Capítulo 20
Quando a banda começou a tocar, eu discretamente avaliei Marcela ao meu lado. Ela parecia bastante concentrada, realmente gostando do que via. Depois entraram as vozes, às vezes em coro, às vezes individuais. Em um determinado momento, Marcela me perguntou:
— Todas essas pessoas são daqui?
Eu dei uma olhada neles antes de responder:
— Os cantores sim, os músicos… a maioria é, mas têm alguns das cidades vizinhas.
— Tem muita gente talentosa aqui, então…
Eu fiz uma cara séria, como se estivesse falando uma verdade incontestável:
— Sim, tipo eu.
Marcela me olhou e riu:
— Ah é? Você canta? Ou toca?
— Nenhum dos dois…
Ia completar com um trocadilho infame, mas naquele momento o locutor anunciou o fim do primeiro ato. Isabela perguntou se queríamos alguma coisa, pois ela e Juliano comprariam algo para comer.
Olhei para Marcela:
— Você quer?
Ela agradeceu e disse que não. Quando os dois saíram, ela se virou para mim:
— Como é o seu Natal?
Não tinha entendido exatamente o que ela queria saber com aquela pergunta. Sem que eu precisasse dizer nada, Marcela complementou:
— Você passa na casa da sua tia?
— Nos últimos anos nós temos ido para a casa dos meus pais… O sítio na cidade vizinha…
Ela balançou a cabeça e, fingindo uma cara triste, disse:
— Vou passar longe de você, então…
Eu sorri e me segurei muito para não tocá-la:
— Eu vou no dia vinte e quatro à tarde e volto no dia vinte e cinco… Vão ser só vinte e quatro horas.
Ela continuou com o mesmo semblante ao responder:
— Vou morrer de saudades como se fossem vinte e quatro meses.
*****
Na véspera de Natal, Ciça saiu da minha casa por volta das três horas da tarde. Nos despedimos incontáveis vezes, ela não querendo ir e eu não querendo que ela fosse. Compreendia completamente, era uma data que se passava em família, e não podia querer monopolizar a presença dela. Mas meu lado emocional empurrava o racional, o colocava contra a parede, espremido, e se sobressaía apertando meu coração. Lógico que eu queria passar o Natal ao lado dela, mas naquelas circunstâncias aquilo não seria possível.
Cheguei na casa da tia Rita três horas depois de me despedir de Ciça, pois sabia que lá tudo era cedo, eles não esperariam a meia-noite. Érica e minha tia estavam na cozinha às voltas com o peru, chester, salpicão e não sei mais quantos pratos que elas inventaram de fazer. Meu tio estava sentado confortavelmente no sofá, com um copo de cerveja na mão, ao lado de Henrique, que também tinha o copo dele, enquanto os dois conversavam sobre o que me pareceu ser futebol. Luize estava brincando no chão da sala onde havia várias panelas e talheres de brinquedo e, segundo fui informada, Evandro estava no banho.
— No que eu posso ajudar?
Minha tia falou afobada e suada, em total contradição com sua resposta:
— Em nada, Cela… senta aí, fica à vontade… Dá uma olhada no chester, Érica…
Eu não obedeci. Tomei a frente da minha prima e abri o forno:
— Acho que ainda tem que dourar mais um pouco.
Me meti no meio das duas e fui pegando tarefas, pois sabia que se dependesse delas eu não faria nada. Mas eu jamais me igualaria aos homens da casa que, mesmo vendo que as duas mulheres estavam mega atarefadas, não se ofereceram para ajudar em momento algum. Henrique e tio Nando só entraram na cozinha para buscar mais cerveja. Meu primo saiu de casa assim que se arrumou.
— Deve ter ido encontrar a namoradinha… Ele não gosta que a gente fale, nem pergunte nada…
Érica complementou a informação da minha tia:
— Ele diz que não é namorada, é só ficante.
Mais tarde, com todas as comidas na mesa — quase não cabiam todas as travessas —, e com Evandro já de volta, minha tia começou a oração. Agradeceu o nascimento do aniversariante do dia seguinte, agradeceu à mãe do aniversariante, aos dois pais — o da Terra e do Céu — pediu bençãos, proteção, livramentos, fez as orações de praxe: pai-nosso, ave-maria, e enfim sentamos para comer.
Assim que esvaziou o prato, Henrique se levantou — sem sequer levar a própria louça até a pia, diga-se de passagem — se despediu rapidamente e foi embora. Minha prima justificou meio sem graça que ele precisava ir para casa de parentes. Quando eu perguntei por que ela não iria junto, me disse que era uma coisa só entre os primos. O que eu particularmente achei muito estranho. O almoço com a família toda, que ela também participaria, seria no dia seguinte.
Depois que fizemos as trocas de presentes, as mulheres da casa, com exceção de Luize que ainda não tinha chegado na idade, foram para a cozinha limpar tudo, guardar as comidas e organizar as vasilhas. Quando terminamos, ainda eram dez da noite. Meu tio já tinha ido dormir, Evandro tinha saído novamente e tia Rita se despediu dizendo que acordaria cedo no dia seguinte para ir para a igreja.
Eu e Érica ficamos na sala, tomando um vinho. Depois de alguns minutos de conversa, Luize deu sinais de sono. Dormiu no colo da minha prima que a levou até o quarto. Quando ela retornou para a sala, perguntei:
— Você dorme aqui hoje?
Fez que sim. Depois completou:
— Henrique não volta pra casa cedo hoje.
Eu até tentei, mas não consegui me segurar:
— Isso não te incomoda?
Ela me olhou sem saber do que exatamente eu estava falando, pois poderia ser de tantas coisas…
— Você não poder ir com ele… Ele sempre sair e você não poder fazer nada, nem com suas amigas… Sei lá, Érica, isso não é saudável.
Ela suspirou e me olhou. Os olhos começaram a lacrimejar:
— Me incomoda, Marcela… me incomoda muito. Mas… o que eu posso fazer?
Uma risada entrecortada escapou da minha garganta sem querer:
— O que você pode fazer? Pelo amor de Deus, não estamos mais em mil e oitocentos… Você é dona da sua vida, Érica!
As lágrimas começaram a escorrer pelas bochechas da minha prima. Eu amenizei meu tom:
— Você não tem vontade de mudar sua vida?
Ela as enxugou com as costas da mão:
— Como, Marcela? Mudar como? O que eu posso fazer?
Eu falei num impulso:
— Se separar, talvez.
Ela arregalou os olhos para mim como se eu tivesse acabado de sugerir que ela matasse o marido.
— Não, eu não quero me separar de Henrique. Eu amo meu marido.
Foi a minha vez de suspirar:
— E você, Érica? Você se ama? Vai continuar infeliz? Colocar a felicidade de outras pessoas em primeiro lugar?
Ela não respondeu. Lembrei da conversa que tivemos algumas semanas antes, quando ela me falou sobre Ciça e levei pela mesma lógica. Não podia comparar meus ideais com os de Érica:
— Eu sei que parece uma ideia assustadora. Que você pode achar que a sua vida e a sua felicidade dependem dele, mas não é assim… Não tô dizendo que é fácil ou simples, mas que não é impossível.
*****
Enquanto a confusão de vozes e tilintar de talheres preenchiam o ambiente, eu parecia ter entrado em uma espécie de transe. Como se estivesse usando fones com cancelamento de ruído. Eu via as pessoas mexerem os lábios, via o garfo bater contra o prato, via as crianças rindo e gritando, mas não ouvia nada. Meu corpo estava ali, mas minha mente não.
Minha família. Eu amava minha família. Sempre fui feliz com eles. Mas em datas como aquela me sentia arrebatada por um sentimento de vazio. Incompletude. Infelicidade. Faltava algo. Ou alguém. Marcela. A mulher por quem eu estava profundamente apaixonada, a mulher com quem eu estava dividindo a vida há alguns meses, a mulher que me fazia feliz. E eu não podia tê-la ali comigo. Eu não podia sequer falar sobre ela com ninguém.
Olhei em volta e gradativamente o som voltou aos meus ouvidos. Olhei para todos: meus pais, meus tios, meus primos, suas esposas e filhos. Nenhum deles poderia imaginar o que se passava dentro de mim naquele momento. A dualidade de sentimentos em estar ali. Eu queria estar com eles, mas não daquela forma. Não tendo que esconder que eu estava apaixonada. Não sem poder falar sobre Marcela. Sem poder estar abraçada a ela como o meu primo estava com a esposa.
Não podia. Por que não? O que me impedia de ir até eles e falar que eu estava apaixonada por um mulher? Que eu era lésbica. Que amava Marcela. O que me impede? Nada. Absolutamente nada me impedia de sair daquela prisão que não foi criada por mim, mas que eu fazia a manutenção.
Me levantei do sofá num ímpeto. Andei me aproximando da mesa em que todos ainda estavam ao redor, mesmo depois de já termos ceado
Ninguém sabia o que eu estava prestes a falar. Ninguém sabia que eu estava prestes a lançar a maior bomba que já atingiu aquela família. Que talvez eu estragasse o Natal. E que os próximos nunca mais seriam os mesmos.
Meu coração acelerou, minha mão começou a suar. Parei ao lado deles. Abri minha boca e falei a primeira palavra:
— Eu…
Mas ninguém me ouviu. Ninguém me notou. Continuaram conversando e rindo sem saber da tristeza que eu trazia por dentro.
Uma garrafa de cerveja rodou na mesa. Me ofereceram, eu recusei. Meu corpo ameaçou entrar de novo naquele torpor silencioso, mas uma risada alta não permitiu. Me assustei, olhei em volta. Todos riam, eu não sabia de quê. Não estava conectada. Não fazia parte daquele ecossistema a que um dia pertenci. Como se tivessem me desligado, cortado o fio que me unia a eles. Estranha, estrangeira, extraterrestre. Era assim que eu me sentia. Uma formiga perdida dentro do formigueiro. Não tinha a ver com cada um deles, eles como indivíduos, mas sim com aquela instituição criada desde que o mundo é mundo. Como se fosse uma seita que precisava de senha para entrar. E eu não tinha. Entrei pela janela. E agora queria sair.
Me afastei da mesa e caminhei até meu quarto. O meu quarto na casa dos meus pais. Peguei mochila que ainda não tinha desarrumado, só havia tirado a roupa que estava usando, fechei o zíper, segurei pela alça e saí. Ninguém notou. Entrei no carro, liguei e acelerei. Saí pela porteira encontrando a estrada de terra. Instantaneamente meus olhos se encheram d’água. Chorei, deixei que as lágrimas caíssem sem limpá-las. Não sabia exatamente pelo que estava chorando, acho que um acúmulo de coisas e sentimentos.
Quando cheguei ao asfalto meu rosto ainda estava molhado, mas as lágrimas já não vinham. Abri as janelas do carro e deixei que o vento secasse meu rosto. Dirigi em silêncio, sem música, pelos quase trinta minutos até chegar em casa. Parei o carro perto da calçada, mas não o desliguei. Fiquei pensando. Olhei o relógio no painel: meia-noite e quarenta e seis. Não sabia se ela estaria acordada, mas fiz o que todo o meu ser pedia. Acelerei e fui até o apartamento dela. Subi as escadas e bati na porta sem muita convicção. Alguns segundos depois ouvi a voz desconfiada de Marcela:
— Quem é?
Só então parei para pensar em como poderia ser ameaçador uma batida na sua porta quase uma da manhã. Principalmente levando em conta os referenciais da cidade grande que Marcela tinha.
— Sou eu…
Soube que ela reconheceu minha voz quando ouvi o barulho da chave girando na fechadura. Marcela apareceu de pijamas com os olhos arregalados:
— Que susto você me deu…
Não respondi, nem deixei que ela falasse mais nada. Dei um passo à frente, a puxei para mim e beijei Marcela com ímpeto.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
HelOliveira
Em: 07/05/2025
Érica precisa realmente se amar mais e dar um basta nesse casamento, claro que Henrique foi ficar com a outra....
Aí Ciça que linda, não aguentou e foi correndo para ficar com sua amada, logo ela se assume, e só quero ver a reação da familia
[Faça o login para poder comentar]
Dessinha
Em: 07/05/2025
Lindaaa ???? Maravilhosa, já fechou indo pra encontrar a gata ainda no Natal. Isso aí, Ciça!!
AlphaCancri
Em: 08/05/2025
Autora da história
Não aguentou esperar rsrs Quando estamos apaixonadas qualquer minuto longe parece uma vida, né?
[Faça o login para poder comentar]
Raf31a
Em: 06/05/2025
Quase, hein, Ciça. Falta pouco (assim espero).
Henrique foi passar o Natal com a outra família, certeza. Bem no clima da tradicional família brasileira. kkkk
Foi ótimo os capítulos em dias seguidos.
AlphaCancri
Em: 08/05/2025
Autora da história
Você, eu e Marcela esperamos hahahah
A família tradicional brasileira e suas hipocrisias, né… Deus os livre dos LGBTs, mas amante é normal.
Que bom que gostou, o próximo é amanhã :)
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
AlphaCancri Em: 08/05/2025 Autora da história
Só Érica não enxerga o que acontece, né?!
A paixão por Marcela falando mais alto… será que alto o bastante pra ela se assumir de vez?