Capítulo 17
Ninguém liga a seta nesta cidade?
O carro que estava na minha frente simplesmente virou numa rua, sem nenhum aviso prévio. Eu tive que frear repentinamente. Bufei. Cheguei na agência dos correios já irritada. Por sorte — dele, não minha — não era o mesmo cara que me atendeu da outra vez. Eu estaria muito disposta a dar uma resposta nada educada para as perguntas invasivas. Mas era uma moça mais ou menos da minha idade, que foi super simpática e profissional. Postei os dois quadros que tinha vendido na última semana. Apesar de o lucro não ser muito, era alguma coisa. Aproveitaria o dinheiro para comprar novas tintas e telas pela internet, já que ali eu não conseguia achar nada do que precisava.
Voltei para o carro de Ciça. Ela não me deixou ir a pé, disse que era longe. E também que eu teria que carregar duas telas. Não era nada demais, nada que eu não estivesse habituada. E nem era tão longe assim. Mas Ciça deixou o carro comigo e foi trabalhar. Estacionei em frente a minha casa, desci e apertei o alarme. Subi o primeiro degrau e parei. Olhei de novo para o carro dela e senti um frio na barriga. Uma coisa meio adrenalina com felicidade. Como se nós fossemos um casal com uma rotina compartilhada. Eu usando o carro dela, sem ela. Sabendo que ela voltaria para casa depois do expediente. E que jantaríamos juntas. Uma rotina leve e tranquila. Mas não era para sempre. Eu não ficaria. Virei para frente de novo e subi para casa. Sentir. Só sentir. Não pensar.
Desde a nossa primeira vez na minha casa, não tínhamos nos desgrudado mais. Exceto nos dias em que eu tentei, sem sucesso, me afastar e ir mais devagar. Outras duas semanas tinham se passado com nós duas dormindo juntas todos os dias. Conversamos sobre as camadas mais profundas das nossas vidas. Me abri para Ciça como há muito tempo não fazia. A cumplicidade que tínhamos tornava tudo muito leve, fácil e gostoso. Eu não via o tempo passar e pintava com facilidade já que, como estava bem, minha criatividade estava super aflorada.
*****
Fui tirando os ingredientes da sacola sob o olhar divertido de Marcela. Ela até tentou, mas não conseguiu evitar o riso quando eu disse que naquele dia eu faria nosso almoço. Eu estava arriscando, poderia ficar bom — não excelente, porque eu não tinha tanta competência — como poderia ficar horrível. Mas queria cozinhar para ela. Fui na receita simples que já havia feito várias outras vezes.
— Já que você vai cozinhar, vou adiantar uma tela, pode ser?
Respondi sem olhá-la, ocupada abrindo pacotes e latas:
— Tá bom…
Só me virei para olhar quando ouvi um barulho de coisas sendo arrastadas e percebi que ela tinha levado o cavalete, com uma tela pequena, para a cozinha. Não precisei perguntar, ela logo justificou:
— Vou pintar aqui pra te fazer companhia…
Eu sorri, larguei o pacote de macarrão e fui até ela, que também largou o pincel para me receber e me beijar.
Depois de muitos minutos, voltei para a minha tarefa e ela para a dela. Marcela colocou música para tocar. Fomos conversando enquanto cada uma dava conta do seu trabalho. Eu preparei o macarrão e os molhos. Ela tinha pequenas manchas de tinta no rosto. Montei nossa lasanha na travessa enquanto ela pincelava a tela, cantando junto com a música. Por alguns segundos eu parei e só fiquei aproveitando o momento. Parecia que eu estava em um sonho. Quando coloquei a travessa no forno, me aproximei querendo ver o que ela estava pintando, mas Marcela me impediu:
— Calma, tô quase finalizando. Quero que você veja pronto.
Eu obedeci. Fiquei sentada no balcão. Conversamos por um tempo, até ela dizer:
— Pronto.
Sorriu para mim e me chamou:
— Vem ver.
Me levantei e caminhei até parar ao lado dela. Arregalei os olhos, olhei para ela, olhei de novo para a tela e perguntei:
— Sou eu?
Ela me abraçou pela cintura e beijou meu rosto:
— Não tá parecida?
Eu continuei em choque:
— Sim… Mas…
Olhei para ela e sorri:
— Você foi bastante gentil comigo…
O quadro era absolutamente lindo. Com cores lindas. Meu rosto pintado dos ombros para cima. Numa visão que eu jamais teria de mim mesma.
Marcela beijou minha boca:
— Claro que não. Esse foi o máximo que eu consegui, mas pintura nenhuma chegaria perto de traduzir você, meu amor.
Eu senti vertigem. Meu amor. Puxei o rosto dela e a beijei com tanto ímpeto que o banco alto em que ela estava balançou. Rimos dentro do beijo, mas não afastamos os lábios. Ela me abraçou entre as pernas, eu enfiei meus dedos no cabelo dela. Com a outra mão procurei pele por debaixo da camisa. Marcela suspirou. Eu gemi. E quase soltei um palavrão quando ela afastou a boca da minha.
— Ciça…
A dificuldade dela era a mesma.
— Hum?
Voltei a beijá-la e ela voltou a nos separar:
— A lasanha…
Tinha me esquecido completamente do nosso almoço. Suspirei resignada. Ainda roubei alguns beijos antes de realmente me afastar e ir até o forno. No momento certo, pois já estava começando a queimar no fundo.
Depois que comemos, fiquei olhando encantada para a visão que Marcela tinha de mim, naquela tela. Ela estava sentada ao meu lado, me olhando divertida.
— Como você conseguiu me pintar se eu estava a maior parte do tempo de costas pra você?
Ela soltou uma risada, depois me olhou:
— Não preciso olhar você, tenho cada detalhe guardado na minha mente.
Pensei, pensei, pensei e não cheguei a conclusão alguma. Resolvi pedir ajuda. Precisava de um presente perfeito. Conversei com Diego e Isabela. Tinha pouco tempo, dez dias até o aniversário de Marcela.
— Flores. Não tem como errar, é romântico e clássico.
Sim, eu tinha pensado na ideia que Isabela me deu na noite anterior, mas não queria só isso. Precisava de algo mais.
— Pensa nas coisas que ela gosta, Ciça…
Olhei para Diego, depois fechei os olhos:
— Arte. Eu sei que ela gosta de arte. Mas eu não tenho capacidade pra escolher alguma coisa… Eu não entendo de arte.
Diego juntou as mãos e apoiou o queixo, com um semblante super compenetrado, como se estivesse diante de um problema matemático que precisava ser resolvido.
— Uma foto de vocês juntas?
Eu balancei a cabeça na hora:
— Não! Nós não temos esse tipo de relacionamento ainda.
Ele me encarou confuso:
— Ué, que tipo de relacionamento vocês têm, então? Dormem juntas, fazem as refeições juntas… todos os dias! Isso é o quê?
Eu respirei fundo. Também queria muito saber. Mas tinha receio de conversar com Marcela e parecer uma louca emocionada.
Fui para casa ainda pensando. Estava ficando sem tempo. Os dias foram passando, até chegarmos a três dias do aniversário dela. Resolvi seguir o que eu achava que deveria. Juntei as ideias dos meus amigos. Comprei um buquê de rosas vermelhas. Fiz uma carta a mão, com colagens das poucas fotos que tínhamos tirado juntas. E uma pulseira de prata delicada, que embrulhei cuidadosamente. Deixei tudo pronto na minha casa.
No dia seguinte, no fim do expediente, fui para a casa dela, como já tinha se tornado rotina. Quando fomos deitar, Marcela me pegou de surpresa:
— Posso te pedir uma coisa?
Eu me virei de lado, deitando de frente para ela. Acariciei seu rosto antes de responder:
— Claro…
Ela me olhou por uns segundos e depois falou:
— Queria que você almoçasse comigo no sábado… Na casa da tia Rita.
Emudeci. Meu estômago revirou. Ela continuou
— Fica tranquila, você vai como minha amiga, não vou falar nem fazer nada.
Eu continuava calada.
— Minha tia vai fazer um almoço pra mim… Disse que eu posso convidar quem eu quiser. E eu queria… que você estivesse comigo.
Olhei para ela. Por mais que eu não estivesse nem um pouco a vontade com aquele convite, não conseguiria dizer “não” para Marcela, ainda mais no aniversário dela:
— Tá bem…
Ela me presenteou com um sorriso que me faria falar “sim” para o que ela quisesse.
— Vai ser tranquilo, eu prometo.
Eu sorri e a puxei para ficar sobre mim:
— Agora eu posso te pedir uma coisa?
Ela aquiesceu, balançando a cabeça.
— Quero te levar pra jantar amanhã.
O sorriso de Marcela quase me derreteu:
— No restaurante da cidade?
Eu fiz uma careta para a implicância dela:
— Não… Em outro restaurante aqui perto. Aceita?
Busquei Marcela às oito em ponto. Fui me aprontar na minha casa para ser mais rápido. Eu subi, já que ela ainda não estava pronta. Fiquei sentada no sofá da sala. Quando ela finalmente apareceu, quase me causou uma parada cardíaca. Sublime, num vestido preto, os cabelos presos num coque, uma maquiagem leve que realçava o rosto perfeito.
— Aprovada?
Eu me levantei e cheguei perto dela, mas não a toquei:
— Já não vejo a hora desse jantar terminar.
Me afastei antes que não pudesse me controlar.
O restaurante era na cidade vizinha, cerca de quarenta minutos de carro. Ficamos lá por umas duas horas, até eu sugerir:
— Vamos? Ou quer mais alguma coisa?
Ela concordou. Chegamos de volta faltando dez minutos para a meia-noite. Quando entramos no apartamento, ela me beijou, me puxando para o quarto. Eu pedi no meio do beijo:
— Espera, esqueci uma coisa no carro…
Marcela me olhou impaciente, antes de voltar a me beijar:
— Amanhã…
Eu interrompi de novo:
— É rapidinho, prometo.
Ela me olhou e concordou. Eu desci rápido e peguei o buquê, o espumante que havia deixado em um cooler no porta-malas e os presentes. Quando voltei para a sala, ela estava sentada. Sorriu quando viu o que eu segurava. Olhei para o relógio. Ela se levantou e se aproximou, antes de eu falar:
— Ainda faltam três minutos… mas acho que já podemos começar a comemoração.
Entreguei o buquê com a carta. Marcela me agradeceu beijando meus lábios. Abriu o pequeno embrulho e depois o envelope. Sorriu enquanto lia minhas palavras. Voltou a me beijar. Meia-noite. Tirei o buquê das mãos dela e a abracei:
— Feliz aniversário, meu amor.
O espumante abrimos no quarto. Marcela ainda não tinha taças, mas daquela vez não precisamos de copo. Bebemos uma no corpo da outra, de uma maneira muito mais deliciosa.
*****
Abri os olhos devagar. A primeira coisa que vi foi a garrafa quase vazia no chão do quarto. A lembrança me fez sorrir e voltar a fechar os olhos. Me virei e encontrei Ciça. A abracei por trás e beijei o pescoço dela devagar. Ela suspirou e se virou para mim, ainda de olhos fechados:
— Feliz aniversário…
Eu ri e a beijei:
— Obrigada, meu amor… Adorei os meus presentes…
Ela abriu os olhos:
— Todos eles?
Me coloquei em cima dela:
— Todos… Mas em especial o que você me deu aqui nessa cama…
Nossos lábios se encontraram, mas eu os afastei quando meu celular tocou. Atendi sem sair de cima de Ciça:
— Oi, tia… Sim… Já vou… Aham… Pode deixar…
Quando desliguei, falei:
— Temos que ir, já está tudo pronto.
Ciça respirou fundo, como se estivesse tomando coragem. Nos levantamos e nos vestimos. Quando estávamos na calçada, ela me perguntou:
— Vamos chegar juntas?
Eu sorri e falei com naturalidade, como se fosse a mais absoluta verdade:
— Sim, eu te liguei e você veio. Fiquei te esperando aqui para subirmos juntas. Vem…
Abri o portão e subi com Ciça atrás de mim. Meus tios e meus primos me desejaram feliz aniversário, Ciça cumprimentou todos. Sentamos à mesa. Minha tia puxou uma oração, emendou um pai-nosso, ave-maria, uma outra que eu não conhecia e por fim fomos comer. Comemos conversando. Na sobremesa senti que Ciça estava um pouco mais relaxada. Depois ficamos na sala, tia Rita trouxe álbuns de fotos da família. Quando acharam uma foto minha criança, minha tia logo passou para Ciça:
— Olha, na época em que Marcela morou aqui…
*****
Passada a tensão inicial, eu tinha ficado mais tranquila. Quando fomos para a sala, Rita apareceu com os álbuns antigos, rimos de muitas fotos, reconheci várias pessoas da cidade que apareciam mais novas, até que me passaram uma foto de Marcela quando criança. Eu peguei a imagem e paralisei. Fiquei completamente imóvel, enquanto elas continuavam conversando. Não estava acreditando. Era ela. Aquela Marcela era a minha Marcela. Ela existia, não era fruto da minha imaginação.
Fim do capítulo
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Raf31a
Em: 02/05/2025
Curiosa para saber sobre essa lembrança que Ciça tem da Marcela.
Retomando o comentário anterior: acho que Ciça vai se declarar primeiro e Marcela vai fugir. ????
AlphaCancri
Em: 04/05/2025
Autora da história
Ciça vai te explicar no capítulo de hoje rsrs
Será? Ou vai ser Marcela a se declarar e Ciça ficar apavorada?
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AlphaCancri Em: 05/05/2025 Autora da história
Oi, Dessinha! Fico feliz que tenha gostado do capítulo. É lindo um amor florescendo, né?!
Obrigada pelo seu comentário :)