Capitulo 33
Marcela sentiu o ar rarear. De todas as pessoas no universo, Valesca era a última que ela esperava ver na fazenda, principalmente agora, com Chiara ali, a poucos metros. Valesca era uma mulher que Marcela conhecia bem, tanto em seus momentos íntimos quanto em sua faceta mais pública. Dominadora ao extremo, sua postura fria e calculista a tornava uma figura imponente, dona de uma verdade inquestionável. Uma vez que tomava uma decisão, dificilmente retrocedia. Marcela sabia que a rigidez de Valesca era um escudo forjado na dor mais profunda: a perda de um filho nas mãos de criminosos. O pedido de resgate, a soltura de três chefões do tráfico que ela mesma sentenciou, a recusa, e um mês depois, a notícia cruel da morte animalesca do caçula. A tragédia havia dizimado seu casamento, transformando seu marido em um acusador amargo, e culminou no fim de tudo. Foi nessa época que Marcela e Valesca, já ligadas por uma amizade consolidada, iniciaram um caso sem compromisso, uma válvula de escape para ambas. Marcela mal tinha entrado na faculdade quando a conheceu.
Mesmo sendo vinte anos mais velha, Valesca e Marcela tiveram momentos bons, tornando-se confidentes. Contra a vontade de sua mãe, é claro, que nunca aceitou a intimidade da amiga com a própria filha. Sempre que se encontravam, ficavam o tempo que fosse possível, até uma delas ter que seguir em frente, sem traumas ou saudades que as prendessem.
Com delicadeza. Marcela empurrou os braços de Valesca que se enroscavam em seu pescoço. Os olhos de Chiara eram de puro espanto, arregalados diante da cena. Marcela sentiu-se completamente atrapalhada, dividida entre não querer ser grosseira com sua grande amiga e o desespero de não chatear sua namorada. Por muito menos, ela mesma havia fugido de moto, com uma dor dilacerando seu peito só de imaginar Chiara beijando o idiota do Eduardo. Agora, Valesca grudava nela, esfregando-se e deixando a roupa de Marcela úmida com seu corpo ainda molhado.
— O que foi, bebê? Não está feliz em me ver? — O apelido carinhoso, que antes nunca incomodara Marcela, agora a deixou profundamente desconfortável, especialmente sob o olhar intenso de Valesca, fixo em seu pescoço, na marca evidente que Chiara havia deixado na noite anterior. A juíza parecia genuinamente magoada e ciumenta, uma emoção que Marcela não compreendia, já que sempre fora clara sobre os limites de seu caso. O que mais a preocupava, no entanto, era a frieza gélida no olhar de Chiara, que de repente se tornou séria de uma maneira que a desesperou.
— Estou contente em te ver. Aconteceu alguma coisa séria para trazê-la à fazenda? Sei que detesta cheiro de terra misturado com bosta de vaca e mijo de cavalo, sem mencionar as plantas. — Marcela sabia que Valesca sempre fora uma mulher urbana, habituada a salas confortáveis e ambientes com ar-condicionado. A natureza, com seu canto original, o ar livre, tudo a deixava estressada ao limite, algo que Marcela nunca conseguiu entender.
— Estava com saudades dos amigos e de você, que desapareceu sem dar notícias. — Mais uma vez, Valesca tentou abraçá-la, mas Marcela foi mais rápida. Deslizou por baixo dos braços dela e se aproximou de Chiara. Pegou sua mão e tentou entrelaçar os dedos, um gesto que Chiara não permitiu. A italiana puxou a mão e a prendeu firmemente entre as pernas, impedindo qualquer contato. O movimento não passou despercebido por Valesca, que exibiu um sorriso irônico.
— Não vai me apresentar a garota, bebê? Tem algum funcionário novo na fazenda, ou ela é esposa de alguém? Não lembro de tê-la visto das vezes que vim passar as férias aqui. — Valesca examinava Chiara com o nariz empinado, exalando uma superioridade quase palpável. Seu desdém escorria na voz como veneno.
— Essa é Ágata, minha linda namorada — Marcela declarou, fitando os olhos cor de ouro derretido de Chiara, tentando transmitir todo o carinho que sentia. Em seguida, voltando-se para Valesca, que a olhava incrédula, acrescentou: — É filha do Gregório, um amigo da família, você deve conhecer. — Marcela se apressou em esclarecer, antes que as coisas pudessem piorar ou que Valesca dissesse algo que estragasse tudo de vez. O que ela não esperava era o silêncio mortal que se estabeleceu, as duas mulheres se encarando fixamente. Ou melhor, Valesca examinava Chiara dos pés à cabeça, como uma fera estudando seu adversário em busca de uma fraqueza para atacar. Chiara, para surpresa de Marcela, demonstrava uma frieza sepulcral, e Marcela ainda não sabia se isso era bom ou ruim.
— Namorada, é? Então me adianto em pedir desculpas por beijar você na frente da sua “namorada”. Você me perdoa, não é, meu bem? — Valesca fez questão de enfatizar as aspas com as mãos, seu tom de voz irônico deixando clara a intenção de menosprezar a relação de Marcela com Chiara. Marcela sabia que, pelo pouco que conhecia a italiana, ela tinha o sangue quente dos italianos; não deixaria aquilo passar batido.
— Eu não entendi direito ou a senhora está sendo irônica com a possibilidade do seu “bebê” — Chiara frisou bem o "bebê", usando aspas no ar — estar namorando alguém, ou ela é sua propriedade para uso particular? — Chiara exibiu um sorriso tão doce quanto o som do chocalho de uma cobra.
Marcela engasgou do nada, dominada pelo receio da resposta que viria. Jacinto, por sua vez, parecia subitamente interessado em uma revista que magicamente apareceu em suas mãos. Nenhum deles olhava para o lugar onde Valesca, subitamente, parou, surpresa com a audácia da italiana.
— E se for? Algum problema com isso?
Chiara tirou um elástico do bolso da bermuda, prendendo uma parte do cabelo e deixando a maioria solta, caindo sobre os ombros.
— Não, nenhum. Se ela quiser, podemos abrir o relacionamento e nos organizar quanto aos dias e noites de cada uma, mas caso não saiba — e acredito que não —, prometemos sermos uma da outra enquanto estiver nos fazendo bem. É tão surpreendente assim o fato de estarmos em relacionamento sério?
— Nem um pouco. Com sua pouca idade, você não conhece nada de nada, fica muito vulnerável, fácil de se apaixonar por uma mulher mais madura e acreditar em tudo que ouvir. Saiba que Marcela tem uma lista vasta de conquistas, mas nunca uma criança.
Chiara gargalhou alto, olhando na direção de Marcela. A forma como piscou o olho em cumplicidade a deixou tranquila. Ela não estava zangada, não com Marcela... ou estava?
— Ah, isso… bem, fui eu que dei em cima dela e parece que deu certo, aqui estamos nós. Então, não se preocupe quanto a eu ser uma criança; segundo dizem, a nova geração já vem com alma de adulto. E antes que eu me esqueça, quanto ao fato de tê-la beijado, afinal, vocês tiveram um caso, acho que eu faria o mesmo. Estranharia se a senhora já soubesse que estamos namorando e a beijasse mesmo assim, concorda comigo?
— Está sendo insolente, garota.
— Desculpe se fui rude, não foi minha intenção. Até porque eu não posso controlar o assédio das mulheres à Marcela; ela é linda e tenho certeza que marcou cada uma das mulheres da imensa lista com as quais ela transou. O que temos uma com a outra ainda é recente, mas pelo que entendi, ela quer algo sério e não estamos abrindo a relação para outras pessoas entrarem. Portanto, tire as patas de cima da minha mulher.
Antes que Valesca tivesse um AVC ou falasse mais alguma coisa, a mãe de Marcela entrou. Seus olhos varreram a sala, parando em Valesca, seu semblante sério, mas com um toque de ironia.
— Resolvi participar da reunião também. Afinal, acredito que o assunto tratado seja sobre as investigações e a segurança da minha filha e minha neta.
Montserrat sentou-se, puxando Chiara para sentar ao seu lado, segurou suas mãos e fez carinho.
Marcela acreditava que as coisas não estavam acontecendo conforme Valesca tinha planejado. Ela não a culpava, não tinha como Valesca saber que Marcela estava em um relacionamento sério. Ao longo da vida, elas entraram e saíram da vida uma da outra, e Marcela sempre deixou bem claro que não queria nada sério. Valesca também fazia questão de manter tudo em segredo para não manchar sua reputação e prejudicar seu trabalho.
— Bem, já que os dois estão aqui, acredito que vieram porque algo muito sério aconteceu. Desembucha, Jacinto. — Marcela sentou-se no braço do sofá onde sua mãe tinha acabado de sentar, indicando outro para que Valesca sentasse ao lado de Jacinto. Os olhos muito arregalados da juíza mostravam que ela não concordava com a presença de Chiara, por isso Marcela completou: — Pode falar, contei tudo a Chiara.
— Eu estou por fora, quem sabe o que aconteceu é a Dra. Valesca. Foi ela que me ligou e pediu que eu viesse, que tinha novidades sobre o Magnata.
— São investigações sigilosas, Marcela. Mesmo a garota sabendo de tudo — coisa que eu não concordo com essa sua loucura de arrastar essa menina para dentro desse furacão em que estamos —, esse assunto é sigiloso. Nem mesmo a Montserrat deveria estar aqui. É aquele velho ditado: quanto menos souber, melhor e mais seguro será.
Marcela não deveria concordar, mas Valesca estava certa: ela estava sendo irresponsável com a segurança da Chiara, não tinha o direito de envolvê-la no meio de tudo isso, mesmo ela sabendo da verdade. A vida de Chiara era mais importante. Chiara deve ter lido em seu rosto a insegurança e, com certeza, interpretou errado. Não deu tempo de Marcela se explicar. Sua mãe levantou como um tornado e já foi logo decidindo:
— Pois vamos ficar. Estou na minha casa. Se quiser privacidade, marque no seu gabinete. Faça de conta que não estamos aqui. Se quer usar minha casa, é porque o assunto é extraoficial. Então, vá em frente.
Claro que o incômodo da amiga nunca foi a presença de sua mãe. O descontentamento de Valesca era justamente a presença da Chiara, e foi para ela que a juíza se dirigiu. Sua voz era a da juíza fria e autoritária, e não da mulher com a qual Marcela dormira.
— Escute aqui, garota, essa baboseira de amor e fidelidade é muito bonita quando se está brincando de casinha. Mesmo a Marcela querendo ser tudo isso para você, não acredito que isso vá muito longe. Por isso, eu entendo se estiver apaixonada por ela, como todas ficam. No entanto, aqui nesta sala serão tratados assuntos que dizem respeito à segurança dela, da filha e, de quebra, da própria família, isso sem falar na segurança do estado.
— Valesca, pare! — Marcela tentou segurar na mão da Chiara, que mais uma vez puxou bruscamente.
— Não vou parar, bebê! O que vai ser discutido é muito importante para ser ouvido por qualquer um. Aconselho a minha própria amiga a se retirar, quanto mais essa fedelha! Quem ela pensa que é para estar aqui? — O tom autoritário simplesmente foi a gota d’água para Chiara se levantar e ficar cara a cara com Valesca.
— Vou dizer à senhora quem eu sou. — Com as mãos na cintura, ela balançou o corpo num gingado idêntico às entidades femininas de um terreiro de macumba que frequentara em seus tempos de loucura. — Eu sou a porr* da namorada da mulher que, desde o momento em que você passou por aquela porta, tenta levar para a cama! E você vem me perguntar quem eu sou? Ora, vá se fuder!
Chiara estava quase em cima de Valesca, que espumava de raiva. Marcela temia que a coisa pudesse ficar pior a qualquer instante.
— Saia daqui! Saia antes que eu perca a cabeça!
— Vou sair, sim, mas não porque está mandando! Vou sair porque se eu ficar aqui olhando para a sua fuça sou bem capaz de quebrar sua cara! Pouco me importa se é juíza, se comporte como uma magistrada e eu a respeitarei como tal! Agora, enquanto se comporta como uma cadela no cio, é assim que a tratarei.
— Saia agora!
— Será um prazer não compartilhar o mesmo ar que você respira.
ão estava acostumada com a ideia
Fim do capítulo
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