Capitulo 30 – De volta para casa
Camila
Enquanto arrumava minha mala pensava em todas as formas possíveis para começar a conversa que teria com meus pais. Em nenhuma das alternativas que pensei me parecia algo que fosse fácil de ser dito, ou muito menos compreendido pelos dois. Sentei na cama, observando a pequena mala. Apenas duas peças de roupas, não tenho pretensão nenhuma de demorar mais do que um dia. Não que eu acredite que serei convidada a ficar depois do que irei contar.
- Entra. – Digo ao escutar os toques na porta.
- Nossa! Quanta animação, está parecendo que vai para o juízo final. – Samuel falou se deitando ao meu lado.
- É quase isso. Você fez sua mala?
- Eu já disse que não pretendo ir.
- Samuka, já conversamos sobre isso. – Digo já irritada.
- Exatamente por já termos conversado sobre é que eu pensei que já estava claro que não quero colocar meus pés naquela casa. Não depois do que escutei. E continuo achando que você é louca por ir até lá.
- É a minha vida. Estou indo para resolver a sua.
- Não te pedi isso. Você só quer tirar o peso do seu segredo dos ombros e está me usando como desculpa. Eles já sabem que sou gay, e estão putos por isso. Você não é obrigada a escutar nada do que eu escutei. – Ele senta-se em minha frente, segurou minhas mãos em seus finos dedos longos. – Cams, você não precisa fazer isso por mim. Já disse isso. Vou conseguir um emprego meio período e terminar a escola. Depois vou fazer faculdade. Muita gente faz isso. Eu não preciso da aprovação deles para viver minha vida. Assim como você não deveria precisar.
Não consigo responder ao que ele diz. Samuel sem dúvidas alguma tem uma força que talvez eu ainda não tenha. Sua determinação é admirável. E confesso que no fundo, bem no fundo, talvez eu busque mesmo a aprovação dos nossos pais.
Samuel beija o topo da minha cabeça, saindo do quarto em silêncio. Olho mais uma vez a mala, por um segundo cogito a possibilidade do que estou fazendo ser mesmo uma loucura. Não é como se eu precisasse deles para sobreviver, sou independente. Não estou indo por precisar de uma aprovação, quero apenas contar o que está se passando em minha vida.
Contar o quanto amar tem me feito bem. Acredito que quando eles perceberem isso, o fato de Mariana ser uma mulher nem terá tanta importância. Fecho a mala. Pego a toalha e vou para o banheiro. Assim que entro no chuveiro escuto a porta ser aberta.
- Samuel, eu estou no banho. Preciso de privacidade. – Reclamo.
- Não vai ser a primeira vez que eu vejo sua bunda. – A voz de Diana surge do lado de fora do box.
Escuto a tampa do vaso ser abaixada com força. Ela se senta. Passo a mão no vidro tentando desembaçar para vê-la.
- O que aconteceu? - Ela levanta a cabeça.
- Romero me beijou. – Disse de uma só vez.
Não tive outra reação a não ser puxar a porta do box com força.
- O quê? Eu acho que não ouvi direito.
- Olha, não me julgue. Eu estou surtando. Ele simplesmente me beijou. Eu não tive como... – passa as mãos nos cabelos.
- Calma. Também não é o fim do mundo. Ele está se divorciando. Isso não é segredo. Já saiu até de casa. E vocês vivem juntos.
- Eu sei. Mas imagina se alguém no hospital sabe do que aconteceu, vão dizer que ele me contratou apenas porque dorme comigo. Sei bem como esse tipo de fofoca pode destruir carreiras. Eu comecei agora no hospital. Não tenho como perder esse emprego.
- Mas e o beijo, foi bom? – Brinco.
- Sério? Eu aqui preocupada em perder o emprego e você quer saber se o pai beija tão bem quanto a filha? – Eu prendo o riso. – Foda é que ele tem uma pegada. – Se abana com as mãos. Não consigo conter minha crise de riso.
- Desculpa. É que dava para imaginar que a pegada tá no sangue. – Brinco. – O que aconteceu depois?
- Eu só disse que aquilo não poderia se repetir. Apesar de querer muito mais que um beijo. Foi isso com você? Ela te beijou e você se perdeu na loucura?
- Exatamente assim. Bem vinda ao clube.
- Mas e agora? O que eu faço?
- Converse com ele. Acredito que ele vai saber respeitar seu tempo e principalmente seus receios em relação a ele ainda ser legalmente casado com aquela bruxa. – Reviro os olhos.
- Ainda tem isso. Aquela mulher me dá calafrio.
- Mas agora não tem como voltar atrás. O beijo aconteceu, agora conversem e acertem as coisas. – Ela dá um longo suspiro, se apoia na parede, enquanto fita o teto.
- E se eu mudar de país?
- Ainda vai continuar desejando o velho da lancha. – Brinco. Ela atira uma escova em mim.
- Não esqueça que sua velha da lancha também existe.
- E que velha. – Gargalhamos. – Agora será que posso terminar meu banho? Amanhã vou ter um longo dia.
- Não mudou de ideia sobre ir ver os seus pais?
- Nop!
- Acho uma loucura, mas entendo. Queria muito poder ir para te dar apoio. Mas não sei se sou boa em conflitos desse tipo.
- Você não é boa em nenhum tipo de conflito. – Brinco.
- Touche! Bom, vou preparar o jantar.
Quando ela sai do banheiro volto para meu banho. Pensando em como ela se meteu em uma enrascada. Não era segredo que Romero estava interessado nela desde o dia que a viu, mas daí a rolar um beijo foi uma reviravolta muito grande. Fico em dúvidas se devo contar a Mariana ou não. Afinal, por mais que ela no momento esteja com raiva da mãe, a mulher ainda continua sendo sua mãe.
Vou esperar para ver se Romero conta algo a ela, assim confirmar ou não a informação. É o melhor a fazer. Termino meu banho. Minha ansiedade é tamanha que eu nem consigo ir comer nada. Apenas tomo remédio para dor de cabeça, ajusto o relógio para o dia seguinte e me atiro na cama.
Acordo na manhã seguinte assim que o despertador toca. Consigo ficar pronta em tempo recorde. Saio de casa e os outros residentes ainda dormem. Não é como se meus pais morressem longe. Apenas algumas horas de ônibus.
É estranho voltar para aquela cidade depois de tanto tempo. As coisas continuam iguais. As mesmas pessoas talvez apenas um pouco mais velhas, as ruas com as mesmas casas de fachadas aconchegantes. Desço a rua para ir até minha antiga casa. O que me traz recordações nada boas quando passo em frente à casa dos pais de Helen.
Paro por alguns segundos em frente. Fitando o vai e vem que o vento faz na cortina da janela da frente. A porta continua branca, o balanço que costumávamos passar as tardes conversando ainda estava debaixo da mesma árvore. De repente sou arrastada para um passado que não estava tão distante. Vejo então uma silhueta na janela. Volto da minha viagem e dou passos largos em direção à minha casa.
- Mila! – Escuto a voz de Helen.
Paro instantaneamente. Aperto a alça da mochila. Meus pés estão prontos para correr caso essa seja a minha vontade. Mas eu não me movo. Nem para ir o mais longe possível dela, ou simplesmente para olhá-la.
- Não sabia que você viria ver seus pais. – Ela já está próxima. Sinto o seu cheiro doce.
- Nem eles sabem. Decidi de última hora. – Respondo entre dentes. – Como vai Helen?
- Bem. E você? Soube que o Samuca foi embora. Ele está morando com você?
- Sim. Está. Eu preciso mesmo ir. – Aponto para a casa dos meus pais.
- Ah! Claro. Pretende ficar muito tempo?
- Só o suficiente. – Forço um sorriso.
- O suficiente para tomar um sorvete comigo e colocarmos o papo em dia? – Indaga com esperança.
- Quem sabe.
- Ótimo. Esse é meu número. – Seguro o cartão que ela me estende.
- Doutora Helen? Então fez mesmo direito? – Questiono surpresa.
- Era o nosso sonho, não lembra?
- Claro. – Sorrio.
- Contra todo tipo de injustiça! – Falamos juntas. Esse seria nosso slogan do escritório que sonhávamos em montar.
- Isso. – Ela sorri. – Foi bom te ver, Mila. – Seu sorriso por um segundo me leva ao passado e pareço estar diante da menina que sempre foi minha melhor amiga.
- Digo o mesmo. Agora eu preciso mesmo ir.
Giro nos calcanhares, dou alguns passos e nem preciso me virar para saber que Helen continua no mesmo lugar, me observando partir. Não preciso ir longe, atravesso a rua e já estou diante da porta da minha casa. A grama continua do mesmo jeito, bem aparada. As flores da mamãe seguem vibrantes e cheirosas. O tempo parece que parou por aqui.
Subo os três degraus que me levam até a parte mais alta. É estranho ter que bater em uma porta que antes tudo o que precisava fazer era procurar a chave dentro da bagunça que era a minha mochila da escola.
- Já vai! – Escuto a voz da minha mãe.
Seus passos ecoam pela casa. Até que ela para diante da porta, me fita pelo vidro e sua expressão vai de surpresa a felicidade em questão de segundos. A porta é aberta com força.
- Camila, filha. Que surpresa. – De repente sou envolvida em braços conhecidos.
Fazia tempo que não sentia aquele acalento de colo de mãe. O calor de seu corpo era reconfortante, parecia um copo de chocolate quente em um dia frio. Dona Rute parece um pouco mais velha, mais cansada talvez. Seus cabelos já estão quase todos brancos.
- Mamãe, que saudade. – Ela se afasta para me olhar.
- Você está linda, filha. Perfeita. – Sorri me dando mais um abraço. – Entre, entre. – Afasta-se para que eu possa passar.
Estou então na sala de casa. O sofá já não é o mesmo caramelo de antigamente. A tv de tubo agora é substituída por uma de plasma que fica na parede. As únicas coisas que estão iguais, são nossas fotos em família. Sorrio com as recordações.
- Não esperava que você viesse nos ver tão cedo. Aconteceu alguma coisa? – Aí estava a pergunta que eu não saberia se teria coragem de responder.
- Onde está o papai? – Questiono mudando de assunto.
- Na oficina. Só chega para o almoço. Você sabe que sem a oficina nenhum carro dessa cidade roda. – Brinca. – Estou com um bolo no fogo. Leve suas coisas para o seu quarto. Estarei na cozinha esperando com o bolo e um cafezinho delicioso.
Aceito sua sugestão. Subo as escadas, indo direto para a segunda porta à esquerda. Meu nome continua entalhado na madeira. Sorrio passando a ponta dos dedos nas dobras. Giro a maçaneta e é como entrar em um túnel do tempo. Sou arremessada de volta ao último ano do ensino médio. A bola de vôlei continua ao lado da cama. Os pôsteres de Coldplay, Madonna, Katy Perry, continuam estampando as paredes. Ao lado da cama alguns livros antigos que eu possivelmente era obrigada a ler, mas nunca terminava. Mamãe usava táticas para me fazer pegar gosto na leitura, me dava cinquenta reais a cada livro terminado. Sorrio com a lembrança.
Deixo minha mochila sobre a cama. Caminho até a janela, abrindo-a. A brisa entra refrescando o cômodo há muito inabitado. No parapeito ainda consigo ver a marca do tênis de Hellen, já que era rotineiro ela pular a janela para vir conversar comigo até tarde da noite. Mas a árvore que ela usava de apoio não existia mais. Olho para o outro lado da rua e avisto a janela de seu quarto. Ela está parada me olhando, talvez até pensando o mesmo que eu. Sorri aberto, acenando levemente com os dedos. Automaticamente retribuo o gesto. Pego-me sorrindo para a pessoa que mais amei durante meu ensino médio, e a que mais odiei nos últimos tempos.
Meu celular vibra no meu bolso. Pego o objeto e sorrio ao ver a foto de Mariana. Afasto-me da janela.
- Oi! Amor. Esqueceu de mim? – Fez drama.
- Impossível, amor. Nunca teria como esquecer você.
- Sei! Como foi a viagem?
- Tranquila. Nesse momento estou no meu antigo quarto. O tempo parece que não passou e eu continuo sendo aquela menina cheia de espinhas. – Ela sorri.
- Aposto que você era a mais linda de toda a cidade.
- Se eu fosse você não apostaria muita grana. – Brinco.
- Como foi a conversa?
- Ainda não teve uma conversa. – Suspiro já imaginando que aquela vai ser uma tarefa difícil.
- Mas vai ficar tudo bem. Não se preocupe. E se algo der errado você me liga e eu vou te socorrer.
- Obrigada. – Sorrio.
- Eu te amo. E já estou com saudades.
- Eu também estou com saudades.
- E não me ama?
- Claro que eu te amo. – Nesse instante arregalo os olhos surpresa, mamãe acaba de entrar no quarto.
- Amor, está tudo bem?
- Sim. Eu só preciso ir. Mais tarde nos falamos. Beijo. – Encerro a ligação.
- Vim apenas te chamar. O café vai esfriar.
- Mamãe, o que a senhora ouviu...
- Eu não ouvi nada. – Dá de ombros. – Mas bem que eu notei que tem algo diferente em você, é amor. – Sorri. – Agora vamos comer o bolo. Liguei para o seu pai. Ele está chegando para te ver.
Descemos a escada. Já na cozinha minha mãe me serve uma generosa fatia de bolo. Enquanto conversamos amenidades até que meu pai se junte a nós.
- Filha, sua vinda aqui é por conta do Samuel? – Questiona. – Ele está morando com você? – Posso notar a aflição em seu questionamento.
- Mamãe....
- Onde está a minha filha preferida? – Escutamos a voz do papai na sala. Não demora até que ele apareça na cozinha. – Camilinha. Quase morro de felicidade quando sua mãe me ligou. Venha cá, dê um abraço em seu velho. – Estende os braços para mim.
Não me importo com suas roupas sujas de graxa e óleo de motor. Fico diante dele e assim como minha mãe, ele me abraça apertado. Hoje já sou mais alta que ele, mas me lembro bem de quando ele me girava no ar antes de me abraçar.
- Como vai papai? – Aperto seu ombro.
- Melhor agora, sem dúvida alguma. Mas vamos sentar e comer, estou desejando esse bolo com café. E quero saber o que te trouxe para casa.
Nesse momento sinto toda a tensão sobre meus ombros. Consigo escutar a voz de Samuel me dizendo que aquilo era uma péssima ideia. Observo os dois se servirem e sentarem diante de mim. Fitam-me esperando que eu diga algo.
- Vim para falar sobre o Samuka. – Digo de uma vez só.
Meu pai se mexe na cadeira, minha mãe parece fitar o nada. E eu posso jurar que um trovão ecoa no céu. Agora entendo o porquê daquela ser uma péssima ideia.
Fim do capítulo
Boa noite, juro que vou responder todos os comentários assim que possível. A vida da universitária não está fácil. E aidna mais quando junta problemas familiares.
Boa leitura a vocês
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jake
Em: 09/05/2025
Olá Autora querida se eu fosse Cami não falaria nada apenas mudaria de assunto dizia que apenas veio rever pq senti saudades.... Força Cams estamos com vc .
maktube
Em: 09/05/2025
Autora da história
Preconceito sempre é complicado, né? E quando parte da família é ainda mais doloroso.
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