Um Pro Outro
Os dias se arrastavam como se o tempo tivesse perdido o ritmo.
No gabinete, as rotinas seguiam como sempre: reuniões, documentos, telefonemas, votações. Mas, por dentro, nada estava como antes. Verena tentava manter a compostura impecável, mas cada olhar de Valentina, cada sorriso sem querer, era um golpe contra suas defesas.
E Valentina... lutava em silêncio contra sentimentos que a assombravam e fascinavam na mesma medida.
O que era para ser apenas trabalho e convivência havia se tornado um campo minado de emoções reprimidas e angústias mal disfarçadas.
Tudo seguia, ao menos por fora, como sempre. Mas dentro de ambas, havia um turbilhão que crescia a cada dia.
Apartamento de Verena — 18h46
Verena abriu a porta de casa com um suspiro cansado, soltando a bolsa sobre o aparador da entrada.
A casa estava tranquila, iluminada apenas pela luz suave do entardecer que entrava pelas janelas. De longe, ela ouviu barulhos vindos do quarto e seguiu até lá, sem pressa, os saltos ecoando levemente no chão de madeira.
Encontrou Silvia diante do espelho, terminando de se arrumar.
Vestia uma saia midi bege e uma blusa azul-marinho de tecido leve, combinando com um par de brincos discretos e uma pulseira dourada fina no pulso. O cabelo, geralmente preso de forma prática, agora caía solto sobre os ombros, brilhando sob a luz. A maquiagem era sutil, mas realçava ainda mais sua beleza suave. Nos pés, usava um par de sapatos nude de salto médio, discretos e elegantes, que completavam o visual com uma sobriedade quase melancólica. No anelar esquerdo, a aliança reluzia discretamente.
Verena parou à porta, observando em silêncio por alguns instantes.
— Vai sair? — perguntou, tentando soar casual, ainda que a surpresa fosse evidente em sua voz.
Silvia virou-se, ajeitando os brincos pela última vez. Seu tom de voz, ainda que gentil, soava mais frio do que Verena estava acostumada.
— Vou à missa com a minha mãe — respondeu, com um sorriso contido. — Faz tempo que não vou... achei que seria bom.
Verena arqueou levemente as sobrancelhas, incapaz de esconder a surpresa.
Silvia raramente tocava no assunto religião desde que haviam se casado. Não por falta de fé, mas porque ambas sabiam que havia feridas ali — feridas abertas pelas críticas e preconceitos que tantas vezes ouviram de quem dizia falar em nome de Deus.
Encostou o ombro no batente da porta, cruzando os braços, tentando manter a postura.
— Você... tem ido com frequência? — perguntou, tentando não soar acusativa, mas sem conseguir esconder completamente o desconforto.
Silvia ajeitou a bolsa no ombro, os movimentos precisos, quase mecânicos.
— Não. Hoje é só... uma necessidade, eu acho. Pela primeira vez em muito tempo, quero tentar reencontrar algumas partes de mim.
As palavras, embora ditas com calma, atingiram Verena como facadas silenciosas.
Ela sabia: o que Silvia buscava reencontrar, talvez já não envolvesse mais ela.
Verena engoliu seco, sentindo o peso daquela distância crescente sufocar sua garganta. Um frio percorreu suas costas.
— Quer que eu te leve? — ofereceu, numa tentativa instintiva de se manter presente, de ainda ter algum espaço ali.
Silvia apenas sorriu de leve, um sorriso polido, e negou com a cabeça.
— Não precisa. Vou de carro com minha mãe. Já está a caminho.
Por um momento, as duas apenas se olharam. Um abismo silencioso e ensurdecedor entre elas.
Então Silvia se aproximou, depositou um beijo leve e breve na bochecha da esposa — um gesto automático, sem a antiga ternura — e saiu do quarto, os passos ecoando friamente pelo corredor.
Verena permaneceu ali, sozinha, sentindo um vazio pesado se espalhar pelo peito.
Sabia que toda aquela frieza, aquele afastamento, era culpa sua. E, ainda assim, não conseguia encontrar uma saída. Só desejava — desesperadamente — consertar tudo. Mas como, se ela mesma já não sabia onde havia se perdido?
Não havia paz. Nem em casa. Nem dentro de si.
Apartamento de Verena — 20h17
A noite parecia ainda mais silenciosa do que o normal.
Verena andava pela casa como um fantasma. Tentou assistir televisão, mas não conseguiu se concentrar. Tentou ler algo no celular, mas nada prendia sua atenção. O peso do vazio era sufocante, como se cada cômodo ecoasse a distância entre ela e Silvia.
Acabou se jogando no sofá da sala, olhando para o teto, com o celular na mão. Hesitou por longos segundos até abrir a conversa com Rafaela.
"Silvia foi pra igreja com a mãe." — digitou, sem acrescentar emojis, sem floreios.
Enviou a mensagem antes que pudesse se arrepender.
A resposta não demorou:
"Você tá me mandando mensagem só porque a tua mulher foi rezar? 😂"
"Sério mesmo, Verena? Eu aqui curtindo minha série e você aí se corroendo porque ela foi pra igreja?
Verena sorriu de canto, sem humor. Respondeu:
"Você acha engraçado."
Logo veio outra mensagem:
"Eu acho triste. E sinceramente? Você deveria ter ido também."
Verena encarou a tela por alguns segundos, digerindo aquelas palavras.
"Fala sério." — respondeu, meio irritada.
"Você sabe como as pessoas olham pra gente nesses lugares. Como julgam, cochicham."
Demorou mais dessa vez, mas Rafaela respondeu:
"Sim, eu sei. Mas também sei que ficar se escondendo só piora as coisas. Você não pode reclamar da distância dela e ao mesmo tempo fazer de tudo pra manter a distância do que ela ainda valoriza."
Verena suspirou, largando o celular no sofá. Não tinha forças para discutir. Não tinha forças para nada.
O peito doía. A mente estava exausta. E, no meio de toda aquela confusão, o rosto que surgia com mais nitidez não era o de Silvia.
Era o de Valentina.
A lembrança dos olhos castanhos, do sorriso tímido, do jeito desajeitado que tanto a desmontava.
Verena fechou os olhos, apoiando o braço sobre o rosto para esconder a própria angústia, mesmo que não houvesse ninguém ali para vê-la.
Era como estar se afogando em si mesma, sem conseguir encontrar a superfície.
Igreja Santa Isabel — 21h05 — Bairro Alto de Pinheiros
A missa havia terminado há poucos minutos, mas o grande templo ainda estava cheio de gente. Famílias se reuniam em pequenos grupos, crianças corriam entre os bancos antigos e bem conservados. As luzes douradas refletiam nos vitrais coloridos, desenhando imagens sagradas sobre o chão de mármore claro.
O teto alto, com arcos imponentes, parecia tocar o céu. O altar, ornamentado com flores brancas e douradas, exalava um perfume suave de lírios. Era uma daquelas igrejas tradicionais de bairro nobre, que carregavam no ar o peso da história e da tradição.
Silvia sentia-se estranhamente bem ali, apesar de tudo.
Tinha gostado de voltar, de se sentir parte de algo maior, ainda que alguns olhares atravessados a seguissem discretamente. Ela sabia o motivo — era esposa de Verena Castilho, a deputada que muitos ali julgavam pelas costas enquanto sorriam pela frente. Mas Silvia nunca se importou realmente. Tinha orgulho da vida que construiu, mesmo que agora sentisse as rachaduras que insistiam em crescer no silêncio.
Enquanto aguardava o pai, que tinha ido buscar o carro mais adiante, ficou parada na escadaria ao lado da mãe. As duas conversavam sobre banalidades, sorrindo com a naturalidade de quem dividia anos de cumplicidade.
Foi quando percebeu: um rapaz, talvez uns trinta e poucos anos, a observava do outro lado da rua. Não era uma encarada desrespeitosa, mas também não era sutil. Ele ajeitava a gravata enquanto lançava olhares rápidos e curiosos.
Silvia sorriu de leve, com bom humor, e comentou baixo para a mãe:
— Olha só... ainda chamo atenção.
A mãe soltou uma risada breve e deu um tapinha de leve em seu braço.
— Sempre chamou, minha filha. Só não percebia.
Silvia riu também, mas no fundo, sentiu um aperto estranho no peito.
Porque a atenção que desejava, a que realmente importava, não vinha mais de quem esperava.
Amava Verena. Ainda amava. Mas não sabia por quanto tempo mais conseguiria viver daquele jeito — como se fossem duas estranhas dividindo o mesmo teto, como se seus sentimentos fossem uma herança pesada demais para carregar sozinha.
A brisa fria daquela noite acariciou seus cabelos soltos, e ela fechou os olhos por um segundo, tentando afastar a melancolia.
Quando abriu novamente, o pai já se aproximava com o carro. A mãe lhe lançou um olhar cúmplice, como se adivinhasse os pensamentos que a filha não tinha coragem de confessar nem para si mesma.
Silvia respirou fundo, ajeitou a bolsa no ombro e desceu os últimos degraus, sem saber que aquele vazio que sentia só aumentaria nos dias que viriam.
Apartamento de Verena — 22h17
Silvia girou a chave com cuidado, empurrando a porta devagar para não fazer barulho. Imaginava que Verena estivesse dormindo — ou, quem sabe, nem em casa estivesse.
Mas assim que entrou, avistou a esposa no sofá da sala, com a televisão ligada em volume baixo. A imagem tremeluzente refletia nos olhos semicerrados de Verena, que cochilava, o queixo caído levemente sobre o peito.
Quando Silvia fechou a porta com um pequeno estalo, Verena se assustou de leve, piscando algumas vezes antes de erguer o rosto sonolento. Trocaram um cumprimento breve, quase automático, e Silvia seguiu para o quarto, já sem esperar mais nenhuma conversa naquela noite.
Deixou a bolsa sobre a poltrona, caminhou até a cômoda e sentou-se em frente ao espelho. Com movimentos delicados, retirou os brincos pequenos, colocando-os numa caixinha ao lado. Descalçou os saltos, aliviando a pressão nos pés, e ajeitou o cabelo com as mãos.
Levantou-se devagar, deslizando o zíper da saia. Estava distraída, absorta em seus próprios pensamentos, quando sentiu duas mãos firmes envolvendo sua cintura por trás.
Levou um leve susto, o coração disparando, mas logo reconheceu o cheiro, o calor, o toque. A respiração quente em sua nuca, a fizeram fechar os olhos.
— Eu não aguento mais... — Verena murmurou, a voz rouca, carregada de algo entre a culpa e o desespero.
Antes que Silvia pudesse reagir, os lábios dela deslizaram por seu pescoço, descendo para a curva dos ombros, com beijos molhados e quentes, tão intensos que fizeram a pele de Silvia arrepiar inteira. Ela mordeu o lábio inferior, querendo resistir, mas o corpo a traía — sempre traía.
Verena a virou devagar, trazendo o rosto dela para si, e sem pedir permissão, tomou sua boca num beijo urgente, de línguas que se procuravam como quem tenta se salvar de um naufrágio. O gosto do vinho da noite misturava-se ao desejo contido, e Silvia se viu apertando a nuca da esposa, puxando-a para ainda mais perto.
As mãos de Verena, impacientes, deslizavam pela pele exposta, subindo pelas costas, descendo pelas coxas, pressionando-a contra o próprio corpo como se quisesse fundi-las.
Silvia gem*u baixinho contra a boca dela, arranhando as costas de Verena com as unhas, deixando marcas que falavam mais do que qualquer palavra.
Tentava tirar a blusa da esposa entre beijos e sussurros abafados, seus dedos trêmulos tropeçando no tecido, tamanha era a urgência.
Entre bocas coladas, os sussurros se misturavam — promessas sem som, confissões sem vergonha.
Verena a conduziu até a cama, sem nunca interromper o beijo. A língua explorava, brincava, dominava — e Silvia, mesmo entre lágrimas silenciosas que ameaçavam brotar, se deixou deitar.
A blusa deslizou pelos braços com a mesma facilidade que o sutiã se abriu sob dedos que conheciam cada centímetro seu.
As carícias eram vorazes, mas ternas. Como se Verena pedisse desculpas em cada toque, em cada deslizar dos lábios entre seus seios, em cada mordida no quadril.
Silvia arqueava o corpo, buscando mais, gem*ndo entre os dentes, perdida na sensação. O calor se espalhava entre as pernas, a pele queimava onde quer que Verena tocasse, e tudo parecia desmoronar ao redor delas.
Quando finalmente os corpos se alinharam, pele contra pele, Verena sussurrou entre beijos trêmulos:
— Me perdoa... me perdoa...
Silvia não respondeu. Não queria palavras. Queria sentir. Queria esquecer.
As mãos de Verena exploravam sem medo, descendo lentamente entre as coxas, provocando arrepios, fazendo Silvia apertar os lençóis com força, morder o próprio ombro para conter os gemidos. A boca quente, a língua habilidosa, deslizavam por ela em movimentos que pareciam uma confissão silenciosa.
E Silvia se entregou.
Com raiva, com dor, com amor.
Com a certeza cruel de que no dia seguinte, a solidão ainda estaria ali.
Quando a explosão veio, arrancando dela um grito abafado, Verena a abraçou forte, como se pudesse protegê-la do que viria depois.
Mas Silvia sabia: nada protegeria.
De olhos fechados, sentindo o peito subir e descer descompassado, Silvia deixou-se embalar pelo toque da esposa, enquanto uma lágrima solitária escorria pela lateral do rosto.
No fundo, era como fazer amor com a lembrança do que elas foram um dia.
E não com o que eram agora.
O quarto estava mergulhado em penumbra, iluminado apenas pelo abajur suave no canto.
O silêncio era pesado, só quebrado pelas respirações entrecortadas e aceleradas.
Verena manteve Silvia abraçada com força, tomando o cuidado de não sufocá-la, mas querendo, de alguma forma, colá-la a si. Como se o calor da pele da esposa pudesse salvá-la da própria ruína.
Foi então que sentiu. Pequenos soluços contidos contra seu peito.
Silvia chorava.
O aperto no peito de Verena se intensificou de um jeito quase insuportável.
As lágrimas queimaram nos olhos antes mesmo que pudesse impedi-las.
Ela afundou o rosto na curva do pescoço da esposa, sentindo o cheiro suave do perfume misturado ao suor, e sussurrou, entre beijos desesperados:
— Me perdoa... me perdoa... eu não queria... eu não queria te machucar...
A voz saiu embargada, quase irreconhecível.
E, então, a muralha desabou.
Verena começou a chorar, o corpo tremendo violentamente, um soluço dolorido abafado contra o pescoço de Silvia.
As lágrimas escorriam livres, incontroláveis, como tudo o que vinha tentando esconder de si mesma.
Silvia, ainda em meio ao próprio choro silencioso, apertou a esposa contra si.
Manteve os dedos enredados nos cabelos bagunçados de Verena com uma mão, como se pudesse protegê-la do próprio desespero, enquanto a outra percorria as costas nuas, pressionando com força — tentando arrancar dela aquela dor que parecia transbordar por todos os poros.
Os corpos nus se enroscavam de forma quase instintiva, como se buscassem abrigo um no outro.
As pernas entrelaçadas, as peles úmidas pelo suor e pelas lágrimas, os corações batendo forte em uníssono.
Verena chorava como uma criança, sem máscaras, sem armaduras.
E Silvia, mesmo sem entender completamente o motivo daquele abismo, sentiu — no fundo da alma — que não era apenas ela quem estava quebrada naquela relação.
Verena também estava.
E o sofrimento dela parecia tão grande que doía vê-la assim, despedaçada.
Beijou o alto da cabeça da esposa, sentindo o gosto salgado das lágrimas que manchavam sua pele.
Fechou os olhos com força, prendendo o soluço na garganta, e apenas segurou Verena ali, como se pudesse impedir o mundo de desabar.
Talvez não soubesse como ajudar.
Talvez nem houvesse como.
Mas, naquele momento, tudo o que Silvia podia fazer era estar ali.
De corpo e alma, em silêncio.
Amando até onde ainda conseguisse aguentar.
Apartamento de Verena — 07h45
A luz da manhã entrava tímida pelas frestas da cortina, arranhando o quarto em tons dourados.
O lençol embolado revelava corpos exaustos, ainda entrelaçados pela madrugada carregada de desejo e dor.
Verena acordou primeiro.
Com cuidado para não acordar Silvia, deslizou para fora da cama.
Seu corpo inteiro doía, um misto de prazer e exaustão emocional que latej*v* em cada músculo.
Pegou a primeira roupa que encontrou — uma camiseta larga e uma calça de moletom — e seguiu para a cozinha, sentindo o piso frio sob os pés descalços.
Enquanto colocava a água para ferver, seus pensamentos martelavam sem parar.
Sabia que um café não apagaria a bagunça entre elas.
Mas ainda assim... era o que podia oferecer naquele momento.
Preparou duas xícaras, sem pressa.
Colocou um pouco de açúcar na de Silvia, como ela gostava.
Separou as xícaras numa bandeja simples e voltou ao quarto, equilibrando tudo com cuidado.
Silvia ainda dormia, abraçada ao travesseiro.
Verena pousou a bandeja na cômoda e sentou-se na beirada da cama, passando a mão pelos cabelos bagunçados da esposa.
— Bom dia, meu amor — murmurou, a voz rouca de sono e emoção.
Silvia abriu os olhos devagar, piscando contra a claridade suave.
Viu Verena ali, com aquele sorriso pequeno e sincero que há tempos não via.
Sentiu o aroma do café recém-passado e, mesmo com o peito pesado, não conseguiu evitar um meio sorriso.
— Você trouxe café pra mim? — perguntou, a voz arrastada de sono.
Verena assentiu, pegando a xícara e entregando-a nas mãos dela.
— Achei que ia gostar — disse, com um carinho genuíno no olhar, mesmo que sua alma ainda estivesse em pedaços.
Silvia aceitou.
Tomou um gole, fechando os olhos para aproveitar o calor e o sabor familiar.
Verena continuava ali, sentada, observando-a como se não quisesse perder nenhum detalhe daquele momento frágil e real.
Nenhuma das duas disse mais nada.
O silêncio, desta vez, era leve.
Tinha gosto de saudade misturada a medo.
Ainda havia muito a ser dito, muito a ser enfrentado.
Mas, por enquanto, o simples gesto de estar ali, dividindo o silêncio e o café, era um pequeno respiro para ambas.
Casa dos Moraes — 06h15
O despertador antigo tocou com seu som metálico e irritante, cortando o silêncio da manhã ainda escura.
Valentina esticou a mão, tateando a pequena cômoda até conseguir desligá-lo.
Ficou alguns segundos deitada, encarando o teto manchado pelo tempo, antes de reunir coragem para sair da cama.
O quarto era simples: uma cama de solteiro com lençóis gastos, uma pequena estante cheia de livros velhos e apostilas, e um guarda-roupa de madeira que rangia a cada movimento das portas. A irmã dormia, virada para a parede oposta.
Sentou-se na beirada da cama, esfregando o rosto com as duas mãos para espantar o sono. O chão gelado fez com que se apressasse a calçar o tênis surrado que já conhecia bem seus pés.
Do lado de fora, a casa ganhava vida.
O cheiro de café coado no pano já invadia o pequeno corredor que levava à cozinha.
A mãe, Ana Paula, cantarolava baixinho enquanto fritava ovos na frigideira velha.
O rádio ligado num programa popular de notícias preenchia o ambiente com as últimas novidades da cidade.
Valentina entrou na cozinha ajeitando a mochila nos ombros.
O zíper da mochila estava frouxo, uma das alças um pouco desfiada — sinais da batalha diária de quem carregava livros, esperança e cansaço no mesmo peso.
— Bom dia, filha — disse Ana Paula, sem parar de mexer os ovos. — Dormiu bem?
— Dormi — Valentina respondeu, puxando uma cadeira da mesa encostada à parede. Pegou um pedaço de pão amanhecido e passou um pouco de margarina, sem reclamar.
O pai, seu Carlos, já estava de pé, terminando de abotoar a camisa azul desbotada que usava para o trabalho no depósito.
— Tá com cara de quem queria mais umas duas horas de sono, hein, minha menina — brincou ele, piscando o olho para a filha.
Valentina deu uma risada pequena.
De fato, queria.
Mas queria também muito mais que isso.
Queria entender o que sentia.
Queria saber como lidar com o que morava dentro do peito e que, a cada dia, parecia crescer mais — sem nome, sem forma definida.
— Faz parte — respondeu ela, com um meio sorriso.
A conversa seguiu leve, entre goles de café preto e planos simples para o final de semana. A mãe falou de uma possível faxina na casa. O pai, de um jogo de futebol na praça. A simplicidade da vida batendo à porta, mesmo enquanto dentro dela, Valentina carregava tempestades.
Antes de sair, ela correu até o quarto, pegou um casaco fino e ajustou melhor a mochila. Quando voltou para a cozinha, os pais já estavam prontos para seus próprios dias corridos.
— Se cuida, tá? — Ana Paula disse, beijando a testa da filha com carinho.
— Sempre, mãe — respondeu, sorrindo pequeno.
Saiu pela porta da frente, sentindo o friozinho matinal cortar sua pele.
Enquanto caminhava até o ponto de ônibus, o céu começava a clarear devagar, tingindo o bairro humilde com um azul pálido de esperança.
A mochila pesava nas costas. Mas o que mais pesava era o que levava dentro do peito.
E era só o começo de mais um dia.
Sala de aula – 09h17
O calor abafado da manhã fazia as janelas abertas pouco ajudarem na ventilação da sala. Valentina tentava manter a atenção no quadro branco, onde o professor de biologia desenhava de forma quase artística a representação de um dispositivo intrauterino.
— Como falamos, hoje vamos aprofundar os métodos contraceptivos — explicou ele, girando na mão a caneta azul, sem pressa. — Camisinha, DIU, pílula anticoncepcional, injeções... Cada um tem suas indicações e peculiaridades.
Valentina engoliu seco, sentindo o rosto esquentar involuntariamente. Ela sabia que era só mais uma aula, parte do conteúdo obrigatório. Mas aqueles temas... Sempre a deixavam desconcertada. Como se invadissem territórios que ela ainda não sabia como explorar dentro de si.
Carol, sentada ao lado, percebeu a tensão da amiga e soltou uma risadinha abafada.
— Relaxa, Valentina — sussurrou, inclinando-se um pouco. — Não vai aparecer um DIU voando na sua cabeça.
Valentina revirou os olhos e soltou um meio sorriso, mas logo desviou o olhar, tentando se concentrar no caderno. As palavras do professor ecoavam, mas junto delas, pensamentos desconexos começaram a rodear sua mente — imagens e sensações que ela tentava reprimir. Sensações que tinham muito mais a ver com uma pessoa específica do que com os métodos ensinados ali.
Enquanto isso, alguns garotos da turma começaram a rir e cochichar piadas grosseiras entre si. Comentários idiotas sobre "camisinhas furadas" e "responsabilidade" ecoaram baixo, mas suficientes para que o professor interrompesse a explicação, cruzando os braços com irritação.
— Se acham que é engraçado, podem passar na coordenação depois pra explicar seu senso de humor — disse ele, o tom seco, matando de vez o clima de brincadeira.
Valentina abaixou ainda mais a cabeça, desejando ser invisível.
Tiago, mais ao fundo da sala, também parecia desconfortável. Ele olhava para os livros, depois para a janela, depois para o relógio — claramente torcendo para que a aula acabasse logo. O assunto, para ele, também parecia atravessar fronteiras incômodas.
Carol voltou a se inclinar para Valentina, com um sorriso sapeca:
— Você tá vermelha igual pimentão... Cê tem certeza que tá só prestando atenção?
Valentina bufou de leve, empurrando de brincadeira o ombro da amiga com a ponta dos dedos. Mas o calor interno que sentia não tinha nada a ver com o tempo abafado lá fora.
E muito menos com a aula de biologia.
Pátio da escola – 10h37
O sol filtrava tímido entre os muros que cercavam o pátio, espalhando sombras de diferentes formas pelo chão. Valentina e Carol dividiam um espaço no banco de madeira, cada uma com seu lanche nas mãos — um suco de caixinha e um pacote de biscoitos simples.
Carol, claro, não deixara o assunto da aula de biologia morrer.
— Mas falando sério... — começou ela, com aquele sorriso travesso que Valentina já conhecia bem. — Você nunca ficou curiosa, tipo... De beijar alguém?
Valentina quase engasgou com o suco. Tossiu baixinho, limpando a boca com as costas da mão, e tentou disfarçar o nervosismo.
— Que pergunta é essa, Carol? — murmurou, sem conseguir encarar a amiga de imediato.
— Ah, qual é — Carol riu baixinho. — Todo mundo pensa nisso uma hora, ué. Ainda mais depois daquela aula constrangedora de hoje...
Valentina apertou a caixinha de suco entre os dedos, tentando controlar a ansiedade que a pergunta provocara. A resposta estava ali, pronta para saltar de dentro dela: sim, claro que sim. Mas não era um “sim” genérico. Tinha nome, rosto, perfume... E esse segredo parecia grande demais pra ser dito em voz alta.
— Eu... — começou, mas a voz falhou.
Carol não insistiu de cara. Apenas a olhou de soslaio, com aquela expressão de quem entendia mais do que deixava transparecer.
Valentina respirou fundo, lutando contra a vontade de abrir o coração e o medo de ser julgada.
— Talvez... — murmurou enfim, a voz tão baixa que mal ela mesma ouviu.
Carol sorriu de lado, sem fazer piadas dessa vez.
— Relaxa, tá? Quando for pra ser, vai acontecer — disse, como se falasse sobre algo tão simples quanto o vento que soprava leve entre elas.
Valentina assentiu com a cabeça, ainda sem saber como agradecer o jeito sutil da amiga. E, por um breve momento, sentiu que talvez... Quando encontrasse coragem, Carol estaria ali para escutá-la.
Mesmo que ela ainda não soubesse como começar.
Sala de aula – 11h47
A última aula do dia era História, mas o professor, animado, havia puxado o tema para algo mais atual: o papel da juventude na política contemporânea.
Valentina tentava prestar atenção, mas bastou a palavra política ecoar algumas vezes para que sua mente, quase sem que percebesse, viajasse para outro lugar.
Ou melhor, para outra pessoa.
Verena.
A lembrança do jeito sério e imponente da deputada, do modo como seus olhos, por vezes cansados, ainda pareciam carregar uma força magnética, fez um calor estranho subir por sua nuca. Tentou disfarçar, abaixando o rosto para o caderno, fingindo anotar algo.
"Conscientização", "participação cidadã", "liderança jovem" — o professor falava, mas tudo o que ela conseguia pensar era em como aquela mulher era a personificação de poder. De força. De algo que, de alguma maneira misteriosa, a atraía sem controle.
Mordeu levemente o lábio inferior, sentindo o coração acelerar. Que vergonha, pensou, sacudindo a cabeça como quem espanta um pensamento proibido.
Carol, ao lado, notou o gesto e sorriu sozinha, como se adivinhasse alguma coisa.
Valentina desviou o olhar para o relógio na parede. 11h55. Faltava pouco. Mais algumas horas e ela estaria no estágio. E mesmo que odiasse admitir, a simples perspectiva de ver Verena de novo enchia seu peito de uma felicidade tão intensa que era quase assustadora.
Tentou se concentrar na aula, mas o sorriso leve, meio bobo, já tinha se instalado nos seus lábios sem que ela percebesse.
Entrada da ALESP – 13h44
Valentina ajeitou a alça gasta da mochila no ombro, sentindo o calor da tarde pesar sobre a pele enquanto caminhava em direção ao prédio da Assembleia.
Sua roupa era simples: jeans escuro, uma camiseta básica azul-marinho e um tênis branco já meio gasto, mas limpo. Passava despercebida pela maioria das pessoas ali — e, na maioria dos dias, ela preferia que fosse assim.
Mas hoje, não.
De longe, avistou três figuras atravessando a rua em direção à entrada principal. O coração de Valentina pulou dentro do peito de imediato. Reconheceu Verena, com sua presença sempre imponente, a elegância natural nos movimentos. Ao seu lado, Rafaela e... Silvia.
Quase sem entender por quê, seus olhos buscaram instintivamente as mãos de Verena. E encontraram.
As mãos das duas estavam entrelaçadas, com os dedos firmemente unidos. Um gesto pequeno para qualquer um, mas para Valentina, foi como um soco silencioso no peito.
Seu passo diminuiu, hesitante.
Foi nesse momento que viu algo ainda mais difícil de processar: um selinho — rápido, natural, confortável — trocado entre Verena e Silvia. E então o abraço, Verena envolvendo a esposa com aquele jeito protetor, enquanto sorria de algo que Rafaela havia acabado de dizer.
Valentina engoliu seco, apertando o passo novamente para não chegar atrasada. Não queria passar por elas. Não queria ser invisível, mas também não queria ser notada agora, com o rosto pegando fogo e o estômago revirando.
Do outro lado, Silvia foi a primeira a notar a aproximação da jovem.
— Olha quem tá chegando — comentou, com leveza, chamando a atenção de Verena.
O sorriso de Verena morreu no mesmo instante.
Rafaela, que já vinha acompanhando a situação silenciosamente há semanas, ergueu uma sobrancelha em alerta. Cruzou os braços, se posicionando sutilmente entre Verena e a direção de Valentina, como se isso pudesse evitar alguma reação impulsiva da amiga.
Verena respirou fundo, forçando-se a manter a compostura enquanto seguia abraçada a Silvia, que não percebia o furacão interno que tomava conta dela.
Rafaela, por dentro, já ria — mas era um riso nervoso, de quem sabia que aquilo estava prestes a se tornar um problema ainda maior do que já era.
E, entre olhares disfarçados, passos apressados e silêncios carregados, Valentina passou por elas sem olhar diretamente para ninguém, como se pudesse escapar daquilo tudo simplesmente andando rápido o bastante.
Mas, dentro dela, a confusão já tinha explodido em mil pedaços.
Gabinete de Verena: Sala de apoio – 14h07
Valentina entrou no gabinete tentando respirar fundo, tentando parecer normal. Cumprimentou os colegas com um aceno discreto, caminhando rápido até sua mesa, onde as pastas já a esperavam.
Sentou-se sem nem tirar a mochila das costas, sentindo o peso dela — e o peso que carregava dentro de si esmagá-la.
O que eu tô fazendo?
Por que eu tô sentindo isso?
A imagem de Verena abraçando Silvia, dos dedos entrelaçados, do selinho suave, voltava à sua mente sem pedir permissão. E cada vez que a lembrava, a sensação era a mesma: um aperto amargo na garganta e o estômago revirado.
Verena era casada. Casada com uma mulher linda, elegante, que parecia feita sob medida pra ela. Elas combinavam.
Silvia era daquelas mulheres que chamavam atenção sem esforço, que transmitiam classe até no jeito de sorrir. E ela, Valentina... Era só uma garota pobre, de roupa simples, com uma mochila surrada e sonhos que mal sabia se tinha direito de ter.
Um nó se formou em sua garganta. O sentimento que crescia dentro dela era errado. E pior: era impossível.
Verena nunca olharia pra ela daquele jeito. Nunca deveria olhar.
Sentiu os olhos arderem, mas piscou rápido para afastar as lágrimas. Pegou uma pasta qualquer e fingiu revisar o conteúdo, mesmo sem conseguir ler uma linha.
Por que você não para?
Por que você não consegue simplesmente parar de sentir?
Aquela tarde seria ainda mais difícil, ela sabia.
E não era porque o trabalho seria puxado, ou porque teria prazos apertados. Era porque a luta verdadeira estava acontecendo dentro dela. E a cada dia, parecia mais impossível de vencer.
...
Verena revisava uns documentos na mesa, mas a verdade é que mal prestava atenção. O leve burburinho do gabinete, os passos apressados de um lado para o outro, o tilintar ocasional de um telefone... tudo parecia distante. O que seus olhos procuravam, sem querer admitir, era uma única coisa.
Ou melhor, uma única pessoa.
Quando Valentina passou apressada pela sala, Verena sentiu o corpo inteiro enrijecer, como se fosse pega fazendo algo errado. Seus olhos a seguiram automaticamente, rápidos, disfarçados sob as lentes dos óculos de armação grossa que usava.
A garota caminhava cabisbaixa, segurando as pastas contra o peito como um escudo. Havia algo nela — algo frágil e ao mesmo tempo forte — que mexia profundamente com Verena, a ponto de deixá-la tonta.
"Não", ela murmurou para si mesma, quase imperceptível.
Era errado. Era sujo. Era impraticável.
E, ainda assim, seu coração disparava de forma descontrolada só por tê-la a poucos metros.
Tentou focar novamente nas folhas em sua frente. Tentou ser racional. Lembrou de Silvia — da risada dela mais cedo, do beijo leve trocado na calçada, do abraço apertado. Lembrou do calor do corpo dela na cama na noite anterior, das lágrimas, do amor que tentavam desesperadamente salvar.
Silvia merecia mais.
Silvia merecia tudo.
E, no entanto, bastava um movimento distraído de Valentina, um toque de seu perfume simples misturado com o cheiro de livros velhos, para Verena sentir o chão sob seus pés vacilar.
Apertou a caneta com força. Respirou fundo.
Precisava se controlar. Precisava manter distância.
Precisava ser quem Silvia acreditava que ela era. Quem o mundo esperava que ela fosse.
Valentina, por sua vez, nem imaginava o turbilhão que causava dentro dela.
E, olhando para o rosto sério e distraído da menina, Verena se odiou ainda mais.
Porque, no fundo, ela sabia: aquele dia também seria um inferno para ela.
...
O silêncio dentro do gabinete era quase palpável.
Valentina organizava alguns documentos sentada na pequena mesa da sala de apoio conjugada ao gabinete principal. A porta entre os dois espaços estava aberta, e, como todos os outros funcionários já haviam saído para compromissos externos, só restavam ela e Verena ali.
Cada movimento parecia mais alto do que o normal. O arrastar da cadeira, o clique da caneta, o folhear dos papéis. Valentina tentava se concentrar, mas a presença silenciosa de Verena na sala ao lado era como um peso constante sobre sua nuca.
De vez em quando, sentia o olhar da deputada sobre si, ainda que Verena, em sua aparente tranquilidade, tentasse disfarçar. E Valentina também tentava fingir que não percebia. Mas era inútil. A tensão entre elas era como eletricidade no ar, difícil de ignorar.
Verena, sentada à sua mesa, passava os olhos pelas anotações, mas não absorvia uma única palavra. Sua mente estava completamente dominada pela consciência da garota ali tão perto, tão intocável e, ao mesmo tempo, tão presente em cada pensamento seu.
Era sufocante.
Tentava encontrar alguma desculpa para chamá-la, iniciar uma conversa banal, qualquer coisa que quebrasse aquele peso insuportável. Mas sabia que seria um erro. Um erro que já cometia apenas em existir daquela forma tão desprotegida diante dela.
Valentina, por sua vez, sentia o coração acelerar sem motivo aparente cada vez que ouvia um suspiro mais fundo vindo da sala principal.
Queria que aquilo parasse. Queria, de verdade, ser capaz de simplesmente ver Verena como mais uma mulher casada, mais uma chefe qualquer. Mas era tarde demais para isso.
O relógio marcava cada segundo com crueldade.
Gabinete de Verena — 16h24
A porta da sala de apoio se abriu repentinamente, fazendo Valentina erguer o olhar.
Gabriela entrou como um furacão elegante, salto marcando o chão, a saia um pouco mais curta do que costumava usar, e ignorou a presença da estagiária como se ela não estivesse ali.
Sem bater, sem avisar, cruzou o espaço direto para o gabinete de Verena, fechando a porta atrás de si com um estalo firme.
Valentina franziu o cenho, voltando lentamente sua atenção aos documentos, desconfortável com a atitude.
Dentro do gabinete, Verena, que revisava um relatório no computador, levantou a cabeça na hora. Seu olhar encontrou Gabriela, já se acomodando casualmente na poltrona à frente da mesa. As pernas cruzadas com naturalidade, deixando à mostra boa parte das coxas morenas, a saia justa subindo ainda mais.
Instintivamente, Verena lançou um olhar rápido para a pele exposta antes de endurecer a expressão.
— Gabriela... — começou, o tom cortante. — Quantas vezes eu já falei que é pra bater na porta antes de entrar?
Gabriela sorriu de canto, balançando levemente a perna cruzada.
— Nossa, que formalidade toda é essa agora? — disse com ironia, ajeitando o cabelo com a ponta dos dedos. — Nunca teve esse protocolo todo antes.
Verena respirou fundo, sentindo a irritação crescer.
Não era Gabriela.
Era ela mesma, seus sentimentos confusos, sua raiva interna, seu medo.
— As coisas mudaram — declarou, firme. — Aqui dentro tem regras.
— Sempre teve — rebateu Gabriela, sorrindo com desdém. — Você só nunca cobrou de mim.
Verena ignorou a provocação.
— A partir de hoje, vai ser cobrado. Você bate antes de entrar. E a porta fica aberta. Sem exceções. — A voz era um aço frio.
Gabriela arqueou as sobrancelhas, surpresa, mas tentando disfarçar com deboche.
Levantou-se lentamente, o movimento enfatizando o decote generoso que a blusa justa moldava. Verena, contra a própria vontade, lançou um olhar relanceado para o colo à mostra, e odiou a si mesma por isso.
Gabriela sorriu, satisfeita com a reação involuntária da outra.
Ajeitando a saia com um gesto provocativo, inclinou-se ligeiramente para a frente, mantendo o olhar fixo em Verena.
— Seja lá o que deu em você... a gente ainda vai conversar — disse baixinho, como uma promessa, antes de dar uma piscadinha insolente.
Sem pressa, saiu pela sala de apoio — mais uma vez ignorando completamente Valentina deixando atrás de si um rastro de tensão e perfume doce.
Verena soltou o ar lentamente, fechando os olhos por um segundo.
Precisava se controlar.
Precisava manter distância.
Por ela mesma.
E por quem realmente importava.
Assembleia Legislativa de São Paulo – Final de Tarde
O movimento na ALESP diminuía, e o silêncio no gabinete tornava tudo ainda mais pesado. Sem mais ninguém por ali, Valentina ajeitou a alça da mochila surrada no ombro e, com o coração disparado e as mãos suadas, caminhou até a porta da sala principal.
Bateu de leve, quase torcendo para que a deputada nem ouvisse e ela pudesse escapar daquele dia estranho sem precisar encará-la.
Do outro lado, Verena sentiu seu corpo congelar por um segundo ao ouvir as batidinhas tímidas. Respirou fundo, lutando contra si mesma, antes de responder num tom firme, ainda que a voz quase tenha vacilado:
— Pode entrar.
Valentina empurrou a porta com cuidado, enfiando a cabeça para dentro, com um sorriso pequeno e tímido, o rosto levemente corado.
— Eu... só vim avisar que estou indo embora... — disse, a voz suave, mas trêmula. — Precisa de mais alguma coisa?
Verena precisou de toda sua força para manter a compostura. Sua mente gritava a verdade: Eu preciso de você. Mas seus lábios se moveram de maneira controlada, treinada, emitindo apenas o necessário:
— Não, obrigada, Valentina. Pode ir. Bom descanso.
Por um instante, os olhos de ambas se encontraram. Tímidos, intensos, perdidos. Como se em um segundo tudo o que não poderia ser dito estivesse ali, pairando no ar entre elas.
Valentina apenas assentiu com a cabeça, murmurando um "boa noite" quase inaudível, e se virou para sair.
Verena ficou olhando a porta se fechar com um peso no peito que parecia rasgar sua alma. Encostou-se à cadeira, jogando a cabeça para trás e soltando um suspiro longo, abafado, lutando contra tudo o que sentia. Contra tudo o que queria.
...
Enquanto descia as escadas da ALESP, Valentina caminhava devagar, como se seus pés se recusassem a afastá-la dali. Como se uma parte dela já estivesse, sem perceber, presa àquele lugar. Àquela mulher.
O ponteiro dos minutos parecia se mover em câmera lenta. Verena encarava o relógio de pulso pela terceira vez em menos de cinco minutos, a cabeça já tão longe do trabalho que as palavras nos papéis à sua frente se embaralhavam.
Tentou focar, forçar a mente a voltar para os compromissos e relatórios. Mas era inútil. Desde o momento em que Valentina fechara aquela porta com tanta delicadeza, sentia-se perdida num mar de sensações que não sabia controlar.
Deixou a caneta de lado, respirando fundo.
Sabia que não adiantava forçar algo que simplesmente não aconteceria naquele estado. E além disso — lembrou, ajeitando o relógio no pulso —, havia algo mais importante para fazer.
Silvia.
Ela prometeu nos votos que seria uma esposa presente, que lutaria pelo amor delas mesmo nos dias difíceis. Não podia continuar deixando o distanciamento crescer como vinha acontecendo. Silvia merecia muito mais.
Levantou-se, pegou o blazer pendurado na cadeira e saiu do gabinete em passos decididos.
O corredor já estava quase vazio, a maior parte dos funcionários havia deixado o prédio. Verena sentiu um leve alívio por não precisar forçar sorrisos ou conversas.
Do lado de fora, o sol começava a se despedir no horizonte, tingindo o céu de tons alaranjados.
Enquanto caminhava até o carro, Verena abriu o celular e digitou rapidamente uma mensagem para a esposa:
"Oi, amor. Saí mais cedo hoje. Passo aí pra te buscar, tá?"
Guardou o celular no bolso e, pela primeira vez em muitos dias, sentiu-se minimamente esperançosa.
Estava tentando. De verdade.
Só não sabia ainda se isso seria o suficiente.
Escritório de Silvia — Final de Tarde
O cheiro discreto de café recém-passado misturava-se ao ambiente sóbrio da sala de reuniões. Silvia, sentada com postura elegante, finalizava a explicação sobre as cláusulas de um novo contrato de prestação de serviços para pequenas empresas.
— A cláusula cinco precisa ser muito clara para evitar litígios futuros — dizia, com a voz calma, os dedos ágeis digitando no notebook. — Recomendo também essa alteração aqui, onde tratamos da multa rescisória. Dá mais segurança pra você.
À frente dela, sentado com um leve relaxamento ensaiado, estava Daniel Souza — empresário de 36 anos, de barba bem feita, sorriso fácil e olhos castanho-claros que teimavam em se fixar nela de um jeito que ia além da formalidade.
Alto, vestia um terno alinhado, mas tinha um jeito de quem queria parecer mais acessível do que realmente era. Silvia já havia notado essas nuances antes, mas aprendeu a lidar com elas como parte do jogo corporativo.
Terminando a revisão no documento, Silvia clicou em "imprimir" e ouviu o som da impressora ganhando vida no outro lado da sala.
Enquanto aguardava as folhas saírem, recostou-se levemente na cadeira e, quase sem pensar, pegou o celular para checar rapidamente as notificações.
A tela acendeu e trouxe um calor inesperado ao seu peito:
"Oi, amor. Saí mais cedo hoje. Passo aí pra te buscar, tá?"
O sorriso que Silvia tentou conter apareceu apenas como um movimento sutil nos lábios. Uma parte dela queria responder na hora, dizer que gostou da surpresa.
Mas respirou fundo, escondendo o celular de novo no colo, voltando a assumir a expressão profissional.
Ouviu o barulho da impressora cessando. Levantou-se com naturalidade e foi recolher os papéis, sentindo o olhar de Daniel acompanhá-la, quase como uma sombra.
Ignorou.
Entregou os documentos revisados a ele, voltando a explicar:
— Se revisar com calma agora, pode já assinar e a gente adianta o processo.
Daniel assentiu, o sorriso de canto insistindo em quebrar a formalidade.
— Gosto de trabalhar com você, Silvia. Sempre muito... dedicada.
Silvia manteve o sorriso diplomático, cortando o subentendido no ar com sua firmeza educada:
— Profissionalismo sempre é o melhor caminho, senhor Souza.
Com os papéis em mãos, voltou a se sentar, focada em terminar logo aquela reunião. Já pensava em Verena a esperando lá fora, e isso era tudo o que queria agora.
...
Daniel terminou de revisar o contrato com certa rapidez. Folheou as páginas, passando o olhar pelas anotações e sugestões feitas por Silvia, e, com um sorriso satisfeito, assinou onde era necessário.
Silvia recolheu os papéis sem perder tempo, já encerrando o assunto:
— Perfeito, senhor Souza. Vamos providenciar a outra via assinada e qualquer dúvida, estou à disposição.
— Tenho certeza de que vou precisar da sua ajuda em breve, doutora Silvia — respondeu ele, com uma piscadela quase imperceptível.
Ela manteve a compostura, limitando-se a um sorriso educado e um aceno breve. Daniel então se retirou da sala.
Silvia aproveitou para ajeitar rapidamente seus documentos, guardou o notebook na bolsa e desligou as luzes do escritório.
Já era hora de ir.
Ao sair e atravessar o pequeno corredor até a recepção, encontrou exatamente o que havia temido: Daniel ainda estava ali, encostado no balcão, conversando com Luana, a recepcionista de sorriso fácil.
Mas Silvia, experiente, percebeu o teatro. Ele claramente aguardava algo... ou melhor, alguém.
Suspirou discretamente, ajeitando a bolsa no ombro, já preparando sua expressão mais neutra.
— Está tudo certo, Luana? — perguntou, olhando rapidamente para a moça.
— Sim, doutora, tudo certinho! — Luana respondeu animada, mas lançando um olhar cúmplice para Silvia, como quem também percebia a intenção mal disfarçada do empresário.
— Ótimo. Então boa noite pra vocês — disse Silvia, já virando-se para a saída, mantendo a educação rígida na voz.
Daniel, como se tivesse apenas esperado por isso, finalizou a conversa com Luana de qualquer jeito e a acompanhou pelo corredor. Silvia sentiu a presença dele logo atrás de si, o som dos sapatos masculinos batendo ritmados contra o chão cerâmico.
Chegaram juntos ao elevador. O painel marcava o número de andares descendo lentamente. Silvia manteve os olhos fixos na porta de aço frio, rezando em silêncio para não precisar conversar.
Mas é claro que ele tentou.
— Sabe, doutora Silvia, eu admiro muito mulheres como você... inteligentes, independentes... — a voz dele deslizou como quem tenta ser sutil, mas soava forçada.
Ela respirou fundo, sem desviar o olhar da porta, como se ignorá-lo pudesse fazer a conversa desaparecer.
A aliança brilhava discretamente em seu anelar esquerdo, bem visível.
Será possível que ele não veja?, pensava irritada.
O elevador finalmente chegou. As portas se abriram com um leve bipe.
Silvia entrou de imediato, sem esperar galanteios. Daniel seguiu atrás, respeitando a distância — ou fingindo respeito.
Descendo, desejava apenas sair dali o mais rápido possível.
Sabia que Verena a esperava lá fora, e a simples ideia disso trouxe um alívio silencioso ao seu peito.
Área externa do Edifício Comercial — Final de Tarde
Silvia atravessou as portas de vidro automáticas do prédio, sentindo a brisa suave da tarde bater contra seu rosto. Tentava manter a elegância e a educação enquanto caminhava, mesmo com Daniel a acompanhando a poucos passos, como uma sombra indesejada.
Seus olhos varreram o estacionamento à frente, procurando pelo carro de Verena.
Ela sabia que a esposa já deveria estar ali, só precisava encontrá-la rapidamente antes que perdesse a paciência com a insistência de Daniel.
Ele, porém, não parecia disposto a desistir tão fácil.
— Doutora, se quiser, posso te dar uma carona... — sugeriu, com um sorriso que Silvia considerou forçado demais.
Por dentro, ela revirou os olhos.
Que cara de pau!
Mas manteve a expressão polida.
— Agradeço, mas minha esposa já está chegando — respondeu, firme, olhando novamente para o fluxo de carros na rua.
Daniel, pego de surpresa, pareceu desconcertado por um breve instante. Disfarçou rápido, ajeitando a manga do blazer com uma falsa naturalidade.
— Ela parece estar atrasada... — comentou, quase num tom de provocação amigável.
Silvia ignorou a alfinetada, respirando fundo para manter a classe. Continuou observando, até que seus olhos brilharam ao ver o conhecido Audi A4 preto se aproximando, deslizando suavemente até uma vaga no pequeno estacionamento lateral.
Silvia sorriu involuntariamente, aliviada. Finalmente poderia se livrar daquela situação incômoda.
— Tenha uma boa noite, Daniel — disse, estendendo a mão educadamente, apesar de tudo.
Ele a apertou, demorando um segundo a mais do que o necessário.
Definitivamente, um cafajeste, pensou Silvia, já se virando para caminhar até onde Verena a aguardava.
A deputada havia saído do carro e estava encostada casualmente ao lado da porta do motorista, os braços cruzados, a expressão meio distraída. Seu blazer cinza-escuro e a camisa branca semiaberta contrastavam com o jeans escuro e os sapatos sociais. Linda como sempre — sem esforço algum.
Quando Silvia se aproximou, Verena abriu os braços de leve, acolhendo-a num abraço firme e discreto. Trocaram um selinho rápido, que, para Silvia, teve um gosto imediato de paz.
Mas Verena, atenta como era, não deixou passar a movimentação. Pelo canto do olho, viu Daniel, ainda parado próximo ao prédio, lançando olhares disfarçados na direção delas.
— Quem é aquele palhaço? — murmurou no ouvido de Silvia, com um tom de ciúmes mal disfarçado.
Silvia apenas riu baixo, enroscando os braços no pescoço da esposa, como quem diz "deixa pra lá", antes de se afastarem para entrar no carro.
Silvia ajeitou o cinto enquanto Verena dava a volta no carro e entrava, assumindo o volante. O motor ronronou suavemente quando ela deu a partida, saindo com calma do estacionamento.
Durante os primeiros minutos, o silêncio foi confortável, pontuado apenas pela música baixa no rádio — alguma balada internacional suave que parecia combinar com o entardecer. Silvia olhou discretamente para a esposa. O maxilar dela estava tenso. Ainda estava incomodada com o episódio do tal Daniel, sem dúvida.
— Amor... — Silvia chamou baixinho, pousando a mão sobre a coxa de Verena, num gesto de carinho.
— Tá tudo bem, tá? — completou com um sorriso tranquilo.
Verena desviou o olhar rápido para ela, seus olhos verdes ainda densos de algo que Silvia não conseguiu decifrar completamente. Assentiu em silêncio, levando a mão livre até a dela, entrelaçando os dedos.
Silvia relaxou, recostando no banco. Sabia que Verena era intensa — amar ela significava também lidar com essa intensidade. Mas poucos minutos depois, Silvia percebeu que a rota que tomavam não era a habitual. Não passaram pela avenida que costumavam pegar para ir ao condomínio fechado onde moravam.
Endireitou-se no banco, franzindo as sobrancelhas.
— Verena... pra onde a gente tá indo? — Perguntou, tentando soar casual, mas não escondendo a curiosidade.
Verena sorriu de canto, sem tirar os olhos da estrada.
— Confia em mim — disse apenas, apertando de leve os dedos entrelaçados.
Silvia mordeu o lábio inferior, desconfiada mas intrigada. Não era comum a esposa agir assim — impulsiva, misteriosa... e ainda mais depois da noite intensa que tiveram.
O carro cortava ruas mais arborizadas agora, afastando-se da zona mais comercial da cidade. Casas bonitas, praças pequenas, o céu alaranjado pintando o final do dia.
Silvia olhou para a esposa novamente. Verena parecia um pouco mais leve agora, como se aquela pequena aventura particular estivesse servindo para aliviar, nem que fosse um pouco, o peso que ela carregava nos ombros.
— Se a gente acabar num matagal, a culpa é sua — brincou Silvia, arrancando uma risada sincera de Verena.
— Se eu quisesse te sequestrar, já teria feito há anos — rebateu Verena, com um sorriso travesso.
Silvia riu também, balançando a cabeça. Mesmo com toda a bagunça que eram às vezes... ela ainda se sentia completa ali, ao lado dela.
O carro então virou numa rua estreita e tranquila, cheia de árvores grandes de ambos os lados, como um túnel verde. À frente, Silvia viu um parque pequeno, quase escondido entre os bairros. Uma área de natureza calma, com bancos, trilhas e um laguinho refletindo o céu colorido.
Verena parou o carro num bolsão de estacionamento vazio, desligando o motor.
Silvia olhou em volta, surpresa e encantada.
— Vim roubar você pra mim... nem que seja só por uma horinha — murmurou Verena, soltando o cinto e se inclinando para beijá-la no canto da boca.
Silvia fechou os olhos por um segundo, permitindo-se sentir. Verena podia ser caótica, difícil... mas também sabia ser linda e arrebatadora nos pequenos gestos.
— Tá bom, sequestradora — disse, sorrindo com o coração.
— Só porque eu sou uma vítima muito fácil.
Verena riu baixinho, saindo do carro e contornando para abrir a porta do passageiro para Silvia — um gesto bobo, mas que a fez sentir-se especial.
De mãos dadas, caminhavam para o parque enquanto o dia morria devagar.
Parque — Final de tarde, começo da noite
As árvores altas formavam sombras longas pelo gramado amplo. Um ventinho fresco passava de leve, trazendo o cheiro úmido da grama recém-regada e o barulho suave das folhas dançando.
Verena e Silvia caminhavam devagar, de mãos dadas, como se tivessem todo o tempo do mundo. De vez em quando, Verena dava um leve puxão na mão da esposa, fazendo-a girar só para arrancar uma risada tímida, exatamente como fazia quando começaram a namorar.
Encontraram um pedaço de grama um pouco mais afastado da trilha principal, ainda banhado pela luz alaranjada do fim de tarde. Silvia se agachou primeiro, ajeitando a bolsa de lado, e Verena logo sentou ao lado dela, sem qualquer cerimônia, deitando a cabeça no colo da esposa.
Silvia sorriu, passando os dedos devagar pelos cabelos escuros da esposa. Era raro vê-la assim... entregue, sem armaduras.
— Faz tempo que a gente não faz nada assim, né? — Silvia comentou, a voz baixinha, como se tivesse medo de quebrar aquele momento frágil.
Verena fechou os olhos por um segundo, absorvendo o toque e o calor suave do carinho dela.
— Tempo demais — respondeu apenas, a voz rouca e sincera.
Foi então que um carrinho de pipoca, com luzes piscando fraquinho, passou mais adiante pela trilha. O cheiro inconfundível de pipoca recém-feita invadiu o ar, trazendo memórias boas e simples.
Verena ergueu a cabeça do colo de Silvia e apontou.
— Quer? — perguntou, já se levantando antes mesmo da resposta.
Silvia soltou uma risadinha.
— Acho que não como pipoca no parque desde o colégio... — brincou, mas assentiu.
Verena caminhou apressada até o carrinho, tirando a carteira do bolso da calça. Silvia ficou observando de longe, apoiada nos cotovelos na grama, admirando a postura dela — alta, segura, mas ao mesmo tempo... havia algo de vulnerável que poucas pessoas conseguiam ver.
Verena voltou logo depois, carregando um saco grande de pipoca salgada. Sentou-se de novo na grama com ela, jogando algumas no alto só pra tentar pegar com a boca, fazendo Silvia rir de verdade pela primeira vez em dias.
— Você é uma criança — Silvia disse, roubando um punhado de pipoca da mão dela.
— Sua criança favorita — respondeu Verena, piscando.
Elas comeram ali mesmo, dividindo a pipoca e rindo baixo. Às vezes, Verena se inclinava e roubava beijos rápidos, doces, como se tivesse vergonha de alguém ver.
Silvia encostou a cabeça no ombro dela, e por um momento, esqueceu do mundo, esqueceu das dúvidas, das dores. Ali, naquela bolha, era só elas duas.
Verena se permitiu fechar os olhos por alguns instantes, sentindo o calor do corpo da esposa encostado ao seu.
Sabia que precisava ser melhor.
Sabia que não podia deixar Silvia escapar de novo.
Mas ao mesmo tempo... havia um nó dentro dela que parecia impossível de desatar.
Ainda assim, naquele instante, prometeu silenciosamente que tentaria — pelo menos tentaria.
Silvia, que também fechara os olhos, sussurrou quase sem perceber:
— Amo você.
Verena apertou de leve a mão dela.
— Eu também, meu amor... — respondeu, a voz embargada.
A brisa da noite começava a soprar mais gelada, mas o calor entre elas parecia proteger daquele frio todo.
E mesmo sem palavras, sabiam: ainda tinham muita coisa para enfrentar.
Mas, pelo menos ali, tinham uma à outra.
...
Já estava anoitecendo quando decidiram se levantar. O céu tinha aquele tom alaranjado que dava uma sensação de fim de dia perfeito. Silvia ajeitou a blusa enquanto Verena limpava as mãos, ainda segurando o saquinho vazio da pipoca.
Caminharam lado a lado pela grama macia, sem muita pressa, sentindo o frescor da noite que começava a se formar. No meio do caminho, Silvia passou o braço pela cintura da esposa, encostando a cabeça no ombro dela de leve, num gesto natural e cheio de carinho.
Verena deixou escapar um sorriso pequeno, daqueles que não se faz força para aparecer. Levou a mão até a de Silvia, entrelaçando os dedos com força, como se tivesse medo de soltá-la.
No meio daquela caminhada lenta, com o som da cidade ao fundo e o cheiro de grama no ar, Verena murmurou, quase sem pensar:
— Não sei o que seria de mim sem você...
Silvia parou por um segundo, ainda abraçada a ela. Sentiu o coração apertar no peito. Não respondeu de imediato. Apenas apertou ainda mais a mão de Verena, guardando aquelas palavras no fundo da alma.
Verena sorriu de canto, como se tentasse disfarçar a própria emoção, e voltaram a caminhar juntas até o carro.
Era só mais uma noite comum.Mas, para as duas, carregava um peso e uma promessa silenciosa que nenhuma delas ousaria quebrar tão cedo.
Casa da Valentina – Quarto | Início da noite
Valentina apoiava os cotovelos no parapeito da pequena janela do quarto, os olhos vagando pelo quintal simples iluminado apenas pela luz suave do poste da rua. O céu, salpicado de estrelas, parecia uma enorme promessa silenciosa acima dela.
No celular apoiado ao lado, a música "Um Pro Outro", de Lulu Santos, tocava baixinho nos fones de ouvido — um segredo só dela. Embora sua mãe sempre insistisse para que ouvisse apenas músicas gospel, Valentina amava a liberdade de escutar outras canções escondida no quarto. Lulu era um de seus cantores favoritos, e aquela música, em especial, parecia lhe tocar a alma de forma diferente agora.
Deixou a playlist em modo de repetição. Nem percebeu quantas vezes a música já havia recomeçado. Antes, ouvia apenas pela melodia bonita. Agora, cada palavra parecia ter um peso novo, uma direção nova, como se falassem diretamente para ela — ou melhor, para o que sentia por alguém que nem deveria estar em seus pensamentos.
Os olhos, de tempos em tempos, se fechavam devagar, como se ela mergulhasse numa realidade só dela, onde podia viver aquilo sem medo ou culpa.
Sem querer, deixou um sorriso tímido escapar, um sorriso quase envergonhado. Era bobo pensar assim, ela sabia. Mas, ainda assim, era reconfortante imaginar que, em algum lugar sob aquele mesmo céu, Verena também estava, talvez olhando para a mesma imensidão.
A música embalava suas emoções, e ela se permitia, por minutos, viver naquele devaneio proibido. Pensou no que Verena estaria fazendo naquele momento. Se estaria trabalhando, descansando... ou talvez sorrindo como sorrira para ela, mesmo que de forma tão discreta.
Mas bastava um pensamento mais racional — a lembrança dos sermões da igreja, do que aprendera a vida inteira — para que um peso enorme se instalasse no peito.
Além de tudo, Verena era casada. E Silvia... Silvia era linda, elegante, carinhosa. Não fazia sentido algum alimentar sentimentos que, além de errados, eram impossíveis.
Fechou ainda mais os olhos, inspirando fundo, tentando afastar aquela angústia. Mas a música seguia tocando, e ela sabia que, mesmo tentando negar, estava perdendo feio para suas próprias emoções.
Lá de longe, a voz de sua mãe chamou avisando que o jantar estava quase pronto.
Valentina retirou os fones de ouvido, mas ficou mais um tempinho ali, olhando para o céu como quem procura uma resposta que sabia que não viria.
Casa da Valentina – Cozinha | Jantar
O aroma da comida simples preenchia a pequena cozinha, trazendo uma sensação acolhedora e familiar. Ana Paula havia preparado arroz, feijão, frango ensopado e uma salada de tomate e alface — tudo com aquele tempero caseiro que aquecia o estômago e o coração. Valentina ajudara a arrumar a mesa enquanto Isadora, a irmã mais nova, tagarelava sobre algo que tinha acontecido na escola.
Sentaram-se juntos, como sempre faziam. Era um costume que Ana Paula fazia questão de manter: todos à mesa, juntos, sem televisão, pelo menos durante as refeições.
O jantar transcorria em meio a conversas leves e risadas de Isadora, até que, de repente, o pai, enquanto pegava mais uma concha de feijão, comentou casualmente:
— O mundo tá cada dia mais perdido... Hoje mesmo vi na hora do almoço, dois homens de mão dada na rua, como se fosse a coisa mais normal do mundo... —
Deu um meio sorriso reprovador, balançando a cabeça como quem lamenta o rumo das coisas.
A fala caiu sobre a mesa como um balde de água fria. Ana Paula levantou os olhos imediatamente, lançando um olhar de reprovação para o marido — um olhar claro e silencioso que dizia "não na frente das crianças". Ele pigarreou e mudou de assunto rapidamente, comentando sobre o jogo de futebol que teria no fim de semana.
Isadora, distraída e alheia, não entendeu nada e continuou mexendo no arroz com o garfo. Mas Valentina entendeu.
E aquela frase, dita assim, jogada como algo trivial, doeu mais do que queria admitir.
Sentiu o garfo pesar na mão, o estômago se apertar de um jeito estranho, como se de repente a comida tivesse perdido o sabor. Manteve a cabeça baixa, mexendo no prato como se nada tivesse acontecido. Mas por dentro, o peito parecia pequeno demais para abrigar tanta coisa.
Engoliu em seco, forçando um sorriso discreto quando Isadora perguntou se ela queria trocar o suco pelo dela, que estava "mais gostoso".
— Não, tá bom assim... — respondeu Valentina, tentando parecer normal.
Ana Paula lançou um olhar rápido para a filha mais velha, como se tivesse percebido o desconforto, mas preferiu não comentar naquele momento. Em vez disso, puxou outro assunto qualquer, tentando devolver ao ambiente a leveza que havia se perdido por um instante.
Valentina permaneceu ali, fisicamente presente, mas emocionalmente longe.
Longe, para onde sua mente insistia em levá-la, onde podia sentir o que sentia sem medo. Mas ali, àquela mesa, no mundo real, era apenas uma filha tentando engolir, junto com a comida, tudo o que não podia dizer.
O jantar havia terminado, e agora o silêncio da casa era quebrado apenas pelos sons distantes da rua e o zumbido do ventilador pequeno no canto do quarto. Valentina estava deitada na cama simples, com o lençol fino cobrindo as pernas. Ao lado, na outra cama, Isadora já dormia profundamente, abraçada ao travesseiro, respirando com a tranquilidade de quem ainda não carregava o peso do mundo.
Valentina, no entanto, não conseguia fechar os olhos. O celular estava escondido sob o travesseiro. Depois de muita relutância, acabou cedendo. Pegou o aparelho com cuidado para não fazer barulho e abriu o navegador.
Digitou, meio envergonhada de si mesma:
"Como saber se alguém gosta de você."
Começou a ler as respostas, uma a uma.
"Olhares prolongados", "pequenos toques", "mudanças no tom de voz"...
Cada frase parecia cutucar ainda mais fundo o que tentava esconder até de si mesma.
Logo depois, como se não bastasse, pesquisou:
"Como mostrar que você gosta de alguém sem assustar a pessoa."
A cada linha, seu peito parecia apertar mais.
A tela do celular iluminava seu rosto, e seus olhos se fechavam por breves momentos, como se quisessem escapar daquela realidade que começava a se desenhar tão viva dentro dela. Sabia que não deveria estar sentindo tudo aquilo. Sabia. Desde pequena, ouvira nas pregações da igreja que aquilo era errado, pecado. E agora ali estava ela, procurando na internet respostas para um sentimento que a invadia como uma onda que ela não conseguia conter.
Num impulso, trancou o celular rapidamente. Sentou-se na cama e, com lágrimas brotando nos olhos, juntou as mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos.
Fechou os olhos com força, como se pudesse se proteger de si mesma.
E em um sussurro quase mudo, começou a orar:
— Me perdoa, Deus... Eu não quero sentir isso... Eu não quero errar com o Senhor... Por favor, tira isso do meu coração...
As palavras saíam entrecortadas, e as lágrimas caíam silenciosas. Ela sentia uma mistura confusa de culpa, medo e uma tristeza tão profunda que parecia preencher todo o pequeno quarto.
Isadora virou-se na cama, soltando um suspiro sonolento, mas continuou dormindo.
Valentina terminou a oração e permaneceu ali, em silêncio, deixando que as lágrimas corressem até que, vencida pelo cansaço e pela dor, deitou-se de novo. A música que ainda ecoava em sua cabeça agora parecia distante, como um sussurro no fundo da alma. Demorou a pegar no sono. Mas, quando finalmente adormeceu, o céu que tanto olhara naquela noite parecia ter se guardado dentro dela.
Assembleia Legislativa de São Paulo – Plenário | Manhã
Os dias seguintes haviam corrido com tranquilidade, cada um seguindo seu fluxo, quase como se estivessem apenas se preparando para o que estava por vir. Agora, naquela manhã de quinta-feira, o plenário estava em ebulição.
Verena ajustava o microfone diante de si, o olhar sério e a postura impecável. O assunto era polêmico: um projeto de lei que, entre outras coisas, trazia brechas que poderiam discriminar abertamente pessoas da comunidade LGBTQIA+ em alguns serviços públicos.
O deputado Amaral, um dos mais retrógrados da casa, havia acabado de disparar uma fala grotesca e abertamente homofóbica, tentando camuflar o preconceito sob o pretexto de "valores tradicionais".
Verena, que até então se mantinha contida, explodiu. Se levantou de um salto, pedindo a palavra, e em poucos segundos já estava com a voz firme, cortando o ar do plenário:
— É impressionante como alguns ainda conseguem juntar tamanha ignorância e maldade num espaço tão pequeno como esse que chamam de cérebro!
A frase ecoou com força.
Alguns tentaram disfarçar as risadas, outros não conseguiram segurar.
Até parlamentares de partidos opostos deram sorrisos envergonhados.
O presidente da sessão interveio rapidamente:
— Deputada, peço que mantenha o decoro da casa.
Verena ergueu as mãos, como se pedisse desculpas, mas o olhar continuava afiado.
— Perdão, excelência. Eu esqueço às vezes que aqui precisa parecer bonito até pra quem destila ódio.
Nova onda de risadas abafadas percorreu o plenário.
Rafaela, assistindo tudo da sua cadeira próxima à bancada reservada aos assessores, quase não se continha de tanto orgulho. Ela sabia que Verena havia nascido para aquele palco. Seu carisma natural, sua inteligência rápida e, claro, sua coragem, faziam dela uma força impossível de ignorar.
A confusão começava a se acalmar, mas Verena seguia impassível, ajeitando o blazer com um leve sorriso irônico nos lábios, como quem dizia silenciosamente: "Hoje, não vão me calar."
Assembleia Legislativa de São Paulo – Corredores do Plenário | Final da manhã
O final da sessão ainda estava quente. A discussão acalorada reverberava entre os corredores largos e iluminados da Alesp.
Verena saía firme, os passos marcados no chão de mármore, quando ouviu a voz irritada do deputado Amaral atrás dela.
— Macho falso! — ele disparou com desprezo, alto o suficiente para ecoar pelo corredor.
Verena parou de imediato. Virou-se lentamente, o blazer balançando sutilmente no movimento, o rosto carregando um sorriso frio e desafiador.
— Olha só, deputado... — disse, a voz tranquila, quase cortante. — Parece que sua masculinidade frágil se sente ameaçada até por uma mulher que tem mais coragem que o senhor.
Alguns deputados que vinham atrás deles se entreolharam tensos. O deputado Amaral deu passos largos em direção a Verena, visivelmente alterado.
Antes que pudesse se aproximar ainda mais, dois parlamentares e um assessor já estavam no meio dos dois, erguendo as mãos para impedir qualquer besteira.
— Chega, Amaral! — um deles advertiu.
Verena não se mexeu.
Sequer recuou.
Apenas cruzou os braços, olhando o homem nos olhos.
— Vai mostrar agora até onde vai a sua “masculinidade exemplar”? — provocou com sarcasmo.
Rafaela, que tinha saído logo atrás de Verena, alcançou a amiga, puxando-a discretamente pelo braço.
— Vamos embora, antes que você acabe com a carreira dele e com a sua — sussurrou com humor nervoso, mas com preocupação real nos olhos.
O burburinho se espalhava rápido pelos corredores. Celulares começavam a surgir discretamente entre os dedos de alguns funcionários e curiosos.
Verena permitiu ser puxada, mas caminhou com a cabeça erguida, sem desviar o olhar altivo que mantinha até então. Deixou Amaral para trás, vermelho de raiva e murmurando insultos entre os dentes.
No fundo, Verena sabia que aquilo poderia lhe render dores de cabeça — a corregedoria já era conhecida por abrir sindicâncias para casos bem menores. Mas, sinceramente?
Se defender o que acreditava custasse caro, ela pagaria sem medo.
Ao lado de Rafaela, finalmente se afastando do tumulto, soltou um suspiro pesado.
— Idiota — resmungou, baixinho.
Rafaela sorriu de lado.
— Idiota e derrotado. Você deu um show lá dentro, Ve.
Verena permitiu um sorriso cansado, mas satisfeito.
Sabia que aquele dia ainda estava longe de acabar.
Gabinete de Verena Castilho | Início da tarde
O relógio marcava pouco depois das duas quando Verena voltou para o gabinete.
A manhã tinha sido exaustiva — e, apesar de estar mais calma, ainda sentia a tensão pesar sobre seus ombros.
Deixou o blazer sobre a poltrona e sentou-se à sua mesa, soltando um longo suspiro enquanto ligava novamente o computador. Precisava colocar a cabeça no trabalho.
No espaço de apoio, Valentina já estava em sua mesa, concentrada.
Tinha chegado alguns minutos antes e, como sempre, organizava as tarefas discretamente, sem chamar atenção.
Verena observou de relance pela divisória de vidro aberta: a garota ajeitava papéis, o rosto sério, uma mecha de cabelo insistente caindo sobre o olhar.
Não trocaram palavras naquele momento — como era o natural —, e isso, de certa forma, tranquilizou Verena. Cada uma mantinha-se no seu espaço, respeitando os limites invisíveis que, ultimamente, pareciam cada vez mais frágeis.
Verena tentou focar no que estava na tela. Tinha muita coisa a resolver — projetos a revisar, relatórios a corrigir.
Mas, mesmo se esforçando, uma parte dela se perguntava como ainda era possível que uma simples presença, tão discreta e tímida, pudesse roubar sua atenção daquela maneira.
Gabinete de Verena – ALESP – 15h30
O ambiente já estava mais calmo. O burburinho da confusão da manhã havia se dissipado, mas ainda pairava no ar uma tensão invisível, como se algo estivesse fora do lugar. Verena, debruçada sobre a mesa, revisava um relatório importante para a próxima semana. Tentava manter o foco, mas o peso da manhã somado ao cansaço emocional tornava tudo mais arrastado.
Valentina, como de costume, estava na sala de apoio, organizando alguns documentos. O som suave das folhas sendo manuseadas preenchia o ambiente, enquanto a porta entre os dois cômodos permanecia entreaberta.
Verena precisou confirmar uma informação em um dos relatórios que Valentina havia separado. Bateu de leve na moldura da porta aberta com os nós dos dedos, chamando a atenção da estagiária.
— Valentina, pode vir aqui um instante, por favor?
A garota imediatamente sentiu o estômago revirar. Limpou as mãos nos jeans, como se isso pudesse fazer sua insegurança desaparecer, e caminhou até a sala de Verena. O espaço parecia ainda maior agora, silencioso e solene.
Valentina parou à frente da mesa, esperando.
— Você separou o relatório da comissão de orçamento? — Verena perguntou, com a voz firme, mas com um quê de gentileza.
— Separei sim, deputada. Está aqui... — Valentina respondeu, inclinando-se um pouco para alcançar a pasta sobre a mesa.
Foi nesse gesto, nesse breve momento, que seus olhares se cruzaram. Um segundo, talvez dois. Mas o tempo pareceu se estender entre elas como um fio invisível que, de tão fino, ameaçava se romper a qualquer momento.
Verena sentiu o ar faltar brevemente. Seus olhos, que deveriam estar focados nos papéis, encontraram os de Valentina — grandes, castanhos, brilhando de uma doçura que a desarmava completamente.
Valentina, por sua vez, se sentiu vulnerável, despida, como se todos os sentimentos que tentava esconder estivessem estampados em sua expressão. Seu rosto corou levemente, e ela abaixou os olhos depressa, oferecendo a pasta a Verena com as duas mãos.
Verena, retomando o controle que parecia escapar por seus dedos, apenas assentiu em agradecimento e pegou o documento.
— Obrigada. Pode voltar para suas tarefas. — disse com a voz baixa, rouca sem querer.
Valentina apenas acenou com a cabeça e se retirou com cuidado, fechando a porta atrás de si.
Assim que ficou sozinha, Verena apoiou as duas mãos sobre a mesa, baixando a cabeça. Sentia-se sufocada pelos próprios impulsos. Estava brincando com fogo, e sabia disso. Mas por que, então, era tão difícil simplesmente se afastar?
Do outro lado da porta, Valentina encostou-se lentamente na cadeira, tentando desacelerar seu coração, que parecia prestes a saltar pela boca.
O resto da tarde seria longo para ambas.
Gabinete de Verena – ALESP – 16h10
Verena tentava voltar ao trabalho, mas a concentração parecia uma miragem naquele deserto de sentimentos confusos. Foi quando Rafaela entrou pela porta da sala de apoio sem cerimônia, carregando dois cafés e seu sorriso travesso de sempre.
— Serviço de entrega premium! — anunciou, colocando um dos copos sobre a mesa de Verena.
Verena levantou os olhos e soltou uma risada baixa, aceitando o café.
— Obrigada... você está muito boazinha hoje. Estou até desconfiada.
— É o clima de vitória, né? — Rafaela piscou. — Fiquei sabendo que seu "lindo discurso" no plenário já tá rodando a internet.
Verena arqueou a sobrancelha, sem esconder o deboche.
— Ah, claro... porque era exatamente isso que eu queria: virar meme nacional — disse, brincando, tomando um gole do café. — Não tô nem aí.
— Você dizendo que ia dar "uma aula prática de masculinidade" no deputado foi simplesmente épico, amiga. — Rafaela gargalhou. — Tô com orgulho até agora. Mas ó... falando sério... tá preparada? Amanhã já deve ter matéria rodando, analista comentando. Essa gente ama um escândalo.
Verena deu de ombros, sem muito peso.
— Deixa falarem. Pior seria se eu tivesse ficado calada.
Rafaela sorriu, sentando-se em uma cadeira de frente para Verena, jogando as pernas cruzadas com a casualidade de quem já era da casa.
— É isso aí. E falando em escândalo... — Rafaela inclinou-se um pouco para frente, num tom cúmplice. — Como tá o clima de lua de mel com a dona Silvia, hein? Tá naquela média de meia trans* por semana ou melhorou?
Verena soltou uma risada involuntária, a primeira verdadeira do dia, balançando a cabeça em negativa.
— Você é ridícula, Rafaela...
— Eu prefiro o termo "realista" — respondeu ela, piscando com malícia.
Verena fingiu revirar os olhos, mas por dentro, sentiu-se genuinamente grata pela presença da amiga. Rafaela tinha esse dom irritante de quebrar o peso das coisas, de trazer leveza mesmo nos dias mais pesados.
— Relaxa, amiga — Rafaela completou, se levantando com seu café em mãos. — Com esse seu charme, nem precisa de muita coisa pra Silvia ficar no seu pé.
Verena apenas sorriu de canto, voltando os olhos para os documentos sobre a mesa, mas sem realmente enxergar nada por alguns segundos. O pensamento, involuntário e traiçoeiro, escapou antes que ela pudesse se impedir: e se fosse outra pessoa no seu pé?
Apertou os olhos brevemente, como quem tenta espantar um pensamento proibido, e respirou fundo. Ainda havia muito dia pela frente — e muita batalha interna também.
Gabinete de Verena – Final da tarde
Valentina ajeitou a pilha de documentos entre as mãos suadas antes de bater suavemente na porta da sala principal, como de costume. Do lado de dentro, Verena ajeitou rapidamente o blazer, tentando passar a impressão de normalidade que já começava a desmoronar por dentro.
— Pode entrar — autorizou, a voz saindo mais doce do que pretendia.
Valentina entrou, olhando discretamente para a mulher atrás da mesa. Sentia o frio na barriga aumentar de forma quase dolorosa. Caminhou até a mesa e estendeu os papéis para serem assinados. No gesto, sem querer, os dedos se tocaram. Um contato breve, mas que acendeu um alerta em ambas.
Verena afastou a mão rápido, pigarreando para disfarçar, e mergulhou nos documentos como se fossem o assunto mais importante do mundo. Mas Valentina não conseguia mais ignorar os sinais. Se lembrou das pesquisas anteriores, deitada na cama, lendo aquelas matérias bobas sobre "como saber se alguém gosta de você".
"O olhar que dura mais que o normal, o tom de voz diferente, o nervosismo contido, a forma como a pessoa se fecha de repente tentando disfarçar."
E agora, ela via tudo aquilo em Verena.
Valentina mordeu o canto do lábio discretamente, sentindo o rosto queimar. Teve vontade de perguntar algo, qualquer coisa, só para ficar mais um pouco. Mas a razão a puxou de volta. Não podia alimentar aquilo — não podia.
Verena assinou os papéis rapidamente, evitando a todo custo encarar a garota. Estava desesperada para que ela saísse logo, mas ao mesmo tempo, parte dela implorava para que ficasse.
— Pode levar isso para a recepção, Valentina — disse, com a voz de volta ao tom firme de sempre.
A jovem apenas assentiu e saiu, fechando a porta com cuidado atrás de si. Do outro lado, seu coração batia tão alto que tinha certeza de que todos no gabinete podiam ouvir.
Já dentro da sala, Verena encostou a cabeça na cadeira, soltando um longo suspiro. Se xingou mentalmente por mais um dia fracassando miseravelmente em manter a distância que sabia ser necessária.
Rua da casa de Valentina – Início da noite
O ônibus seguiu seu caminho sacolejante, mas Valentina mal notava. Estava com os fones de ouvido, a cabeça apoiada na janela embaçada pelo sereno da noite. Mais uma vez, "Um Pro Outro", de Lulu Santos, preenchia seus ouvidos e seus pensamentos.
A melodia parecia desenhar Verena em sua mente. Era inevitável. O sorriso, o jeito mais sério que ela tentava disfarçar, a voz firme e o olhar que, para Valentina, parecia suavizar quando se dirigia a ela.
Uma felicidade inexplicável aquecia seu peito, mesmo sabendo o quanto era tolo se deixar levar por aquilo. Mas, ali, naquele ônibus quase vazio, ela permitiu que sua mente viajasse sem censura. Sem culpa. Apenas por alguns minutos, fingiu que era possível.
O veículo fez uma curva lenta, anunciando seu ponto de descida. Valentina apertou o botão de parada, ajeitando a mochila nos ombros. Desceu com cuidado e sentiu o celular vibrar na mão.
Era uma notificação no WhatsApp. Carol. A legenda dizia apenas:
"Sua deputada arrasou 🔥"
O coração de Valentina disparou. Um calor subiu pelo seu corpo, e ela abriu rapidamente o vídeo. Era Verena, no plenário, no exato momento do discurso que já circulava nas redes.
Valentina parou no meio da calçada sem nem perceber. Olhava o vídeo como se o mundo ao redor tivesse sumido. Seus olhos se fixaram na imagem de Verena gesticulando forte, determinada, desafiadora.
Sem nem perceber, passou o dedo sobre a tela, acariciando o rosto da mulher. Um suspiro escapou de seus lábios sem sua permissão.
— Ai, meu Deus... — sussurrou para si mesma, sentindo o estômago revirar em pura emoção.
Demorou alguns segundos até voltar à realidade e perceber que estava parada no meio do caminho. Guardou o celular às pressas e apressou os passos.
Ao se aproximar de casa, viu a cena familiar que aquecia seu coração de outro jeito: sua mãe, sentada à beira da porta, como sempre fazia quando esperava pelas filhas.
Ana Paula ergueu os olhos e sorriu, aliviada ao vê-la chegar bem. Valentina sorriu de volta, tentando esconder a bagunça boa que carregava dentro de si.
Casa da família Moraes – Noite
Valentina atravessou o pequeno portão enferrujado e, antes que pudesse dizer qualquer coisa, sentiu o abraço acolhedor da mãe.
— Pensei que ia chover, filha. — Ana Paula comentou, apertando-a de leve, com aquele jeito doce de quem sempre esperava mais do que um "tô bem".
— Tô aqui, mãe. — Valentina sorriu, guardando o celular discretamente no bolso da calça jeans.
Ana Paula lhe passou a mão pelos cabelos como fazia desde que ela era pequena e, com um gesto, chamou-a para dentro.
— Vem, o jantar já tá quase pronto. Só falta fritar as últimas coisas.
O cheiro de comida simples — arroz fresquinho, feijão temperado com alho e um pouco de ovo mexido — invadia a pequena casa, enchendo o ambiente de calor e familiaridade.
Isadora, já sentada à mesa, desenhava no caderno enquanto cantarolava uma música inventada na hora, sem grandes preocupações.
Valentina largou a mochila encostada na parede e lavou as mãos na pia da cozinha improvisada, o pensamento ainda meio longe, preso nas imagens de Verena.
Sentaram-se todos à mesa. A conversa corria tranquila: Ana Paula contava um caso engraçado do mercado, Isadora mostrava seu desenho e até Carlos, o pai, parecia mais leve depois de um dia de trabalho cansativo.
Valentina ria das histórias, participava das conversas, mas por dentro, lutava contra o turbilhão que sentia. Seu corpo estava ali, mas seu coração, seu pensamento, estavam a quilômetros de distância.
Quando terminaram, ela ajudou a mãe a tirar a mesa e, com a desculpa de terminar um dever de escola, subiu para o quarto.
Quarto de Valentina – Mais tarde
Valentina deitou-se na cama de solteiro, a luz apagada, ouvindo apenas a respiração leve de Isadora adormecida na cama ao lado.
O celular estava embaixo do travesseiro. Ela o puxou, desbloqueou a tela e colocou para tocar a mesma música de antes, agora nos fones de ouvido.
"Sei que o amor é uma coisa boa..."
Fechou os olhos por alguns segundos, deixando-se levar pela melodia. Mordeu levemente o lábio inferior, um misto de culpa e desejo sufocando seu peito. Queria não ter recebido aquele video... Porque sabia que cada vez ficava mais difícil tirar Verena da cabeça.
Deixou a música seguir tocando baixinho, enquanto passava o dedo suavemente sobre a tela, contornando o rosto da deputada como se pudesse, de alguma forma, estar mais perto.
Sentia-se tão patética, tão errada... e, ainda assim, tão viva.
Fechou o celular com um suspiro, apertando-o contra o peito por um breve instante antes de escondê-lo debaixo do travesseiro outra vez.
Se fosse pecado, pediria perdão depois. Mas agora... só queria sentir.
Fim do capítulo
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jake
Em: 14/06/2025
Eita que Valentina percebeu que está apaixonada...Verena arrasando no plenário como sempre...Silvia sendo assediada...Verena tentando salvar seu casamento será que vai conseguir? Autora cada vez mais amando a história e curiosa pra saber o desenrolar da vida dessas 3 mulheres e mto curiosa pra saber Oque vc planejou pra Rafa...
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anonimo2405 Em: 17/06/2025 Autora da história
Oiee!
Obrigada pela carinho! Espero continuar te surpreendendo sempre!