Apaixonadas
Segunda-feira – Café da manhã – Apartamento de Verena e Silvia
O final de semana passara como um sopro para todos. Para Valentina, entre música e pensamentos perdidos; para Verena e Silvia, entre pequenos momentos de carinho e filmes antigos. Tudo parecia seguir no compasso de uma falsa normalidade.
A segunda-feira começava envolta em uma luz dourada suave, que entrava pela varanda semiaberta do apartamento. O cheiro de café recém-passado misturava-se ao aroma adocicado da geleia que Silvia passava nas torradas.
De moletom cinza e cabelos presos de qualquer jeito, Silvia cantarolava baixinho enquanto preparava a mesa. Já Verena, de camisa social branca e calça preta, mas ainda descalça, estava sentada à mesa, com os cotovelos apoiados e o tablet na mão, completamente absorvida em notícias políticas.
— Será que dá pra ser menos deputada e mais esposa nesse café da manhã? — Silvia provocou, erguendo uma sobrancelha enquanto colocava uma cesta de pães no centro da mesa.
Verena ergueu os olhos devagar, arqueando uma sobrancelha com diversão.
— Se eu fosse menos deputada, você não ia achar metade da graça que acha em mim. — rebateu, com aquele meio sorriso malicioso que ela parecia ter nascido sabendo fazer.
Silvia cruzou os braços, fingindo pensar.
— Hum... não sei não. Acho que até preferia uma versão mais caseira, tipo... Verena Dona de Casa.
— Impossível. — Verena disse, rindo baixo, largando finalmente o tablet de lado. — Você me conheceu assim, Silvinha. Metida, mandona e irremediavelmente apaixonante.
Silvia revirou os olhos, mas não conseguiu conter a risada.
— Tá, tá. Vai querer o quê no seu café? Um tapete vermelho?
Verena sorriu, pegando distraidamente o pote de biscoitos na mesa, já que o café ainda não estava pronto.
— Pote de biscoito tá ótimo... — murmurou, pegando um e dando uma mordida. — Mas se quiser me servir de lingerie, não vou reclamar.
— Verena! — Silvia ralhou, mas o sorriso nos lábios a denunciava.
Verena soltou um riso mais alto e se levantou, abraçando Silvia pelas costas enquanto ela cortava frutas.
— Você me ama assim, admite logo. — Sussurrou no ouvido dela.
— Amo... e também amo minha sanidade mental. — Silvia respondeu, tentando se desvencilhar enquanto ria. — Vai sentar logo, criatura. Antes que derrube a cozinha inteira.
Verena soltou Silvia, mas no caminho de volta, esbarrou em uma colher suja e quase derrubou uma tigela.
— Meu Deus do céu! Você parece uma criança! — Silvia exclamou, rindo enquanto limpava a bagunça.
Sentadas à mesa, finalmente, Silvia suspirou, aproveitando que Verena parecia mais calma para tocar em um assunto que lhe pesava no peito.
— Sabe... — começou, mexendo distraidamente no próprio café. — Pensei que a gente podia fazer algo diferente hoje.
Verena arqueou a sobrancelha, desconfiada.
— Diferente tipo...? — perguntou, mordendo mais um biscoito.
— Ir à missa comigo. — Silvia disse, tentando soar casual.
Verena engasgou levemente com o biscoito, tossindo.
— Missa? — repetiu, limpando a garganta. — Amor... hoje? Não pode ser tipo... daqui a uns vinte anos?
Silvia cruzou os braços, fazendo aquela expressão de falsa bravura que Verena achava irresistível.
— Deixa de ser dramática. É só uma horinha. — insistiu. — Queria tanto voltar... E com você seria especial.
Verena a olhou por um momento longo, um sorriso torto nos lábios.
— A gente podia fazer outra coisa especial à noite... — sugeriu num tom malicioso, deslizando a ponta do pé pela perna da esposa por baixo da mesa.
Silvia riu, puxando a perna para longe, tentando manter a compostura.
— Verena! — ralhou novamente, rindo.
— Só estou tentando negociar. — disse Verena, piscando um olho.
Silvia acabou cedendo, balançando a cabeça.
— Você não presta, Castilho. — disse, mas seus olhos brilhavam. — Vou terminar de arrumar a cozinha. Se mudar de ideia, me avisa.
Verena ficou olhando para ela por um instante, pensativa. No fundo, queria fazer a esposa feliz. E sabia que, por Silvia, talvez pudesse suportar até missa de domingo.
Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) — Início da manhã
O trânsito naquela manhã era o mesmo de sempre: pesado, barulhento, irritante. Verena dirigia com a janela semiaberta, deixando o vento fresco bagunçar alguns fios soltos de seu cabelo preso em um coque despretensioso. Usava um blazer preto sobre a mesma camisa branca. Sua mente, porém, estava a quilômetros dali.
Entre buzinas e sinais fechados, refletia sobre a conversa com Silvia. Sabia que precisava se esforçar mais. Silvia era boa demais para ser negligenciada. Talvez... talvez pudesse ceder e acompanhá-la na missa. Nem que fosse para vê-la sorrir daquele jeito doce.
Suspirou, ajustando o volume do rádio para escapar dos próprios pensamentos.
Quando finalmente chegou à ALESP, o cenário mudou drasticamente. Não havia espaço para doçura ali. O clima político estava ainda mais tenso que o normal. O episódio da semana passada, com o deputado homofóbico, havia deixado rastros — Verena sabia que agora seus movimentos seriam ainda mais vigiados.
Mas também sabia que era exatamente isso que a tornava tão perigosa: ela não recuava.
Assim que atravessou o hall principal, Rafaela já a esperava encostada em uma pilastra, de braços cruzados e expressão travessa.
— Bom dia, excelência! — provocou, com aquela voz carregada de deboche.
— Se você me chamar de excelência de novo, vou descontar do seu salário. — Verena ameaçou, sem conter o sorriso.
— Uau. Acordou de bom humor... — Rafaela brincou, se juntando a ela no caminho até o elevador. — E então, pronta pra roubar dinheiro público hoje?
Verena soltou uma risada seca.
— Roubar não. Redirecionar. — Corrigiu, com ironia. — Roubar é quando você pega pra si. Eu só vou fazer circular.
Rafaela riu, mas seus olhos atentos sabiam que o assunto era sério.
— A papelada já está toda separada. Estão esperando só a sua autorização pra assinar.
Verena assentiu lentamente, apertando o botão do elevador.
— E os “laranjas”?
— Conferidos e prontos. Ninguém vai desconfiar. — Garantiu Rafaela, mais sóbria agora.
A porta do elevador se abriu, e as duas entraram. Enquanto subiam, Verena olhou seu próprio reflexo na parede espelhada: parecia calma. Quase entediada. Mas por dentro, sentia a velha adrenalina queimando sob a pele. A mesma que sempre surgia quando ia cruzar alguma linha perigosa.
— Hoje à tarde, quando a maioria for embora, a gente faz. — disse, olhando para Rafaela através do reflexo.
— Fechado. — A ruiva respondeu, dando um leve sorriso cúmplice.
Assim que as portas se abriram, Verena assumiu seu habitual ar imponente. Um pequeno desfile de assessores e estagiários abriu caminho para ela sem que fosse necessário dizer uma palavra.
Ali, ela era Verena Castilho: poderosa, fria, inatingível.
Mas apenas algumas horas antes, ela era só Verena. Sentada, descalça, à mesa da cozinha, fingindo que não queria ir à missa só pra provocar a mulher que amava.
Talvez fosse isso que a mantivesse de pé, no fim das contas: esse equilíbrio insano entre seus dois mundos.
E agora, era hora de jogar.
Gabinete de Verena – Segunda-feira, 9h30 da manhã
O som do ar-condicionado preenchia o silêncio desconfortável da sala de apoio. Verena, de óculos de leitura na ponta do nariz, revisava pela décima vez os documentos abertos sobre a mesa. O blazer cinza-escuro escondia o nervosismo em sua postura impecável. À sua frente, Rafaela roía a tampa de uma caneta, os olhos atentos à planilha que preenchiam juntas.
— Se a gente não bater o protocolo certo até amanhã, aquele repasse extra do convênio vai pro espaço — disse Rafaela em voz baixa, quase sussurrando.
Verena não respondeu de imediato. Passou a mão pelos cabelos lisos, pensativa. Um estalo ecoou quando largou a caneta sobre a mesa, exausta da própria desconfiança.
— Eu sei. — A voz dela era seca, firme. — A planilha da fundação de fachada tá pronta? Já fizeram a movimentação?
Rafaela assentiu.
— O estagiário do jurídico protocolou agora há pouco. Só falta você assinar pra dar entrada no sistema. Depois disso, ninguém mais vê a origem.
Verena assentiu, mas, por dentro, uma ponta de desconforto martelava sua cabeça. O rosto de Silvia surgiu brevemente em sua mente — o sorriso carinhoso no café da manhã, os olhos brilhando enquanto lhe dizia para não trabalhar tanto.
"Tô fazendo isso por nós," justificou para si mesma, quase acreditando.
Pegou a caneta de novo. A mão firme apenas na aparência. Antes de assinar, olhou pela janela fechada da sala: o movimento normal do prédio parecia indiferente ao que acontecia ali dentro.
— Se alguém perguntar sobre a movimentação... — disse ela, ainda sem assinar.
— Dizemos que é ampliação de programas sociais — completou Rafaela rapidamente, piscando com cumplicidade.
Verena soltou uma risada seca, sem humor.
— Sempre os programas sociais, né?
Assinou. O risco da caneta sobre o papel pareceu ensurdecedor.
No instante em que terminou, um estalo a fez levantar o olhar: um dos novos assessores — um rapaz jovem, cabelo raspado, expressão meio perdida — passou no corredor, espiando brevemente para dentro. Verena endureceu a expressão. Rafaela seguiu o olhar da amiga.
— Relaxa — murmurou ela, voltando a atenção para a papelada. — Esse aí mal sabe digitar o próprio e-mail.
Verena tentou rir, mas não conseguiu.
Um pensamento cruzou sua mente: "E se fosse Silvia vendo isso? Ou... e se fosse Valentina?" A ideia era absurda, fora de contexto, mas a picada da culpa foi inevitável. Piscou forte para afastar o desconforto, ajeitou o blazer nos ombros e ficou de pé, como se precisar se mover pudesse afastar a tensão.
— Vamos terminar logo com isso, Rafa. Não quero nada pendente depois.
— Sim, chefe. — Rafaela bateu continência de brincadeira, arrancando dela um meio sorriso.
Enquanto saíam da sala para oficializar o processo, Verena lançou um último olhar para a planilha digital aberta no notebook. O cursor piscava no canto da tela, como um lembrete incômodo de que, às vezes, errar também é uma escolha consciente.
E ela estava fazendo a sua.
Assembleia Legislativa – Gabinete de Verena – Final da manhã
O relógio sobre a parede marcava pouco mais de onze horas e meia quando Verena largou a caneta sobre a mesa. O contrato assinado repousava à sua frente como um lembrete silencioso do que tinha acabado de fazer. Cruzou os braços e recostou-se na cadeira, olhando pela janela do gabinete, que mostrava um recorte apressado da cidade se movendo lá embaixo.
Tentou voltar a responder e-mails. Tentou mesmo. Mas lia três palavras e a mente fugia para outras questões — para Silvia, para Valentina, para a sensação estranha que lhe coçava a nuca. Soltou um suspiro irritado e empurrou o notebook mais pra frente, sem vontade de continuar fingindo que trabalhava.
Pegou o celular, checou mensagens aleatórias. Nada parecia interessante. Decidiu sair.
Com passos firmes, deixou o gabinete. O salto batendo ritmado pelo corredor de piso frio. Alguns assessores acenaram de longe, ela respondeu com um leve levantar de queixo. Estava com a mente a mil, mas por fora ainda era a mesma Verena segura de sempre.
Seguiu até uma das áreas externas do prédio, onde havia um pequeno terraço improvisado para funcionários fumarem ou simplesmente tomarem um pouco de ar.
Ali, apoiada na grade metálica, Verena tirou do bolso um maço amassado de cigarros. Olhou para ele, pensativa, antes de desistir e guardá-lo de volta.
Ficou apenas ali, observando a cidade. O céu estava parcialmente nublado, com o sol furando preguiçosamente as nuvens. Pessoas apressadas cruzavam as avenidas como formigas. Cada um em sua luta particular.
— Vai ficar aí filosofando sobre a vida ou posso te sequestrar pra almoçar? — disse uma voz divertida atrás dela.
Verena virou-se devagar e viu Rafaela, sorrindo com aquele jeito maroto de sempre, os cabelos ruivos bagunçados pelo vento.
— Não tô com fome. — Verena respondeu, seca, mas sem agressividade.
Rafaela se encostou ao lado dela, braços cruzados, olhando a cidade também.
— Você só diz isso porque ainda não viu a sobremesa nova do restaurante. — Cutucou-a com o cotovelo. — E também porque tá cheia de minhoca na cabeça.
Verena deu uma risada fraca, virando o rosto pra não dar bandeira.
— Desde quando você virou psicóloga?
— Desde que virei sua melhor amiga, gata. — Piscou. — Vai me dizer que não te conheço?
Elas ficaram um momento em silêncio. Um silêncio confortável, raro.
— Fiz o que precisava ser feito, Rafa. — disse Verena, baixando o tom.
— Eu sei. — Rafaela assentiu, sem ironias. — Mas saber que precisa fazer e lidar com a merd* depois são dois jogos diferentes, né?
Verena apenas respirou fundo.
— Vai almoçar. — disse enfim. — Eu vou ficar por aqui.
— Você que sabe... Mas ó — Rafaela se afastou de costas, ainda olhando pra amiga. — Se ficar muito pensativa assim, vai começar a criar ruga. E aí Silvia vai querer trocar por uma versão mais nova.
A piada era baixa, mas conseguiu arrancar de Verena uma gargalhada espontânea, real, daquelas que há tempos ela não soltava.
— Some daqui, Rafaela. — Ela disse, abanando a mão.
Rafaela mandou um beijo no ar e sumiu pelo corredor.
Verena ficou mais um pouco, depois retornou ao gabinete. À tarde, Valentina estaria ali. E ela precisava, de algum jeito, parecer a mulher invencível que todos acreditavam que ela era.
Assembleia Legislativa – Sala de Apoio – Início da tarde
O relógio marcava quase uma e meia quando Valentina atravessou o corredor estreito da Assembleia, os passos contidos, como se tivesse medo de incomodar alguém. Carregava a mochila nas costas e segurava uma pequena pasta com documentos do estágio.
Assim que empurrou a porta da sala de apoio, sentiu o cheiro gelado do ar-condicionado misturado ao perfume discreto de móveis encerados. Havia outras duas estagiárias ali, trocando algumas palavras baixas. Valentina cumprimentou-as com um aceno tímido e foi até sua mesa, ajeitando as coisas com cuidado exagerado, quase como se cada movimento precisasse ser ensaiado.
Do outro lado da parede, dentro do gabinete principal, Verena largou a caneta que segurava sem perceber. Sentiu, mais do que ouviu, a presença da garota no ambiente. Um peso súbito no ar, um calor que começava em algum ponto indefinido entre o estômago e o peito, irradiando sem permissão.
Cerrou os olhos por um segundo. Respira. É só a estagiária, disse a si mesma.
Tentou se concentrar nos papéis à sua frente — o contrato recém-assinado, a planilha que Rafaela enviara, os próximos passos do esquema. Tudo aquilo que exigia frieza. Mas o barulho discreto da pasta sendo aberta do outro lado da porta fina a distraía. Cada toque, cada pequeno som, parecia ressoar direto em seus nervos expostos.
Levantou-se da cadeira abruptamente, caminhou até a porta interna entre o gabinete e a sala de apoio. Não abriu. Não seria louca. Apenas encostou a testa contra o vidro frio, escondida da visão dos outros.
Do lado de fora, Valentina anotava algo em seu caderno, concentrada, a cabeça baixa, o cabelo preso de qualquer jeito deixando a nuca à mostra.
Verena fechou os olhos com força, frustrada consigo mesma. Que tipo de mulher era ela, afinal? Não bastava todo o risco que já estava correndo com o golpe?
"Se controla, Castilho", murmurou para si, voltando à mesa, o corpo tenso como uma corda prestes a arrebentar.
À tarde seria longa. Longa demais.
Assembleia Legislativa – Gabinete de Verena – Pouco depois das 14h
Verena girava a caneta entre os dedos, o olhar fixo na porta de vidro que separava seu gabinete da sala de apoio. De onde estava, conseguia ver a silhueta de Valentina, sentada, cabeça baixa sobre o caderno, escrevendo alguma coisa com atenção.
Por que diabos essa garota ocupava tanto espaço na cabeça dela?
Mordeu o lábio inferior, irritada consigo mesma. Então, quase num impulso, apertou o botão do interfone.
— Valentina? Pode vir aqui, por favor?
Do outro lado, a menina levantou a cabeça com um pequeno sobressalto. Deu para ver o momento exato em que ela engoliu seco e ajeitou a blusa antes de caminhar hesitante até a porta. Bateu de leve com os nós dos dedos.
— Pode entrar — disse Verena, a voz mais firme do que se sentia.
A porta de vidro deslizou, e Valentina entrou, segurando a pasta contra o peito como um escudo.
— A senhora me chamou?
Verena indicou a cadeira à frente da mesa.
— Senta um minuto.
Valentina obedeceu, os olhos fugindo dos dela, fixando-se em qualquer outro ponto da sala: na estante de livros, na cafeteira ligada, no vaso discreto de orquídeas sobre a mesa lateral.
Verena se inclinou um pouco para frente, apoiando os antebraços na mesa. Queria ser racional. Profissional. Mas quando Valentina levantou os olhos, apenas por um segundo, algo dentro dela trincou.
— Como está sendo o estágio até agora? — Perguntou, forçando um tom neutro.
Valentina demorou para responder. A boca abriu, fechou, e só depois encontrou palavras:
— É... é muito mais do que eu imaginei. — disse baixinho, a voz embargada de nervosismo. — Eu... nunca tinha estado num lugar assim. Nem... — ela mordeu o lábio, pensativa. — Nem conhecido pessoas como... a senhora.
Verena arqueou uma sobrancelha, inclinando a cabeça de lado.
— Pessoas como eu? E acho que já conversamos sobre me chamar de senhora.
Valentina ficou ainda mais vermelha. Baixou o olhar, brincando com a borda da pasta.
— Gente importante. Forte. — murmurou. — Que parece que... sabe exatamente o que está fazendo.
Verena soltou um riso breve, quase amargo.
— É. Parece. — disse, entrelaçando os dedos sobre a mesa. — Mas ninguém aqui sabe exatamente o que está fazendo, Valentina. Nem eu.
A menina ergueu os olhos, surpresa com a sinceridade que escapara da deputada.
Por alguns segundos, ficaram apenas se olhando. Nenhuma palavra. Só o zumbido distante do ar-condicionado preenchendo o espaço.
Verena pigarreou, quebrando o clima.
— Bom... — ela apontou para a pasta. — Trouxe o relatório do projeto de bolsas estudantis?
Valentina assentiu apressada, abrindo a pasta com dedos desajeitados.
Enquanto entregava o documento, a ponta de seus dedos roçou de leve nos de Verena. Um toque rápido. Quase acidental.
Mas suficiente para que ambas travassem por um instante.
Valentina puxou a mão rápido, como se tivesse tocado fogo. Verena fechou a pasta devagar, a mandíbula tensa.
— Obrigada. — disse, num tom controlado.
Valentina se levantou rápido demais, fazendo a cadeira arrastar no piso com um rangido agudo.
— Eu... se precisar de mais alguma coisa, estou ali na sala... — balbuciou, já recuando em direção à porta.
Verena apenas assentiu, sem confiança para falar mais nada.
A menina atravessou a porta de vidro, voltando à sala de apoio. Mas, antes de sair, virou-se discretamente. E pegou Verena ainda olhando para ela.
Ambas desviaram o olhar, como se o flagrante tivesse sido mais íntimo do que um abraço.
Verena recostou-se na cadeira, fechando os olhos por um breve momento.
Estava começando a perder o controle. E sabia que Valentina sentia o mesmo.
Gabinete de Verena – Minutos depois
Verena permaneceu sentada, imóvel, por algum tempo após a porta de vidro se fechar. A pasta repousava intacta sobre a mesa. O relatório não importava. Nada importava. O celular vibrou discretamente. Ela olhou.
Silvia.
"Oi, amor. O dia tá uma loucura aqui no escritório. Mas queria que soubesse que tô com saudade. E que te amo."
Tinha um coraçãozinho no fim. Vermelho.
Verena sentiu como se o ar do gabinete tivesse sumido por um instante. Fechou os olhos, a mão apertando o celular com força. Silvia. Leal. Amorosa. Sem saber de nada. Sem saber que, minutos antes, sua prima adolescente estava ali dentro, mexendo com cada poro, cada parte do corpo e da consciência dela.
Um nó subiu pela garganta.
Foi então que a porta se abriu sem cerimônia.
— Nossa, se o clima aqui ficasse mais pesado, eu ia achar que estavam gravando “Linha Direta – Edição Política”. — disse Rafaela, já entrando com aquele jeito atrevido, carregando uma garrafinha de água e uma sacola de snacks.
Verena não respondeu. Apenas baixou a cabeça, apoiando os cotovelos na mesa.
Rafaela franziu a testa, parando no meio da sala.
— O que foi? Já tá arrependida de ter assinado a primeira parte do acordo da morte?
Silêncio.
Rafaela se aproximou, sem tirar os olhos da amiga.
— Verena?
A deputada ergueu o olhar devagar. Estava visivelmente abalada. Os olhos úmidos, o rosto pálido.
— Eu chamei ela aqui. — disse num sussurro.
— “Ela” quem?
— Valentina. — respondeu, como se o nome fosse veneno.
Rafaela ficou em pé por alguns segundos, tentando juntar as peças. Então suspirou, largando a sacola na cadeira ao lado.
— Me diz que você não fez merd*.
— Eu... eu só chamei ela aqui. Pra entregar um relatório. — Verena esfregou o rosto com as mãos. — Mas não foi só isso. A forma como ela me olhou. A forma como me ouviu. E como ela tremeu quando a ponta dos dedos encostou nos meus. Aquilo... foi demais. Foi real. Eu senti.
— Puta que pariu, Verena. — Rafaela caiu sentada, exasperada. — Você sabe o que isso significa?
— Eu não fiz nada. — rebateu, mais alto. — Nada aconteceu. Foi só um toque.
— Só um toque? — Rafaela bufou. — Cê acha que é assim que essas coisas começam? Você já tá com a cabeça toda fodida, envolvida até o pescoço num desvio de verba que pode arruinar sua carreira, e agora vai brincar de incêndio com uma adolescente que é PRIMA da sua esposa?
Verena engoliu em seco.
— Eu não planejei isso, Rafa...
— Claro que não planejou! — cortou. — Mas você tá alimentando. Tá se deixando levar. E não é só sua vida que tá em jogo. É a da Silvia também.
O nome da esposa caiu como um tijolo.
Verena pegou o celular de novo, relendo a mensagem, como se tortura fosse redenção.
— Ela me mandou isso agora. Dizendo que me ama. Que tá com saudade. — A voz falhou. — E eu tô aqui, desejando outra pessoa. Uma menina, Rafaela. Uma garota de 16 anos.
Rafaela, por um segundo, pareceu perder o ar.
— Eu sei que você não é má. — disse mais baixo. — Eu te conheço. Mas tá indo por um caminho que... — balançou a cabeça — …não tem volta, Verena.
Verena apoiou a testa na mesa.
— Eu não sei como parar.
— Começa parando de mentir pra você mesma. — respondeu Rafaela, firme. — Ou você vai acabar perdendo tudo. E talvez... mereça.
O silêncio caiu espesso na sala. Rafaela suspirou, cansada.
— Eu tô do seu lado. Sempre. Mas você precisa decidir se quer ajuda pra sair dessa, ou companhia pra se afundar.
Ela se levantou e foi em direção à porta. Antes de sair, virou-se.
— E não usa o amor da Silvia como âncora. Se for pra trair, pelo menos tenha a decência de não se esconder atrás dela.
A porta fechou com um clique leve. Verena ficou sozinha com o próprio coração batendo alto demais.
Assembleia Legislativa – Corredor Principal – Por volta das 16h20
A tarde se arrastou entre reuniões, telefonemas e relatórios. Valentina manteve a cabeça baixa, cumprindo suas tarefas com a dedicação de sempre, mas com o coração disparado em descompasso. Sentia a presença de Verena como uma sombra, mesmo sem vê-la diretamente.
Quando o relógio marcou 16h15, ela começou a organizar suas coisas na pequena mesa da sala de apoio. Dobrou os papéis com cuidado, guardou a caneta na mochila e ajeitou o cabelo em frente ao vidro da sala, como se fosse encontrar alguém importante. Era só o reflexo de uma angústia que ela não queria admitir.
No corredor, Verena saiu da própria sala como quem não pensava muito. Mas pensava. Cada passo era um dilema. A poucos metros de distância, viu quando Valentina ajustou a alça da mochila nos ombros e caminhou para a saída.
Verena ficou parada por um segundo.
O som dos saltos ecoou no chão de mármore enquanto ela seguia, sem pensar, na mesma direção.
Quando Valentina passou pela deputada, baixou a cabeça timidamente.
— Boa tarde, deputada. — disse, quase num sussurro, sem conseguir olhar nos olhos dela.
Verena quis responder algo além do óbvio. Quis dizer "fica mais um pouco", "não vai agora", "não some da minha vista".
Mas o que saiu foi só:
— Boa tarde, Valentina.
A voz saiu baixa, rouca. Valentina sentiu o corpo inteiro reagir, como se aquele som a atravessasse.
Seguiu em frente, sem olhar para trás.
Verena ficou ali, parada no meio do corredor, observando a garota desaparecer pelas portas de vidro.
Ônibus – Trajeto até o Ipiranga
A cidade passava borrada pela janela do ônibus lotado. Valentina se segurava na barra de apoio, mochila presa no colo, a cabeça encostada no vidro.
"Será que ela percebeu o jeito que eu tremi?"
"Será que ela me vê como eu vejo ela?"
Fechou os olhos com força. Tentava se convencer de que era errado. De que era coisa da sua cabeça. Mas a resposta do corpo dela, o frio na barriga, o calor nas bochechas, não mentiam.
"É só admiração, é só respeito," murmurou pra si mesma.
E pela primeira vez, não acreditou na própria mentira.
Casa de Valentina – Início da Noite
O portão rangeu ao ser empurrado. A casa parecia igual a todas as noites: o cheiro do arroz no fogo, a televisão ligada no jornal, a irmã caçula concentrada na lição no chão da sala.
Mas Valentina se sentia outra. Carregava dentro de si uma confusão que parecia maior que o próprio mundo.
Subiu pro quarto, largou a mochila num canto e deitou na cama de barriga pra cima, olhando o teto.
Puxou o celular e abriu a aba de pesquisas.
"Como controlar sentimentos proibidos?"
Leu sem conseguir absorver. Largou o aparelho de lado e fechou os olhos, sentindo uma lágrima silenciosa escorrer pela têmpora.
Lá embaixo, a mãe chamou para o jantar.
Valentina respirou fundo, engoliu a vontade de ficar ali chorando, e respondeu:
— Já vou, mãe.
E se forçou a levantar, porque a vida — a vida real — não parava só porque o coração dela estava em ruínas.
Condomínio nos Jardins – Apartamento de Verena e Silvia – Por volta das 19h15
O som da chave girando na porta ecoou no apartamento silencioso. Verena entrou, fechou a porta com cuidado e soltou a bolsa no aparador da entrada.
A luz morna da sala iluminava o ambiente com suavidade: móveis modernos, cores neutras, uma calma que parecia zombar da tempestade que se formava dentro dela.
Ouviu o barulho vindo da cozinha — o tilintar leve de um copo contra a pia. Caminhou até lá, os passos pesados no chão de madeira.
Silvia estava de costas, ainda usando a roupa de trabalho: uma saia lápis bege, camisa azul clara de mangas dobradas nos cotovelos, e um salto médio que agora repousava em algum canto do apartamento. O cabelo castanho-claro preso num coque improvisado, alguns fios soltos em volta do rosto. Bebia água devagar, como quem precisava se recompor de um dia intenso.
Verena parou no batente da porta, sem dizer nada. Apenas olhou. Olhou como quem olha pela primeira vez.
Silvia era... tudo. Inteligente, gentil, bonita, forte e Verena, com toda sua esperteza política, percebia que vinha desperdiçando aquilo sem nem entender direito o porquê.
Um aperto subiu pela garganta. Talvez pelo peso do que já tinha feito. Talvez pelo que ainda estava para fazer.
Passou a mão pelos cabelos, tirando o blazer com movimentos lentos. Ficou de camisa social branca levemente amarrotada, calça social preta justa, e sapato oxford feminino, de couro envernizado — o que sempre lhe dava uma aparência ainda mais impecável, mesmo nos dias em que a alma estava despedaçada.
Silvia, sentindo o movimento atrás de si, virou-se.
— Oi, amor — disse, com um sorriso pequeno, cansado, mas genuíno.
Verena forçou um sorriso em resposta e se aproximou, apoiando-se na bancada de mármore.
— Oi. — A voz saiu baixa, rouca.
Silvia terminou de beber a água e pousou o copo na pia. Veio até ela, passou os braços ao redor da cintura de Verena e encostou a cabeça em seu peito.
— Dia difícil? — perguntou, sem exigências, sem pressão. Só carinho.
Verena hesitou por um segundo antes de envolver Silvia em um abraço. Um abraço meio desajeitado, meio aflito.
— Um pouco — respondeu, depois de um tempo. — E o seu?
— Agitado também — Silvia suspirou. — Clientes novos, prazos estourando... O de sempre. Fez uma pausa.
— Mas eu passei o dia pensando em você. — Sorriu de lado, com doçura. — Sentindo sua falta.
Verena fechou os olhos com força. Como podia sentir tanto amor vindo dela e, ainda assim, estar despedaçando tudo?
Silvia se afastou um pouco para encará-la.
— Tá tudo bem? — perguntou, com aquela voz baixa que usava quando percebia que algo estava errado.
Verena queria dizer que sim. Queria mentir. Mas apenas assentiu, sem conseguir colocar palavras na boca.
Silvia sorriu de novo, passando a mão pela gola da camisa dela.
— Vai tomar um banho? Eu pensei em pedir alguma coisa pra jantarmos aqui mesmo... Não tô a fim de sair hoje.
— Pode ser. — Verena respondeu, desviando o olhar.
— Sushi? — Silvia sugeriu, animada.
Verena deu um sorriso fraco.
— Você lê minha mente.
Silvia beijou sua bochecha, de leve, e foi pegar o celular para fazer o pedido.
Verena ficou parada mais um pouco na cozinha. Sentia-se como uma intrusa na própria vida. Como alguém que observa uma felicidade que já não sabia se merecia.
Quando finalmente se moveu, caminhou até o banheiro da suíte, tirando a roupa com movimentos automáticos. Deixou a água quente cair sobre si como se pudesse lavar não só o cansaço, mas também a culpa. Mas a culpa, essa, parecia ter fincado raízes profundas demais.
...
Verena tinha acabado de tomar banho. Usava um moletom largo cinza, o cabelo ainda úmido, preso de qualquer jeito com uma presilha. Estava descalça, com as meias molengas e uma taça de vinho na mão. Silvia já estava na cozinha, também de roupa confortável: uma calça legging preta e uma blusa de algodão com estampa floral discreta. O rosto lavado, o cabelo preso em um coque alto e desalinhado.
Sobre a bancada, o sushi que pediram estava quase todo disposto em pratinhos de porcelana que Silvia insistia em usar, mesmo para delivery. Pequenos cuidados que ela mantinha. O cenário era iluminado pela luz quente da cozinha e pelo som ambiente de uma playlist com covers acústicos. Familiar. Confortável.
— Achei que você ia dormir sem comer — disse Silvia, mexendo o potinho do shoyu.
Verena deu um meio sorriso e se sentou num dos bancos altos da bancada.
— Não consegui. Tô com fome agora.
Silvia se sentou ao lado, pegando um sushi com os hashis com facilidade. Verena, por outro lado, sempre demorava um pouco mais — não pelo sushi, mas por ainda estar com a cabeça a mil.
— A semana passou rápido — comentou Silvia, como quem puxa conversa depois de dias corridos. — Mas hoje... hoje eu senti tua falta.
Verena olhou de canto, surpresa com a franqueza. Não respondeu de imediato. Pegou um sushi, ainda com a taça na outra mão.
— Eu vi sua mensagem. — Um silêncio breve. — Obrigada por ter mandado.
Silvia sorriu de leve, e apoiou o braço na bancada, virando-se mais na direção dela.
— Não era pra agradecer. Era só pra saber se... você ainda sente.
Verena a olhou, devagar. A expressão dela estava menos dura do que no trabalho. Mais solta, cansada talvez, mas sincera.
— Eu sinto. Só não sei lidar com isso sempre.
— Com o quê? Com a gente?
— Com a gente. Com tudo. Com o quanto eu te amo e mesmo assim... fico tão perdida.
Silvia mastigou em silêncio, respeitando o tempo de Verena. Depois, disse baixo:
— Você não precisa ter todas as respostas, Ve. Só precisa estar presente. E me deixar entrar. Às vezes eu tenho a impressão de que você ainda tá lá no gabinete... mesmo quando tá aqui, de moletom e meias ridículas — ela brincou, apontando pro pé da esposa, que soltou uma risada abafada.
— Essas meias são ótimas — defendeu-se, rindo. — Ganhei da Rafa, inclusive. Nunca mais vou ouvir o fim disso.
Silvia sorriu. Um silêncio gostoso caiu entre elas por alguns instantes, enquanto comiam mais alguns sushis. A intimidade simples, mas cheia de pontas não ditas.
Depois de mais um gole de vinho, Verena arriscou:
— Você ainda confia em mim?
Silvia parou o movimento dos hashis. Deixou-os sobre o prato.
— Eu confio no que a gente construiu. Mas eu preciso ver você lutando por isso também. Porque não sou só eu que tô aqui sentada com roupa de casa fingindo que tá tudo bem.
Verena respirou fundo. Passou a mão no cabelo úmido.
— Eu tô tentando, Sil. Juro. Mesmo errando... eu tô tentando.
Silvia se levantou, deu a volta na bancada e abraçou Verena por trás, encostando o rosto em seu ombro.
— Então fica. Aqui. Hoje. Comigo. Não com o medo, não com o peso. Só comigo.
Verena pousou a mão sobre a dela e fechou os olhos. E pela primeira vez em muito tempo, se permitiu só... respirar.
Casa de Valentina – Quarto – 06h13 da manhã
O alarme do celular tocou, mas Valentina já estava acordada. Deitada de lado, encarava o teto com os olhos vidrados. A luz ainda fraca da manhã entrava por entre as cortinas, colorindo o quarto com um tom pálido e silencioso.
Ao lado, a irmã dormia profundamente. Valentina sorriu com ternura ao vê-la, mas o sorriso logo se perdeu. Ela se virou na cama e puxou o celular debaixo do travesseiro. O coração já disparava — e ela nem sabia exatamente por quê.
Desbloqueou a tela, hesitou... e foi direto ao navegador.
"Verena Castilho", digitou.
As primeiras imagens que apareceram eram de eventos políticos, manchetes de sites de notícias, entrevistas. Verena de terno escuro, óculos marcantes, postura impecável. Um ícone de força e presença. Mas para Valentina, ela era mais do que isso. Era um enigma. Um incêndio silencioso. E ela, a cada dia, sentia-se mais consumida.
Ficou observando uma foto em que Verena discursava no plenário. Parecia brava, indignada. E mesmo assim... linda. Inacessível. Um nó se formou em sua garganta.
“Para com isso... é errado.”, pensou, fechando os olhos por um segundo.
Mas então, num impulso, foi até o Instagram. Achou a conta oficial de Verena. Fotos políticas, agendas, campanhas, discursos. Curtidas, comentários de apoio. Tudo muito público, muito... distante.
E aí teve a ideia de procurar por Silvia Alencar.
Achou.
Perfil fechado.
O desconforto apertou o peito. Queria parar, mas seus dedos agiam sozinhos. Pulou pro Facebook.
Bingo. Perfil aberto.
A conta tinha um tom mais institucional, mas, ao rolar para baixo, lá estava ela: uma foto que não era sobre trabalho. Uma imagem meio espontânea, numa sala iluminada, talvez a da casa delas. Silvia estava abraçada a Verena, ambas sorrindo de forma ampla, natural. Verena usava uma camiseta branca e estava com os óculos de lado, como se tivesse acabado de rir de alguma piada boba. Silvia, com um vestido claro, apoiava o rosto no ombro dela.
A legenda era simples:
"O dia mais feliz da minha vida. ❤️ #casamento #verenaesilvia"
Valentina ficou estática.
Passou o dedo pela tela devagar, tocando o rosto de Verena. Aquela imagem parecia ter sido tirada em um mundo que não era o seu. E mesmo assim, sentia-se hipnotizada.
Um aperto subiu pelo peito, e antes que percebesse, uma lágrima escorreu silenciosa.
Ela sussurrou:
— O que eu tô fazendo...?
Fechou o celular com força, como se isso apagasse o que tinha sentido.
Mas o sentimento estava lá. Ainda mais vivo.
Ainda mais errado.
Ainda mais impossível.
Gabinete de Verena — 14h20
A porta do gabinete se fechou com um estalo seco.
Verena estava de pé, ao lado da própria mesa, com os braços cruzados e a expressão dura. Daniel, um dos assessores mais novos, suava discretamente apesar do ar-condicionado. Ele segurava um relatório mal diagramado, com trechos soltos, erros de digitação e dados confusos sobre uma proposta de incentivo à educação técnica para jovens de periferia.
— Daniel, isso aqui é inaceitável — disse ela, em um tom baixo, mas carregado de frustração. — Eu pedi um levantamento técnico e objetivo, não um rascunho mal feito de TCC de ensino médio.
— Deputada, eu achei que... que esses dados...
— Você achou errado. Eu não vou entrar numa comissão com um material desses. Isso aqui não me dá respaldo nenhum — cortou ela, firme. — Você sabe o quanto essa pauta é importante. Jovens de escola pública tendo acesso a cursos técnicos gratuitos? Você tem noção do impacto disso?
Daniel baixou a cabeça, desconcertado.
— Me desculpe. Eu vou refazer.
— Vai fazer mais do que isso. Vai revisar com a Juliana, organizar por tópicos e me entregar até amanhã às 10h. E da próxima vez, se não tiver certeza do que está fazendo, me pergunta. Antes de errar.
Daniel assentiu, os ombros curvados. Caminhou até a porta sem encará-la. No momento em que girava a maçaneta, a porta se abriu por si só. Rafaela estava ali, um pé dentro, outro fora, encarando o rapaz com uma sobrancelha arqueada.
— Ih... sobrou até pro Harry Potter do setor três — murmurou, cruzando os braços quando ele saiu cabisbaixo. — Ele vai sonhar com essa reunião por uma semana.
Verena respirou fundo, voltando à cadeira. Massageou as têmporas com os dedos.
— Ele entregou um relatório que nem o estagiário da semana passada faria.
— E olha que o estagiário da semana passada era primo do motorista e achava que "PL" era nome de banda gospel — ironizou Rafaela, se aproximando.
Mas logo o sorriso dela desapareceu ao perceber o cansaço no rosto da amiga.
— Você tá se corroendo — disse, mais baixo, sentando na poltrona da frente.
Verena não respondeu de imediato. Apenas ficou olhando para a tela do computador, onde ainda piscava o arquivo com o nome “Relatório Educação Técnica — Comissão de Desenvolvimento Humano”.
— Eu tô... perdendo a mão — murmurou. — Com tudo. No trabalho, em casa... comigo mesma.
— Você tá metida num desvio milionário que pode explodir a qualquer momento, casada com uma mulher incrível e olhando torto pra uma menina de dezesseis anos. É, dá pra dizer que sim — respondeu Rafaela, firme, sem deboche dessa vez.
Verena cerrou os olhos.
— Não começa.
— Não começar? Verena, eu tô aqui te ajudando a manter a fachada de política implacável enquanto você pensa em arruinar tudo por um impulso — rebateu Rafaela, séria. — Você tem noção do que tá fazendo?
— Eu não tô fazendo nada, tá? — rebateu Verena, mais alto. — Eu não encostei nela, não falei nada de errado. Eu só...
— Só sente? — cortou Rafaela. — Sentir não justifica. Ainda mais vindo de você.
Houve um silêncio tenso. Verena desviou o olhar, engolindo em seco.
Foi nesse momento que bateram na porta de vidro.
Ambas olharam. A porta se abriu devagar, revelando Valentina, com seu caderno nas mãos, os olhos grandes, tímidos, mas aflitos.
— Com licença... desculpa incomodar. É que me mandaram vir aqui tirar uma dúvida sobre o levantamento do projeto de inclusão educacional. Disseram que a senhora ou a assessora Rafaela poderiam me ajudar.
Rafaela se levantou imediatamente, forçando um tom leve, mas neutro.
— Claro. Mas acho que a deputada é quem tava mergulhada nesse material agora. Não é, chefe?
Verena assentiu, limpando o rosto com as mãos, tentando suavizar a expressão.
— Pode entrar, Valentina. Senta aqui — disse ela, num tom surpreendentemente brando. Quase doce.
Rafaela se afastou discretamente, ficando em pé junto à estante, mas observando tudo com atenção. O tom de voz, o jeito como Verena ajeitou a cadeira, como deixou o blazer abrir sutilmente para se inclinar mais perto da garota. Tudo pequeno. Tudo perigoso.
— Qual é exatamente a sua dúvida? — perguntou Verena, com um leve sorriso no canto da boca.
Valentina, por sua vez, pareceu congelar por um segundo. Ela sentia o perfume da deputada no ar. Estava tão perto, e ainda assim... parecia inalcançável.
— É sobre o impacto orçamentário... eu não entendi como foi feito o cálculo de redistribuição das verbas — disse, tentando manter a compostura.
— Bom, então vamos ver juntas.
E, pela primeira vez naquela tarde, Verena esqueceu do relatório malfeito. Do escândalo em potencial. Da traição passada. Esqueceu até de Silvia.
Mas Rafaela, ali no canto, não esqueceu nada.
...
Valentina fechou a porta do gabinete devagar, quase como se temesse que um movimento brusco quebrasse o que quer que tivesse acabado de acontecer ali. A dúvida, a pergunta sobre o relatório, já nem parecia importante. O que martelava na cabeça dela era o jeito com que Verena a olhou. Não com descaso. Não com superioridade. Com… cuidado.
Ela voltou devagar para a sala de apoio, onde outros estagiários falavam baixo, digitavam ou organizavam pastas. Sentou-se à mesa como se as pernas tivessem desaprendido a funcionar direito.
— Val, tudo certo lá dentro? — perguntou um dos meninos, passando por ela com uma pilha de pastas.
Ela forçou um sorriso, assentiu, mas seu olhar estava fixo na tela do computador. Seus dedos pairavam sobre o teclado, mas nada acontecia. O calor que subia pelo peito, o arrepio na nuca, a lembrança do tom suave de Verena... Aquilo era real?
Casa de Valentina – Quarto
O ventilador rodava numz cadeira ao lado da porta, com um rangido leve. Isadora, deitada na cama ao lado, já dormia — um dos pezinhos para fora da coberta, como sempre. Valentina também estava deitada, o celular escondido sob o lençol. A luz fraca da tela iluminava seu rosto e seus olhos muito abertos.
Pesquisou de novo:
“como saber se alguém gosta de você só pelo olhar”
“sinais sutis de interesse”
“ela é casada, mas parece diferente comigo?”
A cada link clicado, seu coração parecia bater mais rápido. Trechos como “contato visual prolongado”, “mudança no tom de voz” e “atenção especial fora do comum” a faziam lembrar de cada segundo do encontro daquela tarde. A mão de Verena apontando para a tela do relatório. O modo como se inclinava, ligeiramente mais próxima. O sorriso, pequeno, mas genuíno.
Ela suspirou e abriu o Instagram. Foi direto no perfil profissional de Verena: @verena.castilho
Fotos no plenário, em reuniões, em eventos. Sempre séria, sempre imponente. Um vídeo dela discursando na tribuna. Aquele mesmo vídeo que ela já havia visto três vezes. A fala firme, a resposta atravessada ao deputado que fez um comentário homofóbico:
“Deputado, se quiser, eu mesma te dou uma aula prática de masculinidade. Vai ser breve, mas vai doer.”
Valentina apertou o play, só para ouvir de novo aquela voz. Quente, segura, que arrepiava a espinha. Seu rosto se iluminou com um sorriso involuntário. Era errado, era estranho, mas era inevitável.
Rolando para baixo, ela viu uma postagem marcada: Silvia Alencar. Clicou.
@silvia.alencar.adv — perfil privado.
O estômago deu um leve giro.
Trocou de aplicativo. Procurou no Facebook.
Silvia apareceu entre os primeiros resultados. Perfil aberto.
Era claramente um perfil mais profissional — postagens sobre direitos trabalhistas, dicas jurídicas, textos sobre sororidade e empoderamento. Mas ali, entre fotos de palestras e campanhas de doação, estava ela: Verena. Em uma das fotos, as duas estavam lado a lado em frente a um arco de flores, Verena com um terninho bege impecável e Silvia com um vestido azul longo e elegante. O olhar delas uma para a outra era cheio de amor.
“2 anos do nosso sim. Que o respeito siga sendo nosso teto e nosso chão 💍❤️”
Valentina ficou olhando. Longamente.
Passou o dedo devagar pela tela, contornando o rosto de Verena na foto, e depois o de Silvia. Sentiu algo apertar dentro do peito — uma mistura de inveja, confusão e culpa.
Ela queria estar ali. Queria sentir aquele tipo de certeza. Mas o que tinha era só silêncio.
Uma lágrima solitária escorreu pela lateral do rosto. Ela não enxugou. Apenas bloqueou o celular, virou-se de lado, e ficou ali, no escuro, com os olhos bem abertos, como se procurasse uma saída que não existia.
ALESP – Gabinete do Deputado Augusto Lopes | Aproximadamente 13h20
Verena estava sentada de frente para o deputado Augusto Lopes — um homem de voz grossa, barriga proeminente e uma habilidade assustadora de parecer simpático até enquanto tramava coisas escusas. Era do tipo que usava gravata verde-limão sem nenhum constrangimento.
A sala era abafada, e o ar-condicionado zumbia com preguiça. Na mesa, uma pasta azul com um carimbo vermelho: PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NO PROGRAMA HABITAR CIDADE.
— Se a gente conseguir mexer no artigo 5º, como você sugeriu — disse Augusto, com a caneta balançando entre os dedos —, a liberação da verba da reurbanização vai cair direto na conta do instituto, sem precisar passar pela Secretaria de Infraestrutura. Vai ser mais “dinâmico”, digamos assim.
Verena, com as pernas cruzadas, os olhos escondidos atrás dos óculos escuros e a expressão fria, assentiu levemente. Usava um terninho grafite sobre uma camisa azul-marinho, e tinha trocado os saltos por mocassins — sinal de que o dia prometia ser longo.
— E a papelada? — ela perguntou. — Precisa estar impecável. Sem margem pra CPI, sem margem pra curiosos.
— Claro, claro. Já falei com a Graziella do jurídico. Ela vai cuidar da linguagem. Aquilo vai parecer mais inofensivo que campanha de vacinação.
Verena respirou fundo. Sentia o peso das últimas decisões prensando os ombros. Aquilo já era o primeiro passo concreto. Ela tinha assinado o memorando de apoio no dia anterior — e agora, aquilo era real.
Augusto continuava falando. Sobre como seria a prestação de contas, sobre os nomes que precisariam constar como “parceiros locais”, sobre a imprensa. Mas Verena já não escutava direito. Um zunido tomava conta dos seus ouvidos, como se a consciência tentasse chamar atenção.
Verena saiu da sala de Augusto. Os corredores da Assembleia estavam movimentados — alguns assessores corriam, outros cochichavam em cantos estratégicos. O cheiro de café requentado vinha do fundo do corredor.
Ela ia em direção ao elevador quando parou por instinto. Ouviu uma risada. Aquelas que não combinam com política, sabe? Era leve. Adolescente. Quase uma bolha de ar flutuando no ambiente sisudo.
Virou o rosto na direção do som.
Valentina estava ali, junto ao bebedouro, com um copo plástico na mão. Ria de algo dito por um estagiário magro, de cabelo desarrumado e crachá torto no pescoço. Ele imitava alguma coisa — talvez um político, talvez um professor. Valentina deu uma leve palmada no ombro dele, como se pedisse que parasse, mas ria mesmo assim. Seus olhos brilhavam. Estava de calça jeans clara e uma camisa listrada em azul e branco. Nada chamativo, mas para Verena, naquele instante, tudo pareceu em câmera lenta.
O estômago se contorceu.
Uma fisgada, inesperada. Como se tivesse levado um tapa do próprio ciúme.
Valentina nem a viu. Continuava ali, se servindo de água, rindo com o colega. Verena ficou parada, imóvel por um segundo. Sentiu o sangue subir ao rosto. Seu coração batia mais rápido, como se o corpo soubesse que aquela reação não era racional. Nem apropriada. Nem aceitável.
— Verena? — disse Augusto, atrás dela. — Você me ouviu? Eu disse que a votação pode ser puxada pra próxima quinta.
Ela virou o rosto, ainda sem processar direito. Forçou um aceno.
— Sim... ouvi. Quinta. Ótimo.
Mas seus olhos voltaram — involuntariamente — para a cena do bebedouro. Para Valentina. Para o sorriso leve que ela nunca recebia dentro do gabinete. Para a naturalidade de quem ainda era livre.
E então, como se a realidade caísse sobre ela de novo, caminhou com pressa até seu gabinete. Abriu a porta com um puxão seco. Fechou. Encostou-se atrás dela e apertou os olhos com força.
Já não sabia se o que sentia era ciúme, culpa, ou apenas o início do fim de algo que nunca deveria ter começado.
O estômago ainda revolto, a garganta seca e uma pressão que latej*v* nas têmporas. Verena fechou a porta do gabinete com força demais — o barulho ecoou pelo corredor. Mal teve tempo de respirar. Uma onda de sangue pareceu subir pelas pernas, esquentar o rosto, apertar o peito.
Ela não sabia o que estava fazendo. Só sabia que precisava ir até lá.
Num impulso cego, girou nos calcanhares e saiu, os passos marcando o chão com violência. Os olhos estavam fixos à frente, como se houvesse um destino claro. Como se cada passo fosse para salvar algo que ainda não tinha nome.
No sentido oposto, Rafaela vinha andando, rabiscando algo num caderninho. Quando viu a amiga avançando com o olhar transtornado, franziu a testa.
— Eita… onde é o incêndio? — murmurou, saindo do caminho.
Verena passou direto, como se nem a tivesse visto.
— Verena! — chamou, um pouco mais alto.
Mas nada.
Rafaela, desconfiada, girou nos calcanhares e foi atrás.
Dobrou a esquina do corredor e então viu.
Verena estava parada a poucos metros do bebedouro. Estática. Os ombros rígidos, as mãos fechadas ao lado do corpo. Como se cada célula estivesse gritando algo que ela se obrigava a ignorar.
Valentina e o estagiário — o magrelo de cabelo desgrenhado, que todos chamavam de Léo — calaram-se no ato. A moça ainda segurava o copo de água pela metade, e seu sorriso esmaeceu como uma vela soprada.
Verena respirou fundo. Não podia sair correndo agora. Não podia dizer o que realmente pensava. Então, como quem tenta se recompor depois de quase ser atropelada por si mesma, forçou uma expressão de falsa naturalidade.
— Valentina — disse, a voz baixa mas firme. — Por acaso você já finalizou o esboço do relatório da comissão de educação?
A moça pareceu surpresa, mas balançou a cabeça, afirmando:
— Já sim, deputada. Posso levar até a sala, se preferir...
— Ótimo. Leve assim que puder — interrompeu Verena. — Quero ver como está a estrutura do texto.
Enquanto falava, pegou um copo plástico, encheu de água no bebedouro — a primeira vez que fazia isso em todos os seus anos na ALESP.
Rafaela assistia tudo alguns metros atrás, de braços cruzados e expressão atônita.
Verena Castilho. No bebedouro. Pedindo relatório em plena zona de dispersão dos estagiários.
Era oficial. O negócio estava saindo do controle.
Gabinete de Verena – 15h20
O silêncio entre as duas era quase palpável. Rafaela fechou a porta atrás de si com firmeza, deixando o mundo lá fora por conta própria.
Verena encostou-se à mesa, sem saber o que dizer. Enchia o copo de água de novo, só por fazer alguma coisa com as mãos.
Rafaela cruzou os braços e respirou fundo, antes de disparar:
— Eu te sigo até o corredor pra ver você parada igual uma estátua no meio da passagem, encarando a menina como se ela tivesse cometido um crime?
Verena tentou desviar o olhar.
— Eu só pedi o relatório. Que diferença tem?
— Tem a diferença de que você parecia uma mãe brava flagrando a filha com o namorado. Verena, pelo amor de Deus!
A deputada ficou em silêncio.
— Você se escuta? — continuou Rafaela, agora com um tom mais duro. — Saiu igual um foguete, cega. Eu achei que alguém tivesse morrido. Você não tá mais pensando.
— Eu sei que foi impulsivo — murmurou, quase sem voz.
— Impulsivo é comer um chocolate antes do almoço, Verena. Isso aí foi cênico. Foi ridículo. E não adianta vir com essa cara de mártir agora.
Verena mordeu o lábio inferior, como fazia sempre que sentia a verdade lhe rasgando por dentro.
— Eu tô tentando... controlar.
— TÁ tentando? Desde quando? Porque até onde eu lembro, você prometeu pra Silvia que ia procurar ajuda. Psicóloga, terapeuta, padre, qualquer coisa. E até agora, nada. Você se olha no espelho?
Verena engoliu seco.
— Eu tô indo aos poucos. Não é tão simples...
— Não é? Sabe o que também não é simples? Enganar a mulher que tá ao seu lado há dez anos. Mentir pra todo mundo no gabinete. Colocar a carreira inteira em risco por uma menina de 16 anos.
A frase bateu como um soco. Verena desviou o olhar. A vergonha pesava mais que qualquer desvio de verba.
— Ela não fez nada, Rafa.
— Eu sei. Quem tá fazendo é você.
O silêncio durou longos segundos.
Foi interrompido por uma batida na porta.
Verena congelou.
Rafaela foi quem respirou fundo e caminhou até lá. Abriu. Valentina estava com uma pasta fina na mão, o cabelo levemente bagunçado do vento da janela do corredor.
— Aqui o esboço do relatório, deputada...
— Pode deixar comigo, Valen — disse Rafaela, com um sorriso educado, mas neutro. — Depois eu mesma olho com você, tá bem?
Valentina pareceu hesitar por um segundo, mas assentiu.
— Tudo bem... obrigada.
Assim que a porta se fechou, Verena ficou olhando para o chão. Rafaela se aproximou, jogando a pasta sobre a mesa com leveza, mas firmeza.
— Você quer mesmo passar a vergonha de perder tudo por causa disso?
Verena não respondeu.
— Então faz alguma coisa. Antes que não tenha mais volta.
ALESP – Sala de apoio dos estagiários | Por volta das 16h
Valentina voltou à sala com as bochechas levemente coradas, segurando o relatório nas mãos. O menino com quem ela conversava antes — Léo, do segundo ano de Administração — ainda ficou um tempo parado na porta, sem entender bem o que tinha acontecido. Ela também não sabia explicar.
Sentou-se devagar à mesa, o coração batendo um pouco mais rápido que o normal.
— Que foi isso? — perguntou Léo, tentando quebrar o gelo. — Achei que a deputada fosse puxar a gente pelos braços!
— Não... imagina... — murmurou Valentina, tentando dar um sorriso. — Ela só quis... ver um relatório mesmo.
Mas por dentro, tudo doía.
Era mentira. Ela sabia que aquilo não era só sobre o relatório. A forma como Verena tinha chegado, o jeito que os olhos dela atravessaram os dois feito faca quente na manteiga... não era normal. Não era. E aquilo bastava pra embaralhar tudo de novo.
Fingindo que precisava ir ao banheiro, Valentina saiu da sala e caminhou até o corredor mais vazio. Tirou o celular do bolso, com as mãos tremendo, e abriu o bloco de notas. Começou a digitar.
"Ela me olhou como se... sei lá. Como se estivesse brava comigo, ou com ele. Mas por quê? É só minha chefe. Casada. Fria. Impossível. Mas às vezes..."
Apagou tudo.
Queria conversar com Carol, mas se sentia envergonhada. E se estivesse vendo coisa onde não tinha? E se estivesse louca? Mas então... por que Verena mudava de tom só com ela? Por que os olhares demoravam mais tempo do que deveriam? E por que, mesmo agora, seu corpo parecia elétrico?
Valentina encostou as costas na parede do corredor, respirando fundo. Sabia que ainda precisava entregar o relatório mais tarde. Mas, no momento, só queria desaparecer.
Voltou pra sala com passos lentos.
Léo já estava distraído em outra conversa. Ela se sentou em silêncio, abriu a planilha do relatório de novo, mas não conseguia ler uma única linha. Seus olhos voltavam sempre à porta fechada do gabinete.
Naquela hora, tudo o que ela conseguia pensar era: “Por que me olhou daquele jeito?”
Quarto de Valentina – por volta das 23h40
O ventilador girava devagar, jogando um vento morno contra o teto baixo do quarto. O som suave da respiração da irmãzinha de dez anos, dormindo na cama ao lado, era a única coisa que quebrava o silêncio absoluto da casa.
Valentina estava deitada de lado, encolhida sob o lençol fino, com o celular brilhando em frente ao rosto. O estômago parecia embrulhado havia horas. Tocou a tela. A notificação era de Carol, mandando um meme idiota sobre professores que gritam com a sala toda por causa de dois alunos. Ela não conseguiu rir. Mas respondeu.
VALENTINA
(digitando)
“Tá acordada?”
A resposta veio em segundos.
CAROL
“Lógico. Pq?”
Valentina hesitou. Por alguns minutos, só ficou encarando o teclado, sem saber como começar. Então, digitou.
VALENTINA
“Carol… se eu te contar uma coisa, vc promete não rir nem ficar me julgando?”
CAROL
“Menina, lá vem 🤨 juro que não. Manda.”
Valentina sentiu o coração bater mais forte. Os dedos tremiam. Apagava e reescrevia a frase. Até que foi.
VALENTINA
“Acho… acho que tô gostando de alguém.”
Três pontinhos apareceram no canto da tela. Depois, sumiram. Depois voltaram. E sumiram de novo.
CAROL
“QUEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE”
Valentina riu com o nariz, mas o peito doía. Era um riso vazio, nervoso.
CAROL
“VOCÊ??? 😳 finalmenteooooo! Pelo amor de Deus, tava na hora né?? Quem é?? Conta tudo!”
VALENTINA
“Não posso.”
CAROL
“Como assim não pode? Agora vai me deixar maluca?”
Valentina digitou devagar, com o olhar perdido no teto.
VALENTINA
“Porque é errado.”
Mais uma vez, o silêncio. Carol demorou a responder.
CAROL
“Errado por quê? A pessoa é comprometida?”
Valentina hesitou. Respirou fundo. Seus dedos começaram a digitar, mas pararam. A verdade é que ela mesma ainda não sabia dizer com todas as letras. Sabia que sentia. Que pensava nisso o tempo todo. Que quando via aquele sorriso... aquele jeito de falar… Era como se o chão sumisse.
Mas sabia também que não podia. Porque não era só uma paixão comum. Era tudo errado. Pela idade, pelas circunstâncias, e... porque aquela pessoa era uma mulher.
Mas ela não escreveu isso.
VALENTINA
“Não é pra mim, Carol. Eu fui criada diferente, você sabe... minha mãe, meu pai...”
CAROL
“Valen… você tá se ouvindo? Desde quando gostar de alguém virou crime?”
VALENTINA
“Eu não sei se é gostar. É só… eu penso nessa pessoa o tempo todo. É tipo... ver ela sorrindo me dá um negócio aqui dentro. E quando ela fala comigo... meu Deus. Parece que o mundo para. Mas quando lembro quem ela é, dá vontade de me esconder.”
Valentina apertou os olhos, e só então percebeu que estava chorando. Silenciosamente. Uma lágrima escorreu e caiu no travesseiro. Seu coração pesava como nunca.
CAROL
“Valen... você tá apaixonada.”
A frase ali, escrita com tanta simplicidade, a fez engolir seco. Era como se a palavra tivesse finalmente ganhado forma. E doído. Sim, ela estava apaixonada. E isso a aterrorizava.
CAROL
“Não sei quem é. Mas eu conheço você. E você nunca falou assim de ninguém. Então não se maltrata, tá? Mesmo que seja confuso… o que você sente não é feio. Não pode ser feio sentir de verdade.”
Valentina encostou o celular no peito, os olhos marejados mirando o teto. Sabia que Carol tinha razão. Mas isso não diminuía a culpa.
Nem o medo.
Apartamento de Verena – Quarta-feira à noite, por volta das 23h35
A casa estava quieta demais. O tipo de silêncio que amplifica os pensamentos. Silvia já dormia, ou pelo menos fingia. Tinham trocado poucas palavras desde o jantar. Beijos curtos, olhares cansados, gestos automáticos. Nada do que um dia já foram.
Verena deixou o quarto dizendo que precisava “responder uns e-mails urgentes” — desculpa conveniente pra se livrar do peso da presença da esposa. Já fazia semanas que isso se repetia. No fundo, nem ela sabia o que procurava nesses momentos sozinha.
Descalça, foi até a cozinha e abriu a garrafa que Silvia tinha deixado pela metade no jantar. Um Casillero del Diablo, vinho chileno honesto, que cumpria bem o papel de embriagar sem parecer barato demais.
Pegou a taça e foi pra sala. Jogou-se no sofá de moletom velho e camiseta de campanha desbotada. A televisão estava desligada. Não queria barulho. Queria tortura mental.
Pegou o celular. Primeiro, quase por reflexo, abriu o Instagram. Não queria, mas abriu.
Começou por seu próprio perfil político, rolando distraída pelas últimas postagens: uma entrega de verba para a saúde, uma reunião com lideranças da educação. Sorrisos falsos. Filtros sutis. Nada real.
Depois clicou no perfil de Silvia Alencar. Estava lá, aberto, como sempre. As fotos bem tiradas, os tons suaves, aquele cuidado que só Silvia tinha com os detalhes. Os comentários cheios de elogios, os stories sempre discretos, mas com afeto.
E então viu.
A foto do casamento. Ela já tinha visto antes, claro — tinham postado juntas. Mas agora... agora doía. Estavam lado a lado, abraçadas, com aquele sorriso de quem ainda acreditava em para sempre. Verena de blazer branco e camisa de gola de renda. Silvia com um vestido longo e leve, com um buquê pequeno nas mãos.
Verena apertou os lábios. A taça tremeu levemente em sua mão. Queria aquela felicidade de volta. Mas nem sabia quando ela se foi. O que exatamente tinha mudado? Quando?
Fechou o aplicativo.
Abriu o Spotify. Seus dedos pairaram por um segundo sobre a tela, até escreverem:
"You're Beautiful – James Blunt"
Colocou os fones.
"My life is brilliant..."
A melodia entrou como uma facada doce. E o vinho, já na segunda taça, fez seu trabalho, amortecendo as barreiras da consciência.
"You're beautiful, you're beautiful, you're beautiful, it's true..."
Sem pensar, abriu o WhatsApp.
Valentina Moraes.
O nome apareceu como uma sentença.
Clicou. A imagem de perfil era simples: Valentina em frente a uma igreja, vestida com um vestido leve, modesto, azul claro. Um sorriso sereno, quase puro.
Verena deu zoom no rosto da menina. Aqueles olhos cor de mel, o brilho juvenil que ela não via mais em ninguém — talvez nunca tivesse visto de verdade em lugar algum.
Sua boca abriu levemente. Os olhos marejaram.
— Eu tô apaixonada por você, Valentina... — sussurrou, incrédula. A frase saiu como uma confissão arrancada à força de dentro do peito. — Como? Por quê?
Encostou a taça na mesa de centro, tentando conter o tremor nas mãos. O vinho não ajudava mais. Agora tudo doía.
Fechou os olhos. Uma lágrima escorreu lentamente, sem barulho. Fria. Tensa. Uma lágrima de verdade.
O rosto de Valentina ainda estava na tela. Inocente. Intocado.
Verena apertou o celular contra o peito, afundando-se no sofá.
"But it's time to face the truth... I will never be with you."
E ali, naquele contraste entre o que era e o que nunca poderia ser, ela adormeceu.
O celular repousando sobre seu peito. A música ainda nos fones.
E o rosto de Valentina, impresso como uma cicatriz na mente.
Apartamento de Verena e Silvia – Quinta-feira, por volta das 6h30 da manhã
Silvia acordou devagar. O sol ainda não tinha invadido completamente o quarto, mas a claridade suave que entrava pelas frestas da cortina denunciava o novo dia. Viu o espaço ao lado da cama vazio, como já estava se acostumando a ver. Suspirou, cansada.
Não foi surpresa.
Sentou-se na beira da cama e ficou alguns segundos encarando o chão. Prendeu o cabelo com um elástico largado sobre o criado-mudo, calçou os chinelos e foi ao banheiro. Lavou o rosto sem pressa, passou água nos pulsos, como se aquilo pudesse amenizar o incômodo que vinha do peito — aquele nó que morava ali, entre o esterno e a garganta.
Ao sair, foi direto pra sala.
E então parou.
A cena diante dela trouxe um déjà vu doloroso.
Verena estava largada no sofá. A cabeça pendia levemente pro lado, os fones ainda enrolados nos ombros, o celular quase escorregando entre os dedos. A garrafa de vinho chileno, quase vazia, repousava sobre a mesinha de centro. O mesmo cenário, quase idêntico ao pesadelo real que viveram dias atrás, quando ela a encontrou cercada de garrafas, cinzeiros e mágoas.
Dessa vez não havia cigarro. Mas Silvia nem sabia se isso era um consolo.
Uma angústia quente subiu do estômago ao peito. A cabeça latejou. Ela estava cansada. Cansada de tentar. Cansada de pedir. Cansada de amar sozinha.
Seguiu pra cozinha em silêncio, lutando contra o choro, contra a frustração, contra a sensação de estar presa num looping que não acabava nunca. Queria entender onde tinha errado. Em que momento tudo virou isso. Será que não dava mais? Será que só ela ainda tentava?
Pegou um copo pra tomar água. Mas seus dedos tremeram. E sem perceber, a mão escapou. O vidro caiu no chão e se espatifou.
O barulho ecoou como uma explosão dentro da casa.
Silvia ficou imóvel por um segundo, como se o som tivesse rompido uma última camada de controle.
Da sala, veio a voz sonolenta, arranhada:
— Sil...? — Verena chamou, acordando no susto. — Que foi isso?
Ela apareceu na porta da cozinha segundos depois. Descalça, os cabelos bagunçados, a camiseta amarrotada, os olhos fundos. Ainda estava meio zonza. O susto, o vinho, o peso da noite anterior — tudo misturado.
— Que aconteceu? Você se machucou?
Verena tentou se aproximar, mas Silvia levantou uma das mãos no ar, firme:
— Não pisa aqui, pelo amor de Deus — disse num tom direto, pegando a vassoura que ficava quase atrás da geladeira.
Verena parou, incerta.
— Deixa que eu te ajudo...
— Não. — Silvia foi ríspida. Não gritou, mas o tom seco cortou como navalha. — Não precisa. Você descalça e ainda meio bêbada só vai piorar as coisas.
— Eu não tô bêbada...
Silvia parou por um segundo, ajeitou os cacos maiores com a pá e soltou um sorriso triste, sem olhar pra ela.
— Verena... não é a primeira vez. Você não precisa mentir.
A frase foi um soco no estômago.
Verena respirou fundo, engolindo seco. Não sabia o que dizer. Queria explicar, justificar, dizer que não era sobre Silvia, que ela só... precisava de silêncio, de um pouco de anestesia emocional. Mas não havia palavras certas. Nem ela sabia mais o que sentia.
Tentou se aproximar mais uma vez, mas Silvia se levantou, desta vez com mais força na voz:
— Por favor, Verena. Sai daqui. Me deixa limpar isso. Eu tenho uma reunião com um cliente às oito, e não posso me atrasar.
— Sil...
— Verena — interrompeu, mais dura do que ela mesma esperava —, por favor. Só vai. Me deixa resolver pelo menos isso.
Verena ficou parada por um instante, como se ainda esperasse um gesto de recuo, de afeto, qualquer coisa que indicasse que ainda havia espaço. Mas não veio nada. Só o silêncio. E Silvia de costas, varrendo os cacos do chão como quem tenta juntar os restos de um casamento que não consegue mais sustentar.
Devastada, Verena virou devagar e saiu da cozinha.
Não disse nada.
Porque, no fundo, sabia que merecia.
...
O motor roncava baixo, quase abafado pelo som distante do trânsito típico de uma manhã paulista. O rádio estava desligado. O silêncio, cortado apenas pelas buzinas de longe, preenchia o carro como uma névoa espessa. Verena mantinha as mãos firmes no volante, embora os dedos estivessem gelados.
Estava impecável, ao menos por fora. O blazer escuro, a camisa social bem passada, a maquiagem sutil — máscara perfeita da mulher pública, da deputada estadual que todos viam como decidida, firme, no controle.
Mas por dentro, tudo era caos.
O GPS indicava o caminho habitual: ALESP, quarenta e dois minutos com o trânsito daquele horário. Mas ela não seguiu a rota. Num impulso súbito, quase irracional, virou à direita na avenida seguinte. O coração acelerou, como se o próprio corpo soubesse que algo fora da rotina estava prestes a acontecer.
Sem pensar muito, pegou o celular. A mão tremeu levemente enquanto buscava um nome antigo nos contatos.
Rodrigo Lemos.
Colega dos tempos de ensino médio. Tinham perdido o contato por alguns anos, mas soube por uma amiga em comum que ele se tornara terapeuta. Nunca pensou em procurá-lo. Achava que, se algum dia fizesse terapia, escolheria alguém completamente alheio à sua história. Mais neutro. Menos... íntimo.
Mas agora não havia tempo pra racionalizar. Se não ligasse naquele instante, sabia que desistiria. Que voltaria à Assembleia como se nada estivesse acontecendo. E aquilo estava matando ela por dentro.
Respirou fundo. Ligou.
Chamou duas vezes.
— Alô? — a voz dele soou calma, um pouco rouca. Ainda parecia acordando.
— Rodrigo? É... é a Verena. Castilho.
Um silêncio breve do outro lado. Depois, uma risada surpresa:
— Verena? Nossa. Quanto tempo. Tá tudo bem?
Ela hesitou. Os olhos fixos na rua à frente, mas vendo qualquer coisa, menos os carros.
— Não. Não tá. E eu não sei muito bem por que tô ligando... só que, se eu não fizesse isso agora, não ia fazer nunca. Você ainda atende?
Rodrigo entendeu o tom. O peso nas entrelinhas.
— Atendo, sim. Quer vir hoje?
Verena assentiu, mesmo sabendo que ele não podia vê-la.
— Agora. Se puder.
Ele deu um endereço simples, uma sala em Pinheiros. Nada sofisticado. Era tudo o que ela precisava. Desligou e seguiu o novo destino, sentindo uma sensação estranha se instalar no peito.
Não era paz. Ainda não.
Mas era uma tentativa.
Ela olhou pelo retrovisor, como se checasse quem ela estava deixando pra trás. Silvia. O casamento que escapava entre os dedos. A carreira que exigia versões de si que ela não sabia mais sustentar. E Valentina.
Valentina.
Sentiu um calafrio, como se o próprio nome da menina tivesse vida. Tentava convencer a si mesma de que procurava ajuda pra salvar seu casamento, sua estabilidade, sua imagem. Mas no fundo, no silêncio onde não se mente, ela sabia o que realmente queria entender.
Queria saber por que amar Valentina a assustava tanto.
Queria descobrir se havia um jeito de calar aquilo dentro dela — ou se, no fundo, esperava que alguém a dissesse que não precisava calar mais.
Ela não sabia como terminaria aquela manhã. Mas pela primeira vez em meses, estava fazendo alguma coisa. Estava se movendo, mesmo que tropeçando, mesmo que machucada.
Porque se não desse certo...
Se não conseguisse mudar o curso...
Ela não teria forças pra lutar mais.
E naquele instante, entre uma rua e outra, Verena apertou o volante com força, e sussurrou baixinho, sem perceber:
— Por favor... só me ajuda a entender.
Consultório de Rodrigo – Sexta-feira, 8h40 da manhã – Pinheiros, São Paulo
A rua era arborizada, com prédios baixos e cafés ainda abrindo as portas. Verena estacionou o carro alguns metros antes. Precisava andar. Precisava sentir os passos, o chão, o ar da manhã. O coração seguia acelerado, mas agora havia uma pontinha de algo novo ali… talvez vergonha. Talvez medo.
O prédio era discreto, comercial, com recepção modesta e corredores silenciosos. No quarto andar, encontrou a porta com uma plaquinha pequena: Rodrigo Lemos – Psicólogo Clínico | CRP 06/...
Ela bateu leve. A porta abriu segundos depois.
Rodrigo era exatamente como se lembrava — alto, cabelo castanho claro já com alguns fios grisalhos nas laterais, e um sorriso gentil, que não parecia ter pressa.
— Verena... entra. — Ele abriu espaço, indicando o interior da sala.
O consultório era aconchegante. Uma poltrona grande de couro escuro, uma outra menor à frente, uma mesa discreta no canto com livros e alguns blocos. Um difusor soltava um cheiro leve de lavanda. Não havia janela, mas a luz era amena, bem pensada. Nenhum som além do leve ruído de um ar-condicionado.
Verena olhou em volta, incerta. Rodrigo gesticulou com delicadeza:
— Pode sentar onde preferir. Quer água? Café?
— Só... só água, talvez — respondeu, num tom quase sussurrado.
Ele entregou um copo e sentou-se na outra poltrona, cruzando as pernas com tranquilidade. Pegou um caderninho e uma caneta, mas não abriu — apenas segurou nas mãos.
— Eu sei que não é fácil procurar ajuda. Então... só o fato de você estar aqui já diz muito.
Verena respirou fundo. Segurava o copo com força, como se fosse o único ponto de apoio no momento.
— Eu... eu não sei direito como isso funciona. Não tenho um objetivo claro. Só... eu tô me sentindo à beira de alguma coisa. E não no bom sentido.
Rodrigo assentiu, ouvindo com atenção.
— Tudo bem não saber. A gente pode descobrir juntos. Me conta, o que te trouxe até aqui hoje?
Ela desviou o olhar. As palavras pareciam enormes, pesadas.
— Eu... ontem à noite bebi. Não foi a primeira vez. Mas... não era pra ser assim. Eu dormi no sofá. Silvia me encontrou de manhã. Disse que tava cansada. Que não queria mais lutar sozinha. E eu não consegui dizer nada. Fiquei ali, parada, sem saber o que fazer.
Silêncio. Rodrigo esperou, sem interromper.
— E não é só isso — ela continuou, os olhos começando a marejar. — Eu... eu tô... com a cabeça completamente ferrada. Tem uma menina... uma estagiária. E eu não posso... eu não devia. Mas eu... acho que tô... — ela travou. — Tô apaixonada por ela.
Rodrigo manteve a postura serena, sem demonstrar surpresa ou julgamento.
— Isso te assusta?
— Muito. — A resposta veio na hora. — Eu sou casada. Com uma mulher incrível. Que... que eu destruí, aos poucos. E agora... agora tem essa garota. E ela não sabe. E eu tô me sentindo a pior pessoa do mundo.
Rodrigo apoiou os cotovelos nos joelhos, se inclinando levemente para frente, mantendo o tom calmo:
— Você sente culpa por estar sentindo algo por outra pessoa?
— Claro que sim! Eu não sou uma adolescente perdida. Eu sou uma deputada, uma mulher casada. Isso não era pra acontecer. Não pode acontecer.
— E ainda assim, aconteceu. — Ele disse com firmeza, mas sem dureza.
Verena o olhou, como se esperasse uma repreensão. Mas ele só a olhava com empatia.
— Você sabe quando começou a sentir isso?
— Eu... não sei. Talvez desde a primeira vez que vi ela sorrir. Mas eu neguei. Ignorei. Até que... até que não dava mais. Ela nem sabe. E eu jamais faria nada, Rodrigo. Eu juro. Mas eu não consigo parar de pensar nela.
Rodrigo respirou fundo.
— O que você sente por Silvia, hoje?
Verena demorou. Olhou para o copo, para o chão, para as próprias mãos.
— Eu... eu amo ela. Mas é como se... como se fosse um amor doente agora. Eu me perdi. E acho que ela também. A gente vive na mesma casa, mas em mundos diferentes. Ela tenta. Eu vejo que ela tenta. Mas eu tô tão quebrada por dentro que... que não consigo mais voltar.
Rodrigo assentiu, escrevendo poucas palavras.
— Verena, sentir-se dividida entre dois sentimentos, duas pessoas, não faz de você uma má pessoa. O que está me mostrando aqui é que você está em conflito, e esse conflito vem justamente porque você se importa. Com Silvia. Com sua imagem. Com essa menina, Valentina, pelo que entendi.
Ela fechou os olhos, como se o nome pesasse.
— Eu tô cansada de fugir, Rodrigo. Eu quero... eu quero entender o que tá acontecendo comigo. Porque eu não aguento mais viver nessa guerra interna.
Rodrigo se recostou levemente, mudando o tom com suavidade.
— Talvez essa seja a primeira vez que você se permite olhar pra tudo isso sem julgar tanto. Aqui, você não precisa fingir estar no controle. A gente pode construir esse espaço juntos. Aos poucos. No seu tempo.
Verena mordeu o lábio, emocionada, tentando conter as lágrimas que teimavam em cair.
— E se não tiver conserto? — ela murmurou. — Se eu não conseguir mais ser quem eu era?
Rodrigo respondeu com firmeza, mas com gentileza:
— Talvez você não volte a ser quem era. Mas pode se tornar alguém nova. Mais honesta com você mesma. E isso, às vezes, é o melhor que podemos fazer.
Ela ficou em silêncio. Respirando. Absorvendo.
E naquele instante, pela primeira vez em muito tempo, Verena sentiu que havia uma saída.
Não seria fácil. Nem rápido. Mas era uma chance.
Uma chance real.
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – Sexta-feira, 10h52 da manhã
O carro preto parou em uma das vagas reservadas ao lado do prédio principal da Alesp. Verena desligou o motor e permaneceu alguns segundos com as mãos sobre o volante. O ar-condicionado ainda soprava devagar, mas ela sentia a pele fria, suada. O corpo parecia ter relaxado depois da sessão com Rodrigo, mas a mente... ainda era um campo de guerra.
A conversa rodava inteira em sua cabeça — os olhares, as pausas, as palavras ditas e engolidas. Pela primeira vez, alguém a escutou sem filtros, sem máscaras, sem o peso de ser “a deputada Verena Castilho”. E isso mexeu com ela de um jeito que ainda não sabia nomear.
Quando finalmente saiu do carro, ajeitou os cabelos com os dedos, prendeu com um grampo lateral, retocou o batom no retrovisor e caminhou em direção à entrada como se voltasse ao palco de um teatro do qual não lembrava bem o roteiro. A roupa — blazer escuro, calça de alfaiataria, salto médio — a embalava de novo na personagem que aprendera a interpretar todos os dias.
Os corredores da Alesp estavam em ritmo normal para uma sexta-feira: telefonemas apressados, assessores com pastas, vozes cruzando em reuniões rápidas. Verena subiu direto até o gabinete.
Gabinete da Deputada Verena Castilho – 11h03
Ao entrar, foi recebida por Rafaela com um olhar desconfiado.
— Uau... bom dia, né? — Rafa cruzou os braços, erguendo uma sobrancelha. — Achei que ia dar plantão no sofá hoje.
Verena forçou um sorriso e tirou os óculos escuros. Os olhos ainda estavam levemente vermelhos.
— Tive uma reunião — respondeu, tentando parecer casual.
Rafaela a olhou com mais atenção. Se aproximou devagar, em tom mais baixo:
— Tá tudo bem?
Verena hesitou. Depois assentiu.
— Fui atrás de ajuda. Um terapeuta.
Rafaela arregalou os olhos, surpresa de verdade. Por alguns segundos, não falou nada.
— Uau... Você foi mesmo?
— Fui. — Ela tirou o blazer e o pendurou no encosto da cadeira. — Era isso ou continuar afundando.
Rafaela deu um meio sorriso sincero.
— Tá. Agora sim você me deixou sem piada. — Pausou. — Tô orgulhosa de você, de verdade.
Verena olhou para a amiga. Pela primeira vez em dias, sentiu que havia alguma luz entrando naquela sala.
— Eu ainda tô um caos por dentro, Rafa. Mas... não quero continuar assim. Não quero perder a Silvia, nem me perder mais.
Rafaela assentiu. Pegou uma pasta da mesa e a estendeu.
— Aí, o caos continua te esperando. Relatórios da comissão. Reunião com a secretária da educação em duas horas. E... — abaixou a voz — Valentina tá na sala de apoio, revisando o material que você pediu ontem. Disseram que ela chegou mais cedo hoje.
Verena respirou fundo, tentando manter o controle.
— Obrigada.
Rafaela virou-se para sair, mas antes lançou um olhar firme por sobre o ombro:
— Uma coisa de cada vez, Castilho. Não volta pra fogueira achando que já sabe andar no meio das chamas.
Verena não respondeu. Só observou a porta se fechar. Depois se sentou, abriu a pasta, e pela primeira vez em muito tempo, tentou de fato se concentrar.
A tempestade dentro dela ainda estava viva. Mas, pela primeira vez... talvez houvesse um norte.
Sala de apoio – Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – Sexta-feira, 11h16 da manhã
A luz branca do teto refletia direto sobre a mesa onde Valentina apoiava os braços, em silêncio, observando as palavras na tela do notebook com uma atenção que beirava o exagero. Estava ali há pouco mais de meia hora, tempo suficiente para sentir o peso de estar naquele ambiente fora do horário habitual — como se tivesse invadido uma zona silenciosa do cotidiano.
Chegara cedo, diferente do costume. Na verdade, nem deveria estar ali antes do meio-dia. Mas naquela sexta, o colégio liberara os alunos após uma apresentação interna da Semana da Literatura — evento que ela, em outros tempos, teria amado participar com entusiasmo. Mas não hoje.
Hoje, sentia um desconforto estranho desde o momento em que acordou. Passara a aula inteira inquieta, sem conseguir prestar atenção. As palavras da Carol da noite anterior ecoavam na cabeça como se ainda estivessem no quarto:
“Você tá apaixonada por alguém.”
Ela sabia.
Sabia, e ao mesmo tempo queria negar com todas as forças. Chegou cedo porque não queria voltar pra casa. Nem ficar vagando pelas ruas. Seu corpo a trouxe até ali como se estivesse buscando respostas onde talvez não existissem.
— Cedo hoje, hein? — comentou um dos estagiários, um rapaz de cabelo alisado e pasta na mão, passando por ela com um sorriso curioso.
Valentina apenas assentiu e forçou um sorriso tímido. Não queria conversar. Não queria explicações.
Estava relendo pela quarta vez o esboço do relatório da comissão de educação — o mesmo que Verena havia solicitado na véspera. Era o tipo de tarefa que exigia concentração, mas hoje parecia servir apenas como desculpa para se manter ocupada.
A porta de vidro que dava acesso ao gabinete principal estava fechada, mas através dela, Valentina podia ver sombras, vultos em movimento. Sabia que Verena já havia chegado. Sentiu o coração acelerar como se fosse chamada a qualquer momento — e ao mesmo tempo, rezava para que isso não acontecesse.
Seus olhos desviaram para o celular sobre a mesa. Por impulso, abriu o Instagram e entrou no perfil de Verena. Não tinha fotos recentes, mas as antigas ainda estavam ali. Uma delas era do dia da posse como deputada, outra mostrava Silvia sorrindo ao lado dela. A mulher era linda. Forte. Elegante. E parecia feliz naquela época.
Valentina afastou o celular, engolindo em seco.
“Você não pode sentir isso. Não pode.”
Mas sentia.
Sentia com uma intensidade que machucava. E não entendia como tinha chegado ali.
Foi quando ouviu a porta do gabinete abrir e alguém entrar. O som breve, abafado, mas suficiente para seu corpo todo enrijecer. Instantes depois, ouviu uma voz conhecida chamando seu nome:
— Valentina? — era Rafaela, sempre direta.
Ela virou-se rapidamente.
— Oi!
— Verena pediu pra você seguir com a revisão do material da comissão. Se precisar de algo, pode falar comigo. — Rafaela sorriu de leve. Mas havia algo de mais sério no olhar.
— Tá bem, obrigada.
Rafaela a encarou por um segundo a mais do que o necessário antes de voltar para dentro. Valentina abaixou os olhos. Estava tudo errado. Estava tudo confuso.
Mas ali, sozinha naquela sala com seus pensamentos e a tela do computador, uma coisa estava clara: ela estava apaixonada. E não tinha a menor ideia do que fazer com isso.
Casa de Valentina – Tarde
O som da porta abrindo devagar fez Ana Paula levantar os olhos do tanque, onde lavava algumas roupas à mão. Achou estranho. Não era nem três e meia ainda, e Valentina raramente chegava tão cedo. Enxugou as mãos e se aproximou da sala.
Valentina já estava tirando os tênis, os passos lentos, o rosto mais abatido que o normal.
— Ué, voltou cedo hoje? — Ana perguntou, forçando um tom casual, mesmo já desconfiada de que algo não ia bem.
— É... fui mais cedo hoje, então liberaram mais cedo também. — A menina respondeu sem encará-la, deixando a mochila no canto do sofá.
Ana fez que sim com a cabeça.
— Tá com fome? Tô quase terminando de lavar ali e vou fazer um bolo de fubá...
Valentina sorriu de leve, quase por educação.
— Não, mãe. Tá tranquilo.
O silêncio se esticou. A menina foi até a cozinha e pegou um copo de água. Ana, de pé ali na sala, ainda com as mãos úmidas, a observava com um olhar que só mães têm — aquele que enxerga o que os filhos não dizem.
— Tá tudo certo, filha?
Valentina deu de ombros, girando o copo de leve entre os dedos.
— Ah... só umas coisas na cabeça, sabe? Nada demais.
— Umas coisas como?
A menina hesitou. Ficou um tempo com os olhos presos no fundo do copo, como se procurasse lá dentro as palavras certas.
— Tipo... umas dúvidas. Uns sentimentos esquisitos que aparecem do nada. A gente fica meio perdida.
Ana se sentou devagar no braço do sofá.
— Você tá se sentindo mal com alguma coisa? Brigou com alguém?
— Não... é mais tipo... quando você começa a pensar muito em alguém, e nem sabe por quê. E aí se pega lembrando da pessoa do nada. E... sei lá. — Ela falou em um tom tão neutro, tão contido, que poderia estar falando de qualquer coisa.
Mas Ana sorriu com ternura, pegando o fio da conversa.
— Ahh... então você tá começando a gostar de alguém, é isso?
Valentina corou imediatamente, riu sem graça.
— Mãe...
— Eu conheço esse rodeio, Valentina — disse Ana, agora com um sorriso leve no rosto. — Tá na idade, ué. É normal.
A garota não respondeu de imediato, mas os olhos falavam por ela. Ana percebeu a inquietação nos ombros da filha, o jeito como segurava o copo, como se quisesse dizer mais, mas algo a impedisse.
— Tá com medo? — Ana perguntou, dessa vez com mais doçura. — Medo de quê?
Valentina deu de ombros de novo.
— De não ser o certo.
Ana franziu o cenho, mas não pensou além do que lhe parecia óbvio. Achava que a filha estava apenas falando de um garoto — talvez mais velho, talvez envolvido com algo que não aprovasse. Mas nunca imaginaria que se tratava de uma mulher. Mesmo assim, respondeu com calma, a voz carregada de fé e de afeto:
— Quando é a pessoa certa, filha... colocada por Deus no nosso caminho... a gente sente no coração. Não vem com medo, nem com angústia. Vem com paz. Vem com verdade.
Valentina engoliu em seco, sentindo um aperto no peito. Pensou em falar. Em dizer “mas e se for uma mulher?”, mas não teve coragem. O coração acelerou, e ela apenas balançou a cabeça lentamente, fingindo que aquilo bastava.
— Tá bom, mãe. Eu só... tava confusa, mesmo.
Ana se levantou, passou uma mão leve nos cabelos da filha e sorriu com carinho.
— Confusão também passa, meu bem. Deus mostra o que é certo, sempre. O que for verdadeiro, ele vai confirmar no seu coração.
Valentina assentiu. A voz da mãe, mesmo sem compreender por completo, tinha um jeito de acalmar. Mas, ao mesmo tempo, um nó se formava na garganta — porque aquele coração já parecia saber exatamente o que sentia... e era justamente isso que mais a assustava.
Quarto de Valentina – Fim de Tarde
A porta se fechou devagar atrás dela. Valentina largou o celular sobre a escrivaninha, sem nem checar mensagens. O caderno da escola ainda estava aberto, mas o conteúdo da última aula parecia de outro planeta agora.
Ela caminhou até a cama e sentou-se devagar, como se o peso das palavras não ditas a empurrasse para baixo. A luz alaranjada do fim da tarde entrava pelas frestas da cortina e riscava o chão, criando uma calmaria quase cruel para o que ela sentia por dentro.
A conversa com a mãe ainda ecoava. "Quando é de Deus, a gente sente paz."
Mas o que ela sentia não era paz. Era confusão. Era arrepio. Era um desejo de negar e ao mesmo tempo uma vontade louca de entender. Como posso sentir algo assim... por ela? — se perguntava. Era difícil até colocar isso em pensamento, quanto mais em voz alta.
Jogou o corpo para trás, deitando-se na cama, os olhos fixos no teto. Um silêncio espesso preenchia o quarto, cortado apenas por um barulho distante vindo da rua e pelo leve zumbido do ventilador de parede.
Ela esticou o braço, puxando o caderno de anotações que costumava usar como diário — mesmo que raramente escrevesse algo ali. Folheou até uma página em branco e encarou a folha por longos segundos, a caneta azul parada entre os dedos.
Respirou fundo. Então escreveu:
“Não sei o que está acontecendo comigo.”
Ficou olhando aquela frase. Era simples, mas carregava tudo. A dúvida, a culpa, o medo.
Escreveu mais, como se cada letra empurrasse o peso de dentro pra fora:
“Tem alguém que eu não consigo tirar da cabeça. É errado? Eu não sei. Nunca imaginei... nunca pensei que fosse sentir isso. Mas sinto. E é por alguém que não deveria. Pelo menos, é o que eu acho. Mas se é tão errado assim, por que meu coração bate desse jeito quando ela tá perto?”
Parou. As mãos tremiam um pouco. Fechou o caderno, apertando-o contra o peito. Ficou ali, deitada, abraçada ao que acabara de escrever. O rosto começou a esquentar, e os olhos marejaram. Não chorava por tristeza apenas — chorava por não saber se podia confiar no que sentia, por não saber se teria coragem de ser sincera nem com ela mesma.
Virou o rosto para o travesseiro, escondendo o soluço que escapou baixo.
Lá fora, o sol descia devagar. E dentro dela, nascia a certeza mais assustadora de todas:
Estava apaixonada.
Fim do capítulo
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anonimo2405 Em: 08/05/2025 Autora da história
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