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Entre Votos e Silencios por anonimo2405

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Palavras: 12880
Acessos: 1105   |  Postado em: 29/04/2025

Frestas

A sexta-feira amanheceu mais lenta do que o habitual, como se até o tempo conspirasse com o peso nos ombros de Verena. O céu nublado refletia sua confusão interna — uma mistura inquietante de culpa, desejo e dúvida. Ela não era mulher de se perder em sentimentos, ou pelo menos não costumava ser.

Enquanto os carros zuniam lá fora, ela permanecia sentada à beira da cama, o roupão ainda entreaberto, o cabelo solto cobrindo parte do rosto. A casa estava em silêncio, Silvia ainda dormia. E, pela primeira vez em dias, Verena não queria levantar. A lembrança do toque sutil da mão de Valentina sobre a sua — acidental, mas carregado de significados que ela se recusava a nomear — vinha em flashes.

Pegou o celular. Nenhuma mensagem importante. Nenhuma desculpa para escapar de si mesma.

Levantou-se. Ajeitou os óculos, os cabelos, a própria roupa como quem veste uma armadura para sobreviver ao dia. 

...

Na cozinha, Silvia já preparava café, animada com os planos para o sábado.

— A Rafa confirmou? — perguntou Silvia, colocando um pão na torradeira.

— Confirmou — disse Verena, sem muita animação.

Silvia percebeu, mas preferiu não comentar. Verena andava distante nos últimos dias, mas o que a animava era a ideia de que, finalmente, talvez estivessem mesmo falando sério sobre ter um filho. Era algo que há tempos ela queria... e que, por alguma razão, Verena sempre protelava. Agora, parecia possível. Real. Ela preferia focar nisso.

Verena, por outro lado, tinha outros fantasmas. Cada vez que pensava em Valentina, em sua postura doce, em seu olhar inquieto tentando sempre parecer à vontade... algo a corroía por dentro. O pior era que ela não sabia exatamente o que sentia. Curiosidade? Cuidado? Atração? Tudo isso junto?

E, por mais que odiasse admitir, parte de si esperava por mais momentos acidentais. Por mais silêncios compartilhados. Por mais chances de sentir algo — mesmo que aquilo pudesse significar o fim de tudo que construiu.

Ainda era sexta-feira. O final de semana só estava começando. Mas Verena já sabia: descanso seria um luxo que não teria.

...

O sábado amanheceu silencioso no apartamento de paredes claras e grandes janelas voltadas para a cidade. Verena se levantou antes de Silvia, como sempre. Já estava com a cabeça longe, mesmo com os pés ainda descalços no chão do quarto.

Preparou o café da manhã com cuidado. Cortou as frutas em cubos pequenos, colocou o pão na torradeira, esquentou o leite. Queria fazer algo diferente, mas simples. Uma tentativa quase infantil de voltar a um ponto onde talvez ainda fosse possível amar com tranquilidade.

Silvia apareceu na cozinha com o rosto sonolento e os cabelos lisos levemente bagunçados. Usava uma camiseta larga e um short de algodão. Sorriu ao ver a mesa posta.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou, puxando uma cadeira.

— Não posso querer cuidar da minha esposa num sábado de manhã?

Silvia riu de leve, mas seus olhos buscaram algo mais no rosto de Verena. Não encontraram.

O café foi tomado com conversas leves. Notícias da semana, algumas piadas sobre o gato do vizinho e reclamações de barulhos do andar de cima. Verena se esforçava, mas havia sempre uma pausa longa demais entre uma frase e outra. Sempre um olhar que caía para a xícara ao invés de encontrar os olhos de Silvia.

Quando terminaram, Verena se aproximou por trás, passando os braços pela cintura da esposa e pousando o rosto em seu ombro.

— A gente podia passar o dia juntas hoje… sair, ou ficar por aqui mesmo… fazer algo só nosso.

Silvia virou o rosto levemente e beijou sua bochecha.

— Eu adoraria.

O dia seguiu entre pequenos gestos e tentativas de conexão. Verena deixou o celular de lado. Assistiram um filme, riram de besteiras, cozinharam juntas como faziam no começo do relacionamento. Havia afeto, havia parceria. Mas no fundo, em Verena, havia também um vazio que nada daquilo preenchia.

À noite, Verena serviu duas taças de vinho e colocou uma música suave. Silvia ajeitou a blusa, cruzou as pernas no sofá e a olhou com ternura.

— O que foi? Tá me olhando assim por quê?

Verena hesitou, depois se aproximou e sentou ao seu lado. Tocou o rosto da esposa com carinho.

— Tô tentando lembrar da última vez que a gente... se tocou com calma, com vontade. Você sente falta?

Silvia a olhou com surpresa, mas não com frieza.

— Claro que sinto, Vê. Mas às vezes eu acho que... você não quer mais. Ou não se importa mais.

Verena baixou o olhar.

— Eu me importo. Eu só... me perco às vezes. Fico presa nas coisas do trabalho, nas preocupações, nos mil pensamentos que não me deixam dormir.

Silvia segurou sua mão.

— Se for só isso, a gente resolve. Mas se for outra coisa... eu preciso saber.

Verena forçou um sorriso. Se inclinou e a beijou devagar. Queria que aquilo bastasse. Queria que aquele beijo reacendesse algo dentro de si. Talvez bastasse. Talvez aquela noite pudesse ser só delas.

Ela se levantou em silêncio e pegou o controle remoto. A TV foi ligada, e a primeira música da playlist favorita de Silvia preencheu o ambiente.

"Vivir Sin Aire", do Maná, começou a tocar com aquela melodia suave, intensa, impregnada de uma nostalgia impossível de ignorar.

Silvia ergueu o rosto, surpresa, e sorriu.

— Essa música... faz tempo que você não coloca.

Verena apenas estendeu a mão para ela.

Silvia se levantou, os pés descalços deslizando pelo tapete. As mãos se tocaram devagar, como se retomassem um hábito antigo e esquecido. Os corpos se aproximaram, e logo estavam ali, dançando no centro da sala, com as luzes baixas e a cidade acesa do outro lado da janela.

Era uma dança calma, sensual, quase silenciosa. Os gestos eram delicados, mas carregados de intenções. As mãos de Silvia passeavam pelas costas de Verena, e seu rosto repousava perto do pescoço da esposa, respirando ali, naquele lugar seguro. Verena fechou os olhos, deixando-se levar por aquele calor, aquele toque, aquele momento que deveria bastar.

Mas então a letra da música tocou um ponto fundo e doloroso.

"Cómo quisiera poder vivir sin ti..."

"Pero no puedo, siento que muero..."

As palavras bateram fundo. Era impossível não lembrar dos olhos de Valentina, dos gestos tímidos, do toque breve das mãos. Da confusão que crescia dentro dela como um incêndio mudo. Verena tentou se manter ali, presente, mas sem perceber, seus passos hesitaram. O corpo desacelerou. A cabeça já estava em outro lugar.

Silvia sentiu. Recuou levemente, os olhos buscando os dela.

— Verena... tá tudo bem?

Verena piscou, como se acordasse de um transe. Soltou um leve riso sem graça.

— Tô… tô só cansada. Fiquei meio zonza, só isso.

— Quer sentar? — Silvia perguntou, preocupada.

Mas Verena balançou a cabeça. Em vez disso, puxou a esposa para perto e a beijou, dessa vez com mais intensidade, mais pressa. Como se quisesse se agarrar à única coisa que ainda podia fazer sentido.

O beijo cresceu, se aprofundou, e logo as roupas começaram a ser abandonadas no caminho entre a sala e o tapete macio. Foi ali mesmo, sob a meia-luz da TV e a voz melancólica de Maná, que fizeram amor — com as mãos buscando respostas, os corpos tentando relembrar o que antes era simples, natural.

Verena se entregou com esforço, como quem luta contra a corrente, tentando crer que bastava estar ali. Que bastava Silvia. Mas, no fundo, uma parte dela sabia: havia começado a cair. E talvez não houvesse como voltar.

...

A madrugada avançava quando Verena se levantou, com cuidado para não acordar Silvia, que dormia com o rosto parcialmente coberto pela almofada do sofá. A sala ainda tinha o aroma da noite — vinho adormecido nas taças, os corpos entrelaçados, a música que já havia terminado há horas.

Caminhou até a varanda, vestindo sua própria camisa, enquanto Silvia, encolhida no sofá, repousava envolta na dela — a camisa social de Verena, grande demais para o corpo delicado da esposa, lhe caía como um vestido desleixado, mas doce.

Na varanda, acendeu um cigarro com os dedos trêmulos. A brisa da cidade era fria, mas nada comparado ao turbilhão que se agitava dentro dela.

A noite havia sido bela, íntima… mas ainda assim, incompleta.

Ela fechou os olhos. A música ainda pulsava em sua mente:

"Cómo quisiera poder vivir sin aire... Cómo quisiera poder vivir sin ti..."

Sentiu um aperto no peito. Silvia não merecia carregar o peso de sua confusão. Mas também, Valentina não fazia ideia da tormenta que provocava apenas com um olhar.

O céu começava a clarear timidamente no horizonte quando Verena apagou o cigarro e voltou para dentro. Deitou-se ao lado da esposa e a abraçou pelas costas, tentando se convencer, mais uma vez, de que aquele era o lugar certo para estar.

Mas a dúvida já havia se instalado. E não iria embora tão fácil.

 

Dia Seguinte

A luz suave da manhã atravessava as frestas da cortina, projetando linhas douradas sobre o sofá da sala. O silêncio era gentil, quebrado apenas pelo leve som do trânsito distante e o respirar tranquilo de Silvia.

Verena foi a primeira a abrir os olhos. Por um momento, ficou ali, imóvel, observando a esposa dormir com a cabeça apoiada em seu peito. O cabelo castanho escuro de Silvia estava um pouco bagunçado, e a camisa social que vestia — grande demais para seu corpo — lhe dava um ar ainda mais vulnerável, quase infantil.

Verena sorriu, de um jeito pequeno, quase imperceptível. Passou a mão devagar pelos fios da esposa, afastando-os do rosto. Silvia se remexeu levemente, ainda sonolenta, e murmurou com a voz rouca:

— Bom dia... — Ela ergueu os olhos, preguiçosamente. — Você tá me olhando assim por quê?

— Porque você fica linda vestida com a minha camisa. — Verena respondeu, com um sorriso cansado, mas genuíno.

Silvia sorriu também, e levou os dedos ao botão do colarinho aberto. — Ela quase chega no meu joelho... Eu pareço uma criança brincando de adulta.

— Uma criança muito sexy, então — sussurrou Verena, puxando-a mais para perto.

Silvia se deitou novamente sobre ela, aconchegando-se, enquanto suas mãos buscavam o calor do corpo da esposa. Trocaram beijos lentos, sem urgência. Era um momento de reencontro silencioso, sem pressa, como se o mundo lá fora pudesse esperar mais um pouco.

— Eu senti sua falta... — murmurou Silvia, com a voz abafada contra o pescoço de Verena.

— Eu sei. — Ela a envolveu com os braços. — E talvez... talvez eu precise fazer isso funcionar. Com você. Com a gente.

Silvia não respondeu. Apenas a abraçou com mais força, deixando o silêncio falar por elas.

Ali, naquela manhã embaçada de São Paulo, com as sombras da noite anterior ainda pairando no ar, Verena quis acreditar que seria possível.

Mesmo que uma parte dela, bem no fundo, ainda estivesse presa em um olhar tímido e casto, escondido em algum corredor da Assembleia.

...

A cozinha era preenchida pela luz dourada da manhã, agora mais viva. Silvia estava de pé junto à bancada, os cabelos ainda um pouco bagunçados, a camisa larga de Verena pendendo dos ombros com charme despretensioso. Ela cantarolava uma melodia suave enquanto preparava o café, com um sorriso discreto no rosto.

Verena surgiu poucos minutos depois, já com sua própria camisa de dormir — uma camiseta velha da faculdade que Silvia adorava — e os óculos um pouco tortos no rosto, ajeitados com um gesto automático. Parou por um instante na porta da cozinha, observando a mulher que amava como se fosse a primeira vez. A luz desenhava contornos suaves no corpo de Silvia, e por um segundo, Verena quis congelar o tempo ali.

— Vai ficar só olhando? — Silvia perguntou, sem se virar, com a voz ainda rouca da noite bem dormida.

Verena sorriu de canto e foi até a fruteira. Pegou uma maçã, lavou com calma e a começou a cortar em fatias finas, seus movimentos precisos, quase cerimoniosos.

— Só estou admirando a vista.

Silvia riu, pegando duas xícaras e servindo o café. Quando se virou, encontrou Verena com uma fatia de maçã estendida em sua direção.

— Experimenta essa. Tá doce.

Silvia aproximou-se e mordeu delicadamente a fruta, mantendo os olhos presos nos de Verena.

— Uhum… bem doce mesmo. — Murmurou, com um sorriso malicioso.

Verena arqueou uma sobrancelha e pegou uma uva da tigela próxima, fazendo o mesmo gesto: estendeu-a à esposa com dois dedos, e Silvia aceitou a fruta direto da mão dela, como num pequeno ritual. Entre uma mordida e outra, os olhares se prolongavam mais que o necessário.

— Você tá tentando me seduzir com frutas, Castilho? — Silvia provocou, apoiando-se na bancada.

— Eu sou multitarefas. Corto fruta e seduzo ao mesmo tempo. — Verena respondeu, pegando outra maçã e agora levando diretamente à boca da esposa, com um toque nos lábios que se transformou num beijo roubado.

Silvia soltou um riso leve, se afastando fingindo indignação.

— Se eu soubesse que essa manhã ia ser assim, teria fingido dormir mais um pouco.

— Mas aí perderia isso aqui — Verena respondeu, abraçando-a por trás, com os braços em torno da cintura. — A gente, sem pressa. Isso é raro, Silvia.

— É… é raro mesmo — Silvia murmurou, inclinando a cabeça para trás, apoiando-a no ombro da esposa.

Ficaram assim por alguns segundos, embaladas pelo cheiro de café recém-passado e pelo calor do corpo uma da outra.

Silvia então virou-se, pegou uma torrada e ofereceu para Verena, repetindo o gesto de antes.

— Sua vez agora.

Verena mordeu a ponta, com um sorriso debochado.

— Agora sim posso dizer que comecei o dia bem alimentada.

Silvia riu e rolou os olhos, puxando-a pela mão até a mesa, onde o café da manhã estava praticamente pronto. Sentaram-se juntas, os joelhos se encostando, os sorrisos surgindo espontâneos entre os goles de café.

Era uma manhã comum. Mas pra Verena, naquele instante, parecia quase perfeita. Quase.

Porque, mesmo naquele cenário tranquilo, ainda havia um canto em sua mente onde o nome de Valentina ecoava em silêncio.

...

O templo estava repleto de vozes em uníssono, o coral da igreja entoando um hino antigo com fervor. Valentina mantinha os olhos fechados enquanto acompanhava a melodia com os lábios, a cabeça levemente curvada, os dedos entrelaçados sobre o colo. O vestido azul claro, simples e modesto, cobria os joelhos e combinava com o coque discreto que sua mãe havia ajudado a prender mais cedo. Aos olhos dos demais, era a imagem da obediência e da fé.

Ana Paula, sentada ao lado, mantinha uma das mãos sobre o ombro da filha, num gesto carinhoso e vigilante. O pai de Valentina, sempre sério, ouvia atento o sermão do pastor que falava sobre “caminhos de luz e caminhos de perdição”. A mensagem, como quase todas, parecia mirar diretamente no coração inquieto da jovem.

Valentina mantinha a postura, mas sua mente passeava por outros corredores — corredores com paredes bege, arquivos altos e janelas grandes. Pensava no gabinete. Em Verena. Em Rafaela e suas tiradas ousadas. Em como seus dedos haviam roçado nos dela, por acidente, naquela sexta-feira. Ou teria sido intencional?

A voz do pastor se elevou.

— E mesmo aqueles que caem podem ser resgatados pela graça! Desde que reconheçam o erro e escolham o caminho certo!

Valentina piscou lentamente, voltando ao presente. Sentiu o olhar da mãe ao lado, como se soubesse que a filha havia se ausentado por um instante — não do templo, mas de si mesma.

Após a missa, a comunidade se dispersava com saudações calorosas. Ana Paula conversava com uma senhora do círculo de oração, enquanto o pai trocava um aperto de mão com outro membro antigo da igreja. Valentina olhava para o céu, azul, limpo, com uma brisa leve que balançava a barra do vestido.

— Vamos por ali, Val? — disse a mãe, apontando o caminho de volta. — Seu pai quer passar na padaria.

A rua era tranquila, com casas simples e jardins bem cuidados. As calçadas tinham sombras projetadas por árvores antigas. Caminhavam lado a lado quando uma voz familiar se fez ouvir ao longe.

— Ana Paula?

A mulher se virou com o mesmo sorriso cordial de sempre, que aos poucos foi se desfazendo.

— Lúcia… Olha só — respondeu, com surpresa moderada.

Do outro lado da rua vinha uma mulher bem-vestida, acompanhada de um rapaz de olhar tímido e terno impecável: Tiago. Os dois vinham da direção oposta, carregando uma sacola de pães. Tiago desviou o olhar ao ver Valentina, mas não conseguiu esconder o breve sorriso.

— Bom dia, Valentina — disse ele, num tom respeitoso.

— Bom dia, Tiago — respondeu ela, com um leve aceno, mantendo a compostura, mas sentindo o estômago revirar.

As mães trocaram algumas palavras formais, cordiais demais para esconder o desconforto. Era sabido que Lúcia alimentava esperanças de ver Tiago e Valentina juntos um dia. Ana Paula, embora não se opusesse abertamente, carregava dentro de si as mesmas expectativas — uma união “correta”, “abençoada”. Valentina sabia disso. Todos sabiam.

— Ele está indo muito bem nos estudos — disse Lúcia, orgulhosa. — Direito, como a prima famosa.

Ana Paula sorriu, mas Valentina apenas assentiu, sentindo-se apertada naquele momento, como se vestisse uma roupa que não era sua.

— Que bom — disse, tentando parecer natural. — Muito bom, Tiago.

— Você… está gostando do estágio? — ele perguntou, com um leve rubor no rosto.

Ela hesitou por um instante, lembrando do elevador, do roçar de mãos, da sensação estranha e quente que invadia o peito só de lembrar o perfume de Verena.

— Sim… estou aprendendo bastante.

Silêncio. O vento soprou novamente, e as sacolas de pão balançaram.

— Bom, vamos andando — disse Ana Paula, com um sorriso rápido. — Foi bom vê-los.

— Igualmente — respondeu Lúcia, puxando Tiago delicadamente.

Enquanto caminhavam, Valentina manteve os olhos no chão, a cabeça cheia de vozes — algumas doces, outras perigosas demais. A cada passo, sentia-se mais dividida entre os caminhos daquilo que acreditava ser certo… e o que começava a desejar.

...

O portão rangeu suavemente quando Valentina o empurrou. O sol já ia baixando, lançando tons dourados sobre o quintal simples, com plantas em vasos de plástico e um varal cheio de roupas balançando ao vento. O pai havia ido cuidar de um vizinho idoso, e Ana Paula se recolhera para ler a Bíblia no quarto. A irmã mais nova brincava no corredor com uma boneca de pano. Era domingo, mas Valentina sentia como se tivesse vivido uma semana inteira em poucas horas.

Jogou-se na cama, sem tirar o vestido, com o celular entre as mãos. A luz entrava pelas frestas da cortina, desenhando riscos no lençol estampado com flores roxas.

Abriu o aplicativo de mensagens e encontrou o contato de Carol — sua melhor amiga desde o ensino fundamental, confidente de tudo, ou quase tudo.

Val:

Oi. Tá ocupada?

A resposta veio rápida.

Carol:

Pra você nunca. Fala, o que rolou?

Valentina hesitou, os dedos pairando sobre a tela. Apagou a primeira tentativa. Tentou de novo.

Val:

Só… tô estranha. Com uma sensação ruim, sei lá. Tipo… confusa com umas coisas.

Carol:

Confusa com “umas coisas”? Hm. Isso tá com cara de nome, sobrenome e crush. Acertei?

Valentina sorriu de leve, mas logo o sorriso morreu. Olhou pro teto, respirou fundo.

Val:

Não é bem isso. Acho que tô ficando meio doida. Pensando em coisas que não deveria.

Carol:

Coisas que não deveria tipo o quê? Val, pelo amor, se abre logo. Você sempre trava e depois explode.

Ela demorou. Apagou três frases. Digitou mais uma e reescreveu.

Val:

Sabe quando você sente algo… que te tira o ar? Que te faz querer correr, mas ao mesmo tempo ficar?

Carol:

Ok, isso definitivamente tem nome e endereço. Você tá apaixonada, é isso?

Val:

Não sei. Acho que não posso. Não devo.

Carol:

Você não tá sozinha nisso, tá? Seja lá o que for, tô aqui. Mas cuidado com quem te faz sentir que “não pode”.

Valentina sentiu um nó na garganta. Pensou em contar, abrir tudo, dizer que era por uma mulher. Que essa mulher era sua chefe. Que era casada. Mas a coragem ainda não vinha.

Val:

Obrigada. Só precisava tirar um pouco do peso.

Carol:

Tira mais se quiser. Tô aqui. Mesmo que você só mande pontos de interrogação.

Valentina sorriu de novo, dessa vez com os olhos marejados.

Val:

Obrigada mesmo. Amo você.

Carol:

Amo também. Vai ficar tudo bem, tá? Só não carrega isso sozinha.

Fechou o celular devagar, deitou de lado e abraçou o travesseiro. Do outro lado da casa, ouvia a mãe cantarolando um louvor baixinho. O mundo parecia dividido entre o que podia ser e o que jamais deveria.

Mas dentro de si, algo crescia. Ainda pequeno, tímido, e talvez errado. Mas impossível de ignorar.

...

A segunda-feira amanheceu com um céu acinzentado sobre São Paulo, mas, por dentro, Verena parecia menos carregada do que nos últimos dias. O final de semana com Silvia — apesar das dores latentes que persistiam em silêncio — havia trazido uma trégua. Não uma cura, mas uma pausa.

Quando entrou no prédio da Assembleia Legislativa, ajeitando os óculos e os cabelos atrás da orelha com a naturalidade de quem fazia disso um ritual de armadura, não esperava estar sorrindo. Mas estava. Um leve sorriso, discreto. Um sinal de que, pelo menos naquele momento, escolheria manter-se em pé.

O corredor já fervilhava com passos apressados, vozes entrecortadas, café sendo passado em alguma sala. No gabinete, a porta estava entreaberta. E lá estava Rafaela, sentada de forma nada protocolar na ponta da mesa de apoio, os cabelos cacheados soltos, analisando algum relatório com cara de quem preferia estar em qualquer outro lugar — até que viu a amiga surgir.

— Bom dia, excelência — disse com um sorriso torto e um arqueio de sobrancelha carregado de malícia. — Veio com a pele renovada... Isso é skincare novo ou final de semana romântico?

Verena rolou os olhos, mas não conseguiu conter uma risada baixa. Tirou o blazer e pendurou com cuidado no encosto da cadeira.

— Não começa, Rafa. Ainda nem tomei café.

— Ah, mas eu tomei por nós duas. E já tô alimentada de curiosidade. Então? Teve playlist, vinho, velas aromáticas?

— Só faltou você lá narrando a noite — respondeu Verena, com ironia seca.

— Eu toparia fácil — Rafaela deu um salto leve, ficando de pé. — Agora me diz, e esse sorriso raro? Aposto que Silvia ficou feliz, né? Ou você ainda tá naquela de fuga emocional disfarçada de desejo por um bebê?

Verena pegou uma pasta, abriu de forma quase mecânica, mas a expressão endureceu. Olhou para a amiga por cima dos óculos.

— Já que você tá tão interessada, sim, a noite foi boa. Sim, eu mencionei o filho. E não, não foi só fuga emocional. A gente precisa de alguma coisa concreta pra se agarrar.

Rafaela se aproximou, mais séria agora, cruzando os braços.

— Eu entendo querer se agarrar em algo, Vê. Mas você precisa ter certeza de que não tá se agarrando à coisa errada. Porque filho não tapa buraco de relação. Só escancara os que já existem.

Verena não respondeu de imediato. Apenas voltou os olhos para a pasta. Mas a voz veio, baixa:

— Eu sei. Mas às vezes, fingir que está tudo certo é a única forma de não desmoronar de vez.

O silêncio entre as duas durou segundos. Então, Rafaela sorriu de leve, como quem entendia mais do que dizia.

— Só cuida do seu coração, mulher. E... se precisar de alguém pra carregar o bebê no colo e te lembrar de dormir, eu tô por aqui.

— Só se for pra ensinar piadas infames — murmurou Verena.

— Ué, educação bilíngue. Português e sarcasmo — piscou Rafaela, voltando à mesa. — E falando em coração... nossa jovem estagiária já chegou. Adivinha quem ela cumprimentou primeiro hoje?

Verena travou por um segundo, mas disfarçou.

— Já disse que você fala demais?

— E você sente demais — retrucou Rafa, já de costas, mas com a voz firme, direta como sempre.

Verena suspirou. Sentou-se. Abriu a pasta e encarou os papéis como se neles pudesse encontrar uma fuga. Mas o perfume suave de uma juventude que não lhe pertencia pairava no ar do gabinete — e ela sabia.

A segunda-feira só estava começando.

Valentina entrou com uma pequena pilha de documentos, aparentemente entregue demais ao próprio nervosismo para notar o clima entre as duas. Seu cabelo dourado estava preso num coque malfeito e a blusa do uniforme social parecia um número maior, como se tivesse sido emprestada.

— Com licença… — disse ela, em voz baixa. — São os relatórios solicitados, deputada.

Verena assentiu sem olhar diretamente para a menina, como se aquilo a protegesse de si mesma. Valentina se aproximou da mesa para entregar os papéis, e foi então que Rafaela, observadora como sempre, captou um leve tremor na mão da estagiária — ou talvez tenha sido apenas a tensão do ambiente.

Assim que Valentina saiu, Rafa virou-se para Verena com um meio sorriso carregado de malícia.

— Que menina nervosa, né? Eu até brinquei com ela mais cedo no corredor e acho que deixei a coitada assustada. Falei que ela parecia uma freira infiltrada aqui dentro.

Verena cerrou os olhos, sem humor.

— Não brinca com ela assim.

— Ahhh… — Rafa sorriu, encostando-se à cadeira. — Entendi. A deputada anda protetora agora.

Verena ignorou o comentário e se levantou, indo em direção à copa. Precisava de café, e de ar. Muito ar.

Lá, de frente para a máquina de expresso, o celular vibrou em seu bolso. Era uma mensagem de Silvia.

“Bom dia, meu amor. Ainda pensando no nome 'Sofia'. Mas se for menino, que tal Miguel? Te amo.”

Verena sorriu de leve. Tocou a tela como quem queria segurar aquele sentimento, guardá-lo como abrigo. Mas quando virou o rosto, viu Valentina na copa, encostada na parede, tomando um chá e olhando para o vazio.

A lembrança da noite anterior e da dança com Silvia atravessou sua mente como um raio. Ela fechou os olhos por um segundo, tentando focar no presente. Na promessa que havia feito a si mesma. Mas aquela presença — frágil, jovem, e absurdamente carregada de simbolismos — desestabilizava qualquer coisa que ela tentasse construir por dentro.

Antes que pudesse dizer qualquer coisa, foi chamada por um assessor.

— Deputada, já estão na sala de reuniões.

Verena respirou fundo, ajeitou os óculos, o blazer, e deixou Valentina ali, com seu chá e seu silêncio.

...

A sala de reuniões estava cheia. Outros deputados, técnicos e secretários discutiam um novo projeto de lei sobre incentivos a empresas privadas. A proposta envolvia um repasse milionário de verbas públicas — um tema que fazia a pele de Verena arder. Não só por saber o que sabia, mas por carregar nos ombros a responsabilidade de parecer limpa.

Enquanto alguém apresentava os dados no telão, Valentina entrou discretamente, levando mais relatórios. Verena sentiu sua presença antes mesmo de vê-la. A menina parou atrás dela, sussurrando:

— Preciso da sua assinatura neste aqui, deputada.

O roçar de dedos ao passar o papel, ainda que breve, trouxe um arrepio incômodo. Verena assinou sem levantar os olhos, mas podia sentir os olhares invisíveis dentro de si mesma — aqueles que julgavam e acusavam, mesmo que ninguém visse nada.

Quando a menina saiu, Rafaela, sentada ao seu lado, virou-se com um movimento lento, como quem não precisava dizer nada, mas disse mesmo assim:

— Você precisa parar de se olhar no espelho e ver só a política, Verena. Tem um furacão no seu rosto.

Verena não respondeu. Apenas apertou a caneta entre os dedos com mais força.

 

No Dia Seguinte

A tarde chegava com o sol filtrando preguiçosamente pelas janelas da ALESP, iluminando os corredores silenciosos e o ambiente frio dos gabinetes. Valentina caminhava com passos contidos, ainda com o corpo levemente tenso depois do almoço apressado em casa. O conselho de classe naquela manhã havia cancelado as aulas, o que lhe deu tempo suficiente para se preparar com mais calma — não que isso a fizesse sentir-se menos deslocada naquele ambiente.

Com os cabelos presos de maneira simples e uma blusa branca de gola arredondada por dentro da calça preta social, ela entrou no gabinete sem chamar atenção. Mas não passou despercebida por Rafaela, que já estava recostada à mesa de canto com um copo de café nas mãos, como se estivesse esperando por algo.

— Olha só quem apareceu antes das duas — disse a ruiva, sorrindo com aquele tom que era brincadeira e provocação em doses iguais.

Valentina sorriu de leve, ajeitando a bolsa no ombro.

— Tive folga da escola hoje... teve conselho de classe.

— Que sorte a nossa — respondeu Rafaela, abrindo espaço no sofá de espera. — Quer um café? Ou prefere ficar aí toda tímida no canto feito visita?

Antes que ela pudesse responder, Verena apareceu pela porta do próprio gabinete, acompanhada por dois assessores. Seus olhos varreram rapidamente o ambiente, parando por um segundo mais longo do que o necessário sobre Valentina. Mas o olhar não era de reprovação, tampouco de interesse evidente — era como quem tenta evitar o que já é inevitável.

— Boa tarde — disse a deputada, direta, sem perder o tom formal.

— Boa tarde, deputada — respondeu Valentina quase num sussurro, abaixando os olhos.

Rafaela, por outro lado, notou a tensão no ar e cruzou os braços, se virando para Verena com um sorriso debochado.

— Dormiu bem no final de semana, Vê? Ou o romantismo foi tanto que você ainda tá em transe?

— Vai trabalhar, Rafaela — respondeu Verena, sem conseguir esconder o leve rubor nas bochechas.

A ruiva riu sozinha, se afastando.

Valentina fingia organizar papéis, mas sua atenção estava dividida entre o som da porta que se fechava e os pensamentos que teimavam em escapar do controle. Sentia-se mais nervosa que nos dias anteriores, como se algo estivesse prestes a mudar — mas não sabia exatamente o quê.

No silêncio daquele fim de tarde, com as luzes artificiais se impondo ao brilho natural que se esvaía lá fora, o ambiente se tornava mais denso. E Verena, do lado de dentro de sua sala, fitava a xícara de café na mão, tentando ignorar o fato de que, mesmo após uma noite intensa com Silvia, o pensamento insistente que lhe atravessava a mente não era sobre a esposa.

Era sobre os olhos baixos de Valentina... e o leve roçar das mãos que ainda perecima vivos sobre a pele.

...

O restaurante era discreto, a poucos quarteirões da ALESP. Frequentado por assessores, servidores e parlamentares, oferecia um respiro no meio do caos. Verena escolheu uma mesa perto da janela, onde o sol filtrado pelo vidro emprestava uma falsa calma à tarde corrida.

Rafaela chegou com seu passo leve, tirando os óculos escuros com um ar blasé e se jogando na cadeira diante da amiga.

— Pedi vinho? — perguntou, sem sequer olhar o cardápio.

— Não. — Verena ergueu uma sobrancelha. — Ainda é terça-feira, Rafa.

— E o que isso tem a ver? O país já começou a dar errado desde cedo. Um brinde à rotina política.

Verena soltou um meio sorriso, mas logo desviou os olhos para o menu. Pediu algo leve, ainda sentia o estômago revirado desde a manhã. Rafaela fez sinal para o garçom, pediu um prato qualquer e só então apoiou os cotovelos na mesa, estudando a amiga.

— Você tá com cara de quem vai me dizer algo chato. — comentou. — Tipo: vamos ter que ir pra Brasília.

Verena assentiu lentamente, como quem já esperava aquela reação.

— Daqui a duas semanas. Tem uma comissão especial, e preciso estar presente. Quer você ou não, vai comigo.

— Ugh. — Rafaela jogou a cabeça pra trás, teatral. — Eu sabia. Brasília tem cheiro de ar-condicionado, hipocrisia e hotel meia-boca.

— Vai ser só dois dias. — Verena cutucou a salada, distraída. — O mínimo de exposição. Algumas reuniões. Posicionamento estratégico. Aquele tipo de coisa que você ama.

Rafaela revirou os olhos, mas havia uma pontada de curiosidade em sua voz:

— Você não tá usando essa viagem pra fugir de alguma coisa, né?

— Fugir?

— De si mesma. Da Valentina. Da Silvia. — enumerou com os dedos. — Da realidade em geral.

Verena largou o garfo. O silêncio entre elas cresceu por um momento, cheio de coisas não ditas.

— Às vezes fugir não é o problema. — respondeu, por fim. — O problema é quando você para de tentar voltar.

Rafaela suspirou, apoiando o queixo nas mãos.

— A gente vai pra Brasília então. Mas você me deve vinho. E uma explicação mais honesta do que essa aí.

Verena apenas assentiu, voltando o olhar para o prato. Um peso no peito que nem o sol da janela conseguia aquecer.

Enquanto esperavam a sobremesa, Rafaela mexia no celular distraidamente, até levantar os olhos para além da janela. Seus óculos escuros agora estavam repousados sobre a mesa, revelando o olhar sagaz e atento de quem raramente deixava passar algo.

— Olha só quem tá indo embora... — comentou casualmente, inclinando-se levemente para frente.

Verena seguiu o olhar da amiga. Do outro lado da rua, Valentina descia os degraus da ALESP com a mochila presa a um dos ombros, os cabelos presos num coque malfeito, o uniforme social simples destoando do ar solene da maioria dos servidores. Ela andava com pressa, como quem queria sair dali o quanto antes, olhando o celular, talvez procurando a melhor rota até o metrô.

Tentou desviar o olhar com naturalidade, mas foi impossível fingir desinteresse. Seus olhos demoraram meio segundo a mais do que deveriam, e Rafaela percebeu. Sempre percebia.

— Ai, Verena... — murmurou, com um tom de quem já previa um desastre. — Você olha pra ela como quem encontrou um capítulo proibido da própria vida.

— Para. — cortou Verena, seca. — Ela só está indo embora.

— Uhum. Indo embora e levando junto sua paz de espírito. — Rafaela arqueou uma sobrancelha. — Não tenta bancar a dissimulada comigo. Eu sei ler suas expressões melhor do que você mesma.

Verena revirou os olhos, pegando o guardanapo com mais força do que o necessário.

— Ela é só uma estagiária. Está aprendendo, e indo bem. Nada além disso.

— Aham. E eu sou só sua assessora. — Rafaela estalou a língua. — Você precisa urgentemente colocar gelo nesse fogo interno antes que ele queime sua carreira, seu casamento e talvez até sua sanidade.

— Já terminou o drama?

— Quase. Ainda falta um sermão sobre ética, responsabilidade emocional e crimes que dão cadeia, mas deixo pra depois da sobremesa.

Apesar do incômodo, Verena esboçou um meio sorriso. Aquilo era Rafaela: afiada, direta, mas leal até o último fio de cabelo ruivo. E ela sabia que, apesar da piada, a amiga falava sério.

Do outro lado da rua, Valentina já havia desaparecido na multidão. Mas para Verena, a imagem da garota permanecia nítida. Como se seus olhos ainda estivessem presos àquele breve instante — e a tudo que ele carregava.

O almoço havia sido tranquilo — ou o mais próximo disso que Verena conseguiria naquele dia. O restaurante do outro lado da rua da ALESP era o refúgio frequente para dias em que a rotina apertava. Ela e Rafaela saíram rindo de alguma piada sem noção, até que o céu desabou sobre São Paulo com uma rapidez quase teatral.

— Merda! — soltou Rafaela, puxando Verena pelo braço. — Vai, corre! A gente ainda vira meme!

As duas atravessaram a rua na correria, com os saltos tropeçando em calçadas molhadas e a água já começando a invadir os sapatos. A chuva era daquelas grossas, barulhentas, que faziam o concreto parecer um tambor. Quando finalmente entraram na recepção do prédio, estavam encharcadas.

— Ótimo, agora vamos passar o resto da tarde parecendo dois trapos — Rafaela disse, tentando torcer um pouco da blusa.

Verena passou a mão pelos cabelos molhados, ajeitou os óculos e tentou limpar a lente com a barra da própria blusa. Suspirou fundo.

— Espero que a Valentina já tenha conseguido pegar o ônibus. Do jeito que essa chuva caiu...

Rafaela virou o rosto devagar, arqueando uma sobrancelha com malícia.

— Aham... claro. A gente saindo do almoço, molhada, descabelada, e o pensamento da senhora deputada tá onde? Na estagiária de dezesseis anos. Que gracinha.

Verena arregalou os olhos, percebendo tarde demais que deixara escapar o nome.

— Eu só… Ela saiu na hora do almoço, você viu. Imagina se ficou presa nessa chuvarada.

— Uhum — Rafaela respondeu, pegando o elevador com ela. — Preocupação com o bem-estar da equipe. Eu entendo. Mas deixa eu só lembrar que, se ela for sua prioridade número um, vai ser difícil esconder esse olhar de mãe coruja possessiva.

Verena bufou, tirando os óculos e esfregando o rosto, ainda úmido.

— Você cansa, sabia?

— Canso nada. Eu sou a voz da razão nesse gabinete. Ou, no mínimo, a voz sarcástica que vai impedir você de fazer merd*.

O elevador apitou, e as portas se abriram. Rafaela deu uma última olhada de lado para Verena, que desviou o olhar. Mas o pensamento, esse não desviava nunca.

As duas saíram do elevador ainda ajeitando as roupas e tentando se recompor. Os corredores do andar estavam mais silenciosos naquele horário da tarde, como se a chuva lá fora tivesse anestesiado parte da movimentação da Assembleia. Rafaela caminhava ao lado de Verena, ainda secando os cabelos com uma toalhinha de papel que havia conseguido da recepção.

— Olha, se essa viagem pra Brasília não for pra você espairecer um pouco e repensar os rumos da sua novela mexicana particular, vou ter que intervir — disse Rafaela, abrindo a porta da sala com um empurrão leve. — E nem adianta vir com aquele papo de "é só uma menina". Porque, Verena, seu olhar grita mais do que discurso em plenário.

Verena entrou e largou a bolsa sobre a poltrona com mais força do que o necessário.

— Você tá exagerando — disse, tirando o blazer molhado e pendurando na cadeira. — Eu só me preocupo com o bem-estar da equipe. Ela é nova, e esse programa joga esses jovens aqui dentro sem preparo nenhum.

Rafaela cruzou os braços, encostando-se na porta fechada. Os cabelos cacheados, ainda úmidos, emolduravam o rosto com uma aura selvagem, quase felina. O olhar, no entanto, estava sério.

— E eu acredito. A preocupação é real. Mas e esse frio no estômago? Esse silêncio constrangido quando ela aparece? Essa sua forma de olhar quando ela sorri?

Verena não respondeu. Apenas se sentou atrás da mesa, passando a mão pelo rosto, visivelmente tensa.

— Não tem nada. E mesmo que tivesse... — Ela parou, encarando o vazio. — Isso seria o fim de tudo. Carreira, casamento... minha reputação inteira.

Rafaela deu alguns passos até se sentar na cadeira em frente à mesa. Observou a amiga por um instante, depois sorriu de lado, com menos ironia e mais cuidado dessa vez.

— Eu te conheço, Verena. Sei quando você tá em negação. E sei que você não é estúpida. Mas sentimentos... às vezes, eles não pedem licença pra entrar.

Verena respirou fundo, apertando os olhos fechados por um momento.

— E o que você sugere? Que eu peça demissão pra evitar ver uma adolescente quatro horas por dia?

— Eu sugiro que você mantenha a cabeça no lugar. Que se lembre de quem você é. E que, se for pra se jogar de um precipício, que pelo menos saiba que o impacto vai ser seu. Só seu. Não empurra mais ninguém com você.

Verena abriu os olhos, e por um instante, sua expressão era de exaustão pura. Mas ela assentiu, como se enfim compreendesse a gravidade do que a amiga dizia.

— Eu vou segurar isso. Eu tenho que segurar.

Rafaela se levantou, batendo as mãos nas pernas para secar o tecido da calça.

— Isso aí. Agora respira fundo, coloca uma música que não fale de amores impossíveis e vamos fingir que essa tarde ainda pode render algo produtivo.

Verena soltou uma risada seca.

— Difícil.

— Se fosse fácil, não seria o seu gabinete — rebateu Rafaela, já abrindo a porta com um sorrisinho no rosto.

A porta se fechou devagar, e Verena ficou sozinha por um instante. Olhou para a janela molhada, depois para a mesa à sua frente. O celular vibrou, uma notificação qualquer. Mas ela não pegou.

No fundo, sabia que estava vivendo uma guerra que ninguém mais via.

...

Valentina chegou em casa ensopada, os cabelos colados no rosto e as roupas grudadinhas no corpo, deixando pegadas molhadas pelo chão da entrada. A mãe, Ana Paula, apareceu na sala no mesmo instante, com o olhar preocupado e o pano de prato ainda nas mãos.

— Minha nossa, menina! Que situação é essa? Não tinha onde se abrigar? — perguntou, já vindo em sua direção.

— Peguei a chuva no meio do caminho. Foi muito rápido, mãe, uma tempestade dessas de verão… — disse Valentina, encolhendo os ombros enquanto tirava os tênis molhados.

Ana Paula soltou um suspiro alto e correu pegar uma toalha. Voltou logo depois e começou a secar os ombros da filha com firmeza.

— Mas Deus me livre, Valentina! Vai pegar um resfriado desses fortes. Sobe pro banho agora, antes que piore. E olha, agradece a Deus por ter chegado bem.

Valentina assentiu, subindo as escadas com passos apressados. No banho, a água quente escorria pela pele enquanto ela tentava limpar não só a chuva, mas a confusão que trazia no peito. A lembrança da chuva não era o problema. Era a lembrança do olhar de Verena. Do gesto breve e delicado quando suas mãos se tocaram — uma eletricidade silenciosa, mas devastadora.

Mais tarde, já de pijama e com o cabelo preso em um coque malfeito, Valentina sentou-se à mesa do jantar. A comida simples — arroz, feijão, frango ensopado e uma salada de tomate — contrastava com o silêncio que pairava sobre o ambiente. Ana Paula fez o sinal da cruz e todos acompanharam a oração, inclusive Valentina, mesmo que sua cabeça estivesse a quilômetros dali.

— E o estágio, minha filha? — perguntou a mãe, enquanto mexia o arroz no prato. — Tá se adaptando?

— Tô sim, mãe. É puxado, mas tô gostando. Aprendendo bastante.

Ana Paula assentiu, mas seus olhos não deixaram os da filha por alguns segundos.

— E aquela deputada... Verena, né? Ela te trata bem?

— Trata, sim. É exigente, mas justa.

O pai, que até então comia em silêncio, limpou a boca com o guardanapo, pigarreou e entrou na conversa com um tom mais contido, porém firme:

— Você sabe que essas pessoas têm um estilo de vida... diferente do que a gente acredita, né?

Valentina sentiu o coração apertar.

— Eu sei, pai...

— Só cuidado pra não confundir o certo com o que o mundo vive dizendo que é normal. A gente tem que amar todo mundo, sim, mas também precisa saber onde pisa.

Ana Paula assentiu, completando com suavidade:

— É isso mesmo. Não estamos aqui pra julgar ninguém, mas também não vamos fechar os olhos pra certas coisas. O inimigo é astuto. Às vezes entra na mente sem a gente perceber.

Valentina abaixou os olhos. O garfo repousou no prato por um instante. Ela mastigou em silêncio, engolindo junto com a comida um nó desconfortável na garganta.

— Eu entendo — disse por fim, com a voz baixa.

— Só queremos o seu bem, filha — concluiu o pai, retomando a refeição.

Valentina apenas assentiu, sentindo uma mistura de culpa, confusão e silêncio lhe percorrer por dentro. Porque, no fundo, ela também não sabia direito o que estava sentindo — e muito menos como colocar em palavras.

...

A quarta-feira avançava preguiçosa, e o relógio já se aproximava das três da tarde. Verena, entre uma pasta e outra, não conseguia ignorar a ausência que teimava em martelar sua mente.

Valentina não tinha aparecido.

Ontem estivera ali, discreta, quieta como sempre. Cumprira suas tarefas e saíra antes do fim do expediente, sob o pretexto de um compromisso na escola. Verena sequer questionara. A imagem da garota correndo pela calçada instantes antes da chuva despencar ainda estava viva em sua memória. Mas hoje... nada.

A cadeira da menina seguia vazia.

Verena ajeitou os óculos, como fazia sempre que tentava disfarçar um incômodo. Ajeitou o cabelo, depois a barra da blusa. Tentava parecer ocupada demais para se importar. Não estava funcionando.

— Hummm... será que a nossa aprendiz se afogou na chuva de ontem? — Rafaela surgiu na sala com seu café em mãos e um sorriso malicioso. — Com aquele tamanho, um bueiro destampado já vira um poço sem fundo.

Verena não conseguiu conter o olhar cortante por cima da armação dos óculos.

— Rafaela, por favor. Não tem graça.

— Ei — levantou as mãos em falsa rendição —, só tentando quebrar o gelo. Mas... agora falando sério. Ela não apareceu mesmo, né?

— Não. E ela costuma ser pontual.

— Você acha que foi por causa da chuva de ontem?

— Não sei. Ela saiu do prédio antes da tempestade cair — murmurou Verena, desviando o olhar para a janela. — Nós vimos.

— Verdade... — Rafaela franziu os lábios. — Saiu toda apressada, lembra?

Verena assentiu. Estava tentando não lembrar. Mas lembrar era inevitável.

— Talvez tenha acontecido algo. Na escola. Em casa. Ela é só uma menina.

— Uma menina que te tira do eixo com a ausência dela. — Rafaela apoiou-se no braço da poltrona de Verena, analisando a amiga com um olhar afiado. — Você tá muito mais incomodada do que devia, sabia?

— Eu só me preocupo com quem trabalha comigo — rebateu Verena, seca, mexendo em papéis aleatórios sobre a mesa.

— Claro — Rafaela deu um gole no café, levantando-se novamente. — Só cuidado pra essa preocupação não virar manchete, tá?

Verena não respondeu. Apenas ajeitou os óculos mais uma vez e desviou o olhar, fingindo interesse em um relatório qualquer, enquanto a inquietação crescia em silêncio.

...

O quarto de Valentina estava com as janelas fechadas, cortinas semicerradas que filtravam a luz da tarde em tons suaves. O som abafado de uma novela qualquer vinha da sala, mas ali dentro reinava o silêncio, interrompido apenas pelos espirros e tosses abafadas da adolescente.

Deitada, suada e encolhida sob as cobertas, Valentina tentava se manter acordada, mas o corpo cansado e a febre insistente a faziam oscilar entre devaneios e breves cochilos.

— Valen… — a voz doce de Isadora, sua irmã de dez anos, surgiu na porta. A menina carregava uma xícara com o que parecia ser chá. — A mamãe mandou te dar isso. E disse pra você não levantar, ela já vai trazer o remédio.

Valentina abriu os olhos devagar, com dificuldade.

— Obrigada, Isa… coloca aí na mesinha, por favor.

Isadora obedeceu, mas não saiu. Sentou-se aos pés da cama, abraçando os joelhos finos.

— Você vai melhorar logo, né? A gente tem que terminar aquele desenho.

Valentina sorriu, apesar da garganta arranhando.

— Vou sim, prometo.

Ana Paula logo entrou no quarto, segurando um copo com o xarope e um termômetro digital. O semblante da mulher era tenso, embora esforçadamente sereno.

— Ainda com febre, filha? — perguntou, ao tocar a testa da garota.

Valentina assentiu, os olhos pesados.

— Está um pouco mais quente do que de manhã… — murmurou Ana Paula, preocupada. — Mas vai passar. Foi a chuva de ontem. Eu te avisei pra levar o guarda-chuva.

— Eu saí apressada… nem lembrei — disse, rouca.

— Pois então agora vai ficar em casa até melhorar. Escola e estágio podem esperar. Não quero você saindo com esse tempo — falou firme, mas com carinho, enquanto colocava o termômetro sob o braço da filha.

— Eu devia ter avisado no gabinete…

— Amanhã a gente liga pra lá — respondeu Ana Paula. — Agora toma o remédio e dorme um pouco.

Isadora fez um carinho no braço da irmã antes de se levantar. Ana Paula deu um beijo na testa da filha e apagou a luz do quarto ao sair, deixando Valentina mergulhar no silêncio reconfortante da casa.

De olhos fechados, ela tentou não pensar. Nem na febre. Nem nos olhares. Nem nas sensações que não compreendia — aquelas que, como a febre, insistiam em queimar sob a pele.

...

A noite caía tranquila sobre a cidade, e o quarto de Verena e Silvia era um refúgio aquecido pela luz amarela do abajur. As duas estavam encostadas na cabeceira da cama, sob a coberta macia. Silvia usava óculos, o notebook apoiado nas coxas, enquanto rolava a tela com atenção. Verena, ao lado, olhava mais para o teto do que para a tela, mas se forçava a parecer envolvida.

— Essa clínica aqui tem um bom histórico — comentou Silvia, inclinando levemente o notebook em direção à esposa. — Olha só, a taxa de sucesso é alta, e tem boas avaliações.

Verena forçou um sorriso e assentiu, os olhos presos no movimento do cursor na tela.

— Uhum. Parece boa.

Silvia virou-se um pouco, passando o braço por cima do ventre da esposa e se aconchegando melhor.

— A gente precisa pensar também na parte legal. Quem doa o sêmen, se vamos fazer inseminação ou FIV… — disse com leveza, como quem planeja uma viagem há tempos sonhada.

Verena olhou para o colo da esposa. A forma como ela sorria de lado, enquanto falava da possibilidade de um filho, a tranquilidade em sua voz, tudo aquilo a comovia. E, ao mesmo tempo, doía.

Queria mergulhar naquela realidade. Naquele futuro possível, concreto, limpo.

— Você acha que… a gente tá mesmo pronta pra isso? — perguntou, com a voz mais baixa do que pretendia.

Silvia sorriu, passando os dedos pela mão de Verena.

— Eu acho que a gente nunca vai estar totalmente pronta. Mas quando o desejo vem mais forte que o medo… acho que é um sinal.

Verena respirou fundo. Queria acreditar nisso. Queria permanecer ali, naquela cama, com aquela mulher que sabia tudo sobre ela — ou quase tudo. Sentia-se segura ali. Amada. E, mesmo assim, como se estivesse à margem de si mesma.

— A gente pode visitar a clínica no sábado? — sugeriu Silvia.

— Pode ser. — Verena se ajeitou, voltando a olhar para a tela. — Vamos marcar.

Silvia sorriu e a beijou de leve na bochecha antes de voltar a digitar. Verena encostou a cabeça na dela, fechando os olhos por um segundo. Lutava contra o impulso de se afastar daquilo. Lutava contra o outro nome que, sem permissão, insistia em cruzar sua mente.

Valentina.

Mas naquela noite, ela prometeu a si mesma que ficaria ali. No presente. Que tentaria.

...

O silêncio do quarto foi interrompido por um leve murmúrio, seguido de um sobressalto. Verena se remexia na cama, o rosto tenso, os lábios entreabertos murmurando palavras desconexas. O sonho parecia real demais.

Ela estava ao lado de uma piscina azul-clara, o sol ofuscando sua visão. O som da água era calmo, até se tornar caótico. Valentina estava dentro da piscina, os braços agitados, tentando se manter à tona. Seus olhos pediam socorro. Ela gritava, mas não saía som algum. Verena corria, tentava alcançá-la, mas quanto mais se aproximava, mais a água parecia se transformar em uma massa espessa, escura, que puxava a garota para o fundo.

Ela gritava.

— Valentina!

E acordou num pulo, ofegante, o coração disparado como se tivesse corrido uma maratona. O quarto estava escuro, silencioso. Silvia se remexeu ao seu lado, sonolenta.

— Amor… tá tudo bem? — perguntou com a voz arrastada.

Verena passou a mão pelo rosto suado, tentando recuperar o fôlego.

— Tô… tô sim. Foi só um sonho ruim.

Silvia se virou, enlaçando-a pela cintura, aconchegando o rosto em suas costas.

— Vem cá… dorme de novo, tá? — murmurou antes de afundar outra vez no sono.

Mas Verena não conseguia. Aquela sensação de impotência a corroía por dentro. Soltou-se com cuidado do abraço da esposa, saiu da cama e foi até o banheiro.

Acendeu a luz fraca sobre a pia. Olhou-se no espelho por um instante, como se esperasse encontrar outra pessoa refletida ali. Respirou fundo e abriu a torneira, jogando um pouco de água fria no rosto. As gotas escorreram por seu queixo, misturando-se ao suor do pesadelo.

Apoiou-se na pia com as duas mãos, os ombros ainda tensos.

— Que merd* tá acontecendo comigo… — murmurou para si mesma.

A imagem de Valentina se afogando voltava como uma onda. Verena sabia que não era apenas sobre medo. Era culpa. Era desejo. Era confusão.

E era tudo que ela não podia admitir.

Ficou ali por alguns minutos, tentando se recompor, antes de apagar a luz e voltar, silenciosamente, para a cama.

Mas naquela noite, o sono não voltou.

...

A luz do dia filtrava-se pelas frestas da persiana, tingindo o quarto com tons dourados e suaves. Silvia despertou devagar, sentindo o espaço vazio ao seu lado. Esticou o braço por reflexo, encontrando apenas o lençol frio.

Sorriu de leve, ainda sonolenta.

— Já foi tomar o café sozinha, né? — murmurou, bocejando.

Levantou-se com calma, pegou a camisa de Verena — que usava como uma espécie de casaco — e caminhou descalça até o banheiro. Lavou o rosto, prendeu os cabelos em um coque frouxo e foi até o closet. Vestiu-se sem pressa, imaginando a esposa na cozinha, provavelmente de pé diante da bancada, cortando frutas com aquele jeito metódico de sempre, ou já distraída no celular com alguma notícia de política ou mercado.

Mas, ao dobrar o corredor e pisar na sala, o coração quase parou.

— Verena?!

A visão diante dela era um soco.

Silvia correu até ela, o coração disparado diante da cena que tinha diante dos olhos. Verena estava largada no sofá, afundada nas almofadas como se o corpo tivesse desistido de sustentar qualquer coisa. Os cabelos bagunçados, a roupa amassada, o cheiro forte de uísque e cigarro preenchia o ambiente. No chão, ao lado de sua mão quase solta, uma garrafa de uísque pela metade. Um cinzeiro transbordava de bitucas de cigarro ainda com fumaça fraca. E ali, caído entre as almofadas, como um detalhe esquecido da mulher sempre impecável que ela era… os óculos jogados de lado, com uma das hastes tortas.

— Pelo amor de Deus, o que aconteceu? — perguntou, ajoelhando-se à sua frente. — Você bebeu tudo isso sozinha?

Verena ergueu a cabeça com esforço, os olhos vermelhos e semicerrados, a fala arrastada, quase sonolenta.

— Não consegui dormir… — murmurou com a voz rouca, ainda carregada do gosto do cigarro. — Foi só uma noite ruim.

— Uma noite ruim? Você tá um caco, Verena! — Silvia pegou a garrafa, afastando-a, depois olhou para os olhos da esposa, buscando por respostas que ela não queria dar. — O que aconteceu? Fala comigo.

— Sonhei… com ela… a Valentina… — murmurou, a voz baixa, falhando. — Ela tava… afundando… numa piscina… e eu não… não conseguia ajudar…

Silvia sentiu um aperto no peito, mas manteve a calma na voz.

— Era só um pesadelo, meu amor. Vem, vamos te tirar daqui. Um banho, algo pra comer, respirar…

Verena fechou os olhos, uma lágrima escorrendo sem que ela sequer percebesse. Silvia a enxugou com delicadeza.

— Tô com medo, Sil… — sussurrou. — Medo do que eu tô virando…

E então, simplesmente apagou, vencida pela exaustão, pelo álcool e por tudo que tentava negar.

Silvia permaneceu ali, ajoelhada ao lado do sofá, a mão repousando sobre os cabelos da esposa. Observou o óculos esquecido, torto, fora de lugar — como a própria Verena. E uma angústia silenciosa se instalou dentro dela.

...

A luz que entrava pela fresta da cortina foi suficiente para fazer Verena se encolher, gem*ndo baixo. Sentia a cabeça latejar como se tivesse levado uma surra por dentro. As têmporas pulsavam, a boca seca e amarga. Estava na cama, coberta com o edredom leve que Silvia costumava usar nos dias mais quentes. O quarto ainda carregava o cheiro misto de perfume adocicado e fumaça antiga — uma combinação que fazia o estômago de Verena revirar.

Piscou algumas vezes, tentando juntar os pedaços da noite anterior. Lembrava-se do pesadelo. Da garrafa. De Silvia… ajoelhada, talvez. Mas tudo era vago, borrado. O corpo pesava, como se estivesse encharcado de culpa. Respirou fundo, jogando as pernas para fora da cama com esforço.

Ao se levantar, sentiu um calafrio. Estava usando apenas uma camiseta larga, provavelmente colocada por Silvia depois que a ajudou a se deitar. Cambaleou até o espelho do banheiro e olhou para si. Olheiras profundas, os cabelos um caos, e os olhos… tão vermelhos quanto no pesadelo. Lavou o rosto com água fria, tentando afastar o torpor.

Minutos depois, atravessou o corredor até a sala. O sofá ainda estava bagunçado. O cinzeiro, agora limpo, havia sido colocado sobre a mesa com discrição. A garrafa de uísque sumira. Mas o vazio que ela deixara parecia ainda pairar no ar.

Encontrou Marta, a empregada, terminando de arrumar a sala com passos leves.

— Bom dia, dona Verena. — disse com um sorriso gentil, mesmo sem esconder um certo olhar preocupado. — A dona Silvia saiu faz uns quinze minutos. Disse que deixou café pronto na cozinha.

Verena franziu a testa, apertando as têmporas.

— Ela… falou pra onde ia?

— Não, senhora. Mas estava com pressa. Disse que voltava no horário do almoço.

Verena assentiu vagamente. Sentou-se no sofá onde estivera desmoronada poucas horas antes. Passou as mãos pelo rosto e olhou para a própria mão: trêmula.

Mais uma vez, tentou puxar da memória o que havia dito. Será que tinha falado o nome de Valentina? Será que Silvia desconfiava? Ou apenas achava que era mais um episódio de estresse, de culpa mal resolvida?

Sequer teve coragem de pegar o celular.

Precisava de um tempo… ou talvez coragem para encarar o que vinha tentando esconder até de si mesma.

...

O portão se abriu com o rangido de sempre, e Silvia respirou fundo antes de entrar. O pequeno jardim da casa dos pais, com as roseiras cuidadas por sua mãe, ainda tinha o mesmo cheiro reconfortante de infância. Mas naquele dia, nem o aroma familiar foi capaz de aliviar o aperto no peito.

Foi recebida por dona Livia com um sorriso doce e um olhar rápido de quem percebe tudo sem que ninguém diga nada.

— Minha filha… tá tudo bem?

Silvia tentou responder com um aceno, mas a voz embargada entregou. Apenas caminhou até o sofá da sala e se sentou, largando a bolsa no chão. A mãe veio logo atrás e se sentou ao seu lado, passando um braço ao redor de seus ombros.

— O que aconteceu?

Silvia respirou fundo, e por um instante tentou segurar. Mas os olhos marejaram antes que conseguisse controlar.

— Mãe… eu não sei mais o que fazer.

Dona Livia ajeitou os cabelos da filha com carinho, esperando com paciência que ela continuasse.

— Verena… ela não está bem. — Silvia disse com dificuldade. — Hoje cedo… encontrei ela bêbada, jogada no sofá, com uma garrafa de uísque na mão… fumando, sozinha. Chorando por um pesadelo, algo com uma garota… e eu…

Ela engasgou com o choro. A mãe não disse nada, apenas apertou seu ombro.

— Eu achei que… que estávamos melhorando. Que essa ideia do filho pudesse nos unir, nos trazer de volta. Eu tava empolgada, feliz… de verdade. Mas agora, mãe… eu não sei.

— Silvia… — a voz da mãe foi baixa, firme, cheia de ternura — vocês passaram por muita coisa. Você sempre foi forte por vocês duas. Mas não dá pra carregar um casamento sozinha.

— Eu sei… — Silvia respondeu entre lágrimas — Mas eu ainda amo ela. E isso me confunde tanto. Porque às vezes… parece que ela tá ali comigo. Mas às vezes… parece que não tá em lugar nenhum.

Dona Livia acariciou sua mão e falou com cuidado:

— Você é uma mulher incrível, minha filha. E vai ser uma mãe maravilhosa, com ou sem ela. Mas tem que pensar no que você merece também. E no que você tá disposta a aguentar. Não dá pra lutar sozinha pra sempre.

Silvia se aninhou no colo da mãe como fazia quando era criança. E ali, no silêncio da sala cheia de memórias, chorou tudo que vinha guardando há dias.

Depois de alguns minutos, a voz da mãe soou baixa, mas cheia de firmeza:

— Eu sei que não é fácil. Casamento é isso mesmo… tem fases boas, outras que a gente acha que não vai aguentar. Mas o que aconteceu hoje… isso te assustou, né?

Silvia assentiu, enxugando as lágrimas com as costas da mão.

— Muito. Eu nunca tinha visto a Verena daquele jeito. Ela sempre foi tão… controlada. Tão segura. Mas ali… parecia quebrada, mãe. Como se estivesse perdida. E eu não sei se consigo ajudar.

Dona Livia a olhou com doçura.

— Talvez ela esteja mesmo perdida. Às vezes, a gente carrega tanto por dentro que parece que vai explodir. E uma hora… explode. Mas se você ainda ama essa mulher, minha filha… tenta conversar. De verdade. Sem rodeios. Pergunta o que ela tá sentindo, o que tá acontecendo.

Silvia mordeu o lábio inferior, hesitante.

— Eu tenho medo do que posso ouvir.

— Então você precisa decidir: quer continuar nesse casamento por amor ou pelo medo de deixá-lo acabar? — A mãe segurou suas mãos com firmeza. — Porque fingir que tá tudo bem nunca salvou relacionamento nenhum.

Silvia respirou fundo, absorvendo cada palavra. Sabia que a mãe tinha razão. Precisava parar de agir como se estivesse presa a uma promessa, e começar a entender se ainda existia verdade no que sentia… ou se só restava a sombra do que um dia foi.

— Eu não quero desistir, mãe — disse, por fim. — Mas também não quero me anular pra manter algo que talvez só exista na minha cabeça.

Dona Livia sorriu, acariciando o cabelo da filha com carinho.

— Então volta pra casa. Toma um banho, se olha no espelho e decide o que você merece. Porque às vezes, minha filha… amar também é saber a hora de soltar.

...

Verena ajeitava o colarinho da camisa diante do espelho do banheiro, os movimentos lentos, quase automáticos. A cabeça latej*v* como se martelassem seu crânio por dentro, e os olhos fundos denunciavam a noite maldormida e regada demais. Ignorou as chamadas insistentes de Rafaela que vibravam no celular largado sobre a pia — não queria explicações, nem conselhos. Queria apenas... Silvia.

Tentava reconstruir a noite anterior em sua mente, mas os fragmentos vinham desconexos. Lembrava do sonho, da angústia, da bebida. E da decepção nos olhos da mulher que amava. Isso era o que mais doía.

Pegou a bolsa, jogou os óculos escuros no rosto — não apenas pela luz incômoda, mas também pelo disfarce emocional — e saiu do apartamento em silêncio.

Foi por instinto, ou talvez puro desespero, que decidiu ir ao escritório de Silvia, no centro. Uma parte de si sabia que seria improvável encontrá-la lá tão cedo, mas precisava tentar.

Ao chegar, cumprimentou a recepcionista com um aceno tenso e perguntou se Silvia já estava. A moça, simpática, balançou a cabeça:

— Ainda não chegou, doutora Verena.

Agradeceu e se virou para sair, o coração afundando. Foi quando a porta de vidro se abriu atrás dela.

Silvia entrou, os cabelos presos em um coque firme, a roupa impecável como sempre. Mas havia algo em seu olhar — uma rigidez, uma cautela dolorosa. Parou de súbito ao ver a esposa ali, tão fora de lugar quanto de si mesma.

— Verena… — disse num sussurro quase impaciente.

Verena ficou imóvel por um segundo, o olhar suplicante sob as lentes escuras.

Silvia olhou discretamente para a recepcionista atrás do balcão, que fingia não escutar nada, e depois se aproximou de Verena com um sorriso contido, quase forçado.

— Não aqui — murmurou, baixinho, com firmeza. — Agora não, por favor.

A mão de Verena ergueu-se num gesto instintivo, querendo tocar, segurar, impedir. Mas recuou antes de alcançá-la.

— Silvia, eu… — tentou dizer algo, mas a outra desviou os olhos.

— Depois a gente conversa. Eu preciso trabalhar — disse, suave, porém irredutível. E, sem esperar resposta, entrou no escritório.

Verena ficou ali por um momento, sentindo o peso daquela porta de vidro que se fechava com suavidade, mas com o estrondo de uma sentença.

Saiu sem dizer mais nada.

Já tinha dado três passos em direção à saída quando parou. O peso no peito era sufocante, uma mistura de culpa, angústia e medo. Ela não podia simplesmente sair dali. Não depois de tudo. Não depois da forma como Silvia a olhou mais cedo. Respirou fundo, apertou a alça da bolsa com força e se virou.

— Pode cancelar os próximos compromissos da doutora Silvia, por favor — disse à recepcionista, com uma serenidade que não correspondia à tempestade em sua voz interna.

A moça hesitou, os olhos arregalados diante do pedido inusitado, mas assentiu, intimidada pela postura firme — e pelo nome que carregava.

Verena não esperou resposta. Girou a maçaneta da porta do escritório e entrou.

Silvia estava tirando o blazer, de costas para a entrada. Ao ouvir o som da porta, virou-se bruscamente, surpresa.

— Verena, eu pedi... — começou, mas interrompeu a frase assim que viu o olhar da esposa. Não era arrogante. Nem defensivo. Era vulnerável.

Verena fechou a porta atrás de si, encostando-se a ela como quem precisava de apoio para continuar de pé.

— Eu sei que você não quer falar comigo agora — disse, a voz rouca. — Mas eu não podia ir embora assim, fingindo que não está tudo errado.

Silvia permaneceu em silêncio. O olhar duro, braços cruzados.

— Eu não tenho desculpas — continuou Verena. — Eu me perdi. E talvez esteja tentando resolver tudo da pior forma possível. Mas eu te amo, Silvia. E... eu tô com medo.

Silvia arqueou as sobrancelhas, a expressão firme começando a se quebrar.

— Medo de quê, Verena?

— De te perder. De perder o que a gente construiu. Eu... tenho pensado em tudo errado, sobre tudo, e tentando fingir que consigo lidar. Mas eu não consigo. — Ela respirou fundo, as mãos tremendo. — E ontem eu bebi porque, por alguns minutos, era mais fácil apagar tudo do que encarar que eu tô... quebrando tudo.

Silvia se aproximou um pouco, sem dizer nada. Apenas observava.

— Eu tô tentando entender o que você sente — disse ela, por fim. — Mas você não deixa. E eu não sei mais se posso continuar tentando sozinha.

Verena fechou os olhos por um instante, como se aquelas palavras fossem um soco.

— Eu não quero que você tente sozinha. — Abriu os olhos, encarando Silvia. — Só me diz o que eu preciso fazer.

Um silêncio longo se instalou. Então Silvia estendeu a mão.

— Me mostra quem é você agora, Verena. Não quem você era. Não quem você tenta fingir que é. Mas quem está aqui... comigo. Ainda dá tempo, se a gente for honesta.

Verena segurou a mão dela. Os dedos se entrelaçaram com força, como se aquele gesto simples fosse um último pedido de esperança.

Silvia sentiu o aperto firme nos dedos. Era quase desesperado — como se Verena estivesse se segurando naquela mão para não afundar de vez. E, por um instante, ela quis acreditar que ainda era possível. Que aquilo ainda era real.

— Eu não sei se consigo fazer isso sozinha — disse Silvia, a voz mais baixa agora. — Mas acho que parte de mim ainda quer tentar. Não por causa de promessas antigas, nem pelo filho que a gente sonhou. Mas porque, apesar de tudo, você ainda é a pessoa que eu escolhi.

Verena engoliu em seco, os olhos marejados. Queria dizer que também a escolheria mil vezes. Queria pedir perdão por tudo — até pelo que Silvia ainda não sabia. Mas se limitou a apertar a mão dela com mais força.

— Eu vou fazer terapia — disse de repente. — Acho que é a primeira coisa sensata que consigo prometer agora.

Silvia arqueou uma sobrancelha, surpresa.

— Está mesmo dizendo isso ou é só mais uma tentativa de me convencer?

— Tô dizendo porque... eu preciso. Não dá mais pra viver do jeito que tá. Eu tô me afundando e tô te levando junto.

Silvia assentiu devagar. Não sorriu, mas também não se afastou. Caminhou até a poltrona atrás da mesa e sentou-se, indicando com a cabeça a cadeira à frente.

— Senta, por favor. — A voz ainda era firme, mas havia ali uma abertura. Um convite.

Verena obedeceu sem hesitar, sentando-se diante dela como uma aluna diante de uma professora. Pela primeira vez em muito tempo, não sentia necessidade de controlar nada. Só queria ser ouvida.

— E quanto a... tudo o que aconteceu? — Silvia perguntou, os olhos agora mais cansados do que duros. — Você quer mesmo ter um filho agora?

Verena demorou a responder. Passou a mão pelos cabelos, respirou fundo.

— Eu queria... que isso trouxesse a gente de volta. Queria acreditar que um filho resolveria o que a gente não tá conseguindo resolver sozinha. Mas seria egoísmo. E eu não quero fazer isso com você, nem com uma criança.

Silvia assentiu lentamente, os olhos fixos nos dela. Por fim, murmurou:

— Obrigada por ser honesta.

Verena sorriu, fraco.

— Mesmo que a honestidade venha tarde demais?

— A gente vai descobrir juntas se ainda há tempo ou não. Mas... pelo menos agora eu sinto que você voltou a ser você.

Verena abaixou o olhar, emocionada. Pela primeira vez em dias, sentia que havia um caminho. Incerto, sim, mas um caminho.

— Eu te amo, Silvia. Mesmo quando sou péssima em demonstrar isso.

Silvia se levantou, foi até ela e passou a mão em seus cabelos, com um carinho que misturava amor, frustração e esperança.

— Então começa me mostrando. Dia após dia.

Verena assentiu, levantando-se também. E ali, no silêncio do escritório, as duas se abraçaram. Um abraço sem promessas, mas com verdade.

Silvia ainda segurava o rosto de Verena entre as mãos. Os olhos verdes da esposa, tão marcados por olheiras e culpa, pareciam mais suaves agora — vulneráveis, sim, mas sinceros.

— Eu sinto sua falta, Verena... — murmurou, com a testa encostada na dela. — Da mulher que ria comigo no meio da madrugada por causa de piadas sem graça. Que me provocava só pra me arrancar um beijo. Que fazia planos pro futuro como se fosse invencível.

Verena fechou os olhos, tragando cada palavra com um nó na garganta.

— Eu ainda sou essa mulher, Sil. Só... me perdi no meio do caminho.

— Então me encontra de novo. — Silvia falou como um pedido. — Mas com calma. Um passo de cada vez.

Verena deslizou os dedos até a nuca da esposa, puxando-a com delicadeza para um beijo. Foi lento, como se ambas estivessem reaprendendo a tocar uma à outra. Sem pressa, sem exigências. Um beijo cheio de cuidado — mais gesto de amor do que de desejo.

Quando se afastaram, Silvia encostou o rosto no ombro dela, abraçando-a pela cintura.

— Fica aqui só mais um pouco?

— O tempo que você quiser.

Elas permaneceram ali, envoltas em silêncio, como se o mundo lá fora tivesse deixado de importar por alguns minutos. Um pequeno refúgio, onde as feridas ainda doíam, mas já não sangravam tanto.

E quando Verena, enfim, deixou o escritório, sentia-se um pouco mais inteira do que quando chegou. Não sabia o que viria depois — mas pela primeira vez em dias, sentia que talvez, só talvez, houvesse chance de recomeçar.

...

Valentina despertou com a claridade atravessando as frestas da cortina e o som abafado de pratos sendo lavados na cozinha. Seu corpo ainda parecia pesado, como se a febre tivesse drenado não só sua energia, mas também sua vontade de sair da cama. O quarto estava quente, acolhedor, mas o lençol colado à pele denunciava o suor da noite.

Forçou-se a sentar. A garganta ainda doía, embora menos do que no dia anterior. A cabeça latej*v* com menos intensidade, o que já parecia uma pequena vitória. Espiou o celular: dezenas de mensagens não lidas no grupo da escola, e algumas da amiga mais próxima, Carol, insistindo em saber como ela estava. Ignorou todas por enquanto.

Na porta, sua irmã mais nova apareceu com um copo de suco de laranja e um biscoito na mão.

— A mãe mandou você comer alguma coisa — disse com a voz infantil e autoritária de quem se acha adulta.

Valentina sorriu fraco e estendeu a mão.

— Obrigada, anjinho.

— Você vai melhorar logo? A mamãe disse que sim. Mas eu fiquei com medo ontem, quando vi você suando e falando sozinha.

— Eu tava sonhando, só isso — respondeu, tentando soar leve, mas com um nó na garganta que ela não sabia de onde vinha.

A irmã assentiu e correu de volta, deixando Valentina sozinha no quarto novamente. Deu um gole no suco, pegou o celular e finalmente abriu a conversa com Carol.

"Tô melhor. Só cansada. Tá tudo meio estranho ultimamente. Mas vai passar."

Digitou e apagou várias vezes antes de mandar. No fim, deixou apenas um:

"Oi. Ainda tô viva rs."

A resposta veio quase imediata, cheia de emojis preocupados e promessas de que iriam conversar direito quando ela melhorasse.

Valentina encostou-se de novo ao travesseiro. Seu corpo parecia querer descansar por mais uma eternidade, mas sua mente já voltava a rodar — e, inevitavelmente, uma lembrança surgia com força: o olhar de Verena, os dedos roçando nos seus naquele dia no gabinete. Era tolice, ela sabia. Mas algo naquela troca havia deixado um rastro dentro dela. E mesmo febril, seu coração insistia em revisitá-lo.

...

A tarde já começava a cair quando a campainha tocou no apartamento de Verena. A deputada, agora mais centrada, depois do reencontro com Silvia, abriu a porta encontrando Rafaela apoiada contra o batente, os cabelos ruivos presos num coque bagunçado e uma sacola de supermercado pendurada no braço.

— Trouxe vinho. E um sermão, mas o vinho vem primeiro — disse com um meio sorriso.

Verena deu espaço, suspirando, e a amiga entrou sem cerimônias, já familiarizada com o ambiente. Foram direto para a cozinha, onde Rafaela deixou a garrafa sobre a bancada e começou a organizar duas taças.

— Tava precisando? — perguntou, olhando de relance para Verena.

— Nem sei por onde começar.

— Então começa calando a boca e ouvindo. Que hoje, minha filha, você vai me escutar.

Sentaram-se na varanda, onde a luz âmbar do fim do dia pintava o céu em tons de laranja e azul. O vento soprava leve, e por alguns instantes, ficaram em silêncio, cada uma com sua taça nas mãos. Rafaela foi a primeira a romper o sossego.

— Verena, eu tô dizendo isso porque sou sua amiga. Mas você precisa ir pra terapia. Sério. Isso que tá rolando com você… com essa menina... tá saindo do controle. E não é justo com ninguém.

Verena abaixou o olhar, girando a taça entre os dedos.

— Eu sei. Eu disse que ia procurar alguém, e vou. Só… me dá um tempo.

— Tempo? — Rafaela arqueou uma sobrancelha. — Você acha mesmo que tem esse luxo? Verena, isso não é só uma fantasia de meia-idade. A menina tem 16 anos. E você… você é casada. Ama a Silvia. Planeja um filho com ela. Não pode simplesmente colocar tudo a perder por um impulso.

Verena levou a mão à testa, exausta.

— Eu não tô brincando com isso, Rafa. Nunca estive.

— Então para. Para de alimentar essa ideia dentro da sua cabeça. Porque ela tá crescendo, e você sabe que é perigosa. Isso não é ficção, Verena. Isso é a vida real.

Silêncio. Verena encarava o horizonte como se ele pudesse lhe oferecer uma resposta que não vinha. A taça em sua mão tremia levemente.

Rafaela suavizou o tom, mas manteve o olhar firme.

— Terapia. Agora. Promete?

Verena respirou fundo, derrotada.

— Tá bom. Eu prometo.

Rafaela assentiu, e após um instante, puxou um dos pés para cima da cadeira.

— Ótimo. Agora bebe essa taça aí antes que eu jogue na sua cara. E se fizer mais alguma cagada, vai ser com a cara roxa de tapa.

Verena riu, fraco, mas genuíno. Um sorriso que não surgia havia dias.

— Obrigada, Rafa.

— Sempre, dona deputada. Mas ó... se apaixonar por adolescente não é problema político, é caso de divã.

A risada veio mais forte agora, dissolvendo um pouco do peso. E por um momento breve, Verena sentiu que poderia começar a se reencontrar — devagar, um passo de cada vez.

Fim do capítulo


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Comentários para 10 - Frestas:
jake
jake

Em: 11/06/2025

Que cap maravilhoso de se lê Valentina não está conseguindo se livrar do sentimento tudo está rápido demais e ficando difícil....Verena está tentando mas tbm não está conseguindo....No final Sil e que está sofrendo....vamos vê oq vai dar no final.... Parabéns autora pela história maravilhosa...


anonimo2405

anonimo2405 Em: 17/06/2025 Autora da história
Ahh, obrigada!

Me deixa muito feliz saber que está gostando.


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Zanja45
Zanja45

Em: 01/05/2025

Está mais perceptivel que Valentina está gostando da proximidade de Verena, apesar de ela considerar que não está certo, porém está sendo atraida pelos próprios desejos. - Em fase de descobertas, pois ainda está sob o véu da igreja que dita o que é certo e o que é errado. -Entretanto há uma briga intensa contra esses pensamentos que tendem a se interpor contra sua vontade.


anonimo2405

anonimo2405 Em: 03/05/2025 Autora da história
Parece que ela vive numa montanha russa. Uma troca de sensações muito rápida, uma hora no céu com o que sente, outra no fundo do poço.


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Zanja45
Zanja45

Em: 01/05/2025

Sustentar um casamento em que só um lado se entrega verdadeiramente torna - se insustentável, mas é válido buscar fazer terapia, no sentido de entender os sentimentos. - Pelos menos agora Silvia já está mais consciente em relação a Verena.

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Zanja45
Zanja45

Em: 01/05/2025

Que atitude exasperante de Verena, se entregar ao alcool e cigarro, como uma forma desesperada de quem não estar conseguindo conter os pensamentos intrusivos em relação a Valentina. - Será que Silvia percebeu que a valentina da qual ela falava era a filha de Ana Paula, sua prima?


anonimo2405

anonimo2405 Em: 03/05/2025 Autora da história
Atitude de quem tenta consertar um erro com outro. Feio demais. Tadinha da Silvia, acho que não hein, ela deve ter ficado em choque. Ou talvez percebeu né.


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Zanja45
Zanja45

Em: 01/05/2025

Por mais que Verena tente, Valentina é uma lembrança constante. - E por mais que ela se esforço para se acertar com Silvia, está dificil. - Pois os pensamentos estão voltados para os toques de mãos com as da estagiária.

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