a agrada. – Mas volto cedo, amanhã irei embora.
- Já?
- Sim. Tenho trabalho a fazer. E claramente não sou desejada aqui. – Digo irritada.
Minha mãe sai sem dizer uma única palavra. Assim que termino de me arrumar saio de casa. Antes que eu possa fechar a porta sinto o cheiro agradável do perfume de Hellen. Ao me virar em sua direção, sinto meu coração errar as batidas. Esse jantar foi uma péssima ideia. Assim como minha vinda até aqui.
Fim do capítulo
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