Elevadores e Silencio
O relógio marcava 17h42 quando Verena saiu da última reunião do dia. Os saltos ecoavam no piso frio do prédio da Câmara como um metrônomo impaciente. Ela ajustou os óculos no rosto, ajeitou os cabelos atrás da orelha e alisou, com leveza, o paletó preto. Cada gesto, um disfarce. Um ensaio forçado de normalidade.
Ao virar o corredor em direção ao elevador, apertou o botão com a ponta do dedo, rezando por um minuto de solidão. Mas, como se o destino zombasse da sua paz artificial, a porta metálica se abriu... revelando Valentina, sozinha, parada no fundo da cabine.
Por um segundo, Verena hesitou.
— Deputada... — a garota disse, educadamente, dando um passo para o lado.
Verena apenas assentiu com a cabeça, entrou e ficou de costas para Valentina, observando o visor eletrônico marcar os andares. O silêncio, espesso como neblina, envolveu as duas. Só se ouvia o zumbido leve do motor e o tilintar de um pingente que balançava no pescoço da menina.
O perfume de Valentina era sutil. Algo floral, suave, mas que perfurava a couraça de Verena como um sussurro proibido. Ela sentia o calor do corpo da garota ao lado, o peso da respiração contida. Estavam próximas. Demais.
— Como... está se adaptando? — perguntou Verena, a voz baixa, quase rouca.
— Bem... acho que bem — respondeu Valentina, olhando para frente, sem encará-la. — Todo mundo é muito gentil.
Verena cruzou os braços, disfarçando o desconforto que subia como uma maré.
— Que bom... — murmurou.
O elevador parou no primeiro andar. Um solavanco leve. As portas se abriram devagar. Nenhuma das duas se mexeu por um segundo. Depois, Valentina deu o primeiro passo. Verena deu meio passo, dando passagem. A seguiu com os olhos, afrouxando a gola da camisa branca. No saguão, as vozes dos seguranças e de outros servidores ecoavam, desfazendo a bolha sufocante do elevador.
Mas a pressão interna, essa seguia intacta.
...
No carro, a caminho de casa, Verena segurava o volante com força. O rádio tocava uma música qualquer, mas ela não ouvia nada. Na cabeça, o perfume da garota, os dedos se roçando sem querer dias atrás, os olhares evitados.
"Isso é loucura", pensou, rangendo os dentes. "Ela tem dezesseis. Ela é da família da Silvia. Isso não pode estar acontecendo."
Mas estava.
Chegou em casa já com a noite avançada. Silvia a esperava na cozinha, de avental, preparando algo simples. O cheiro de alho refogado preenchia o ambiente — algo acolhedor, cotidiano, previsível. E, no entanto, tudo em Verena gritava por silêncio, por espaço, por ar.
Silvia sorriu.
— Pensei em fazermos algo diferente no fim de semana. Um dia só nosso. Sem trabalho, sem celular.
Verena apenas sorriu de volta, sem entusiasmo.
— Claro... podemos tentar.
E, por dentro, sentia que já não sabia ao certo o que queria. Nem quem estava se tornando.
Ainda naquela noite…
Silvia se virou, colocando dois pratos sobre a mesa posta com simplicidade. Guardanapos de pano dobrados com capricho, talheres bem alinhados. Verena observou tudo aquilo com um olhar distante, como se enxergasse a cena através de um vidro embaçado.
— Está com uma cara estranha — comentou Silvia, puxando a cadeira. — Muito trabalho hoje?
Verena sentou-se em frente a ela. Sorriu, mas o sorriso não chegou aos olhos.
— É... — murmurou, mexendo distraidamente no copo de água. — Só... um dia cansativo. Muita coisa na cabeça.
Silvia assentiu, compreensiva.
— Eu sei como é. Aqui também não tem sido fácil. Dois clientes desistiram do contrato. Mas não vamos falar de problemas agora, né? Eu queria mesmo é propor que a gente viaje no feriado. Só nós duas.
Verena pareceu hesitar. Levou o garfo à boca, mastigou devagar. Silvia continuava animada, falando de pousadas, destinos próximos. Mas de repente, Verena interrompeu, com a voz baixa:
— E se... a gente pensasse mesmo em ter um filho?
Silvia congelou por um instante. Os olhos castanhos se fixaram nos de Verena, entre surpresa e confusão.
— Um... filho?
Verena assentiu devagar.
— É. A gente falou disso algumas vezes. E... talvez seja a hora. Talvez seja isso que tá faltando. Uma mudança real. Algo que seja nosso.
Silvia demorou a responder. Tocou a borda do copo com os dedos, pensativa.
— Verena... você nunca demonstrou querer de verdade. Sempre dizia que não era o momento, que sua carreira, que o gabinete... Por que agora?
Verena respirou fundo, ajustou os óculos como sempre fazia quando queria esconder alguma coisa.
— Eu só... tô sentindo que as coisas precisam mudar. Que eu preciso... ancorar em algo mais sólido. Nós estamos bem. Só falta... mais vida aqui dentro. Mais amor espalhado por essa casa.
Silvia sorriu, tocada — ainda que desconfiada.
— Você tem certeza?
— Não sei se é certeza. Mas é um desejo. — Ela estendeu a mão por cima da mesa e tocou a de Silvia. — A gente pode pensar com calma. Mas quero tentar.
Silvia entrelaçou os dedos aos dela, emocionada.
— Isso me deixa muito feliz, sabia?
Verena assentiu, mas, por dentro, sentia o peso de uma mentira disfarçada de esperança. Não era exatamente um filho que queria — queria apagar o que sentia, desviar o olhar, esquecer as mãos que se roçaram no gabinete, o perfume leve no elevador, a lembrança dos olhos de Valentina.
Naquela noite, pela primeira vez em muito tempo, elas dormiram abraçadas.
E Verena chorou em silêncio, de costas para Silvia.
Quinta-feira à noite – Happy hour em um restaurante discreto nos Jardins
O ambiente era acolhedor: iluminação baixa, mesas de madeira rústica, plantas suspensas criando divisórias naturais entre os grupos. Um trio de jazz tocava ao fundo, e o som dos talheres misturava-se às risadas de executivos e casais que preenchiam o salão. Verena, Silvia e Rafaela estavam sentadas em uma mesa mais reservada, próxima à janela, com uma vista charmosa da rua movimentada.
— Esse vinho tá ótimo — comentou Silvia, com um sorriso leve nos lábios, relaxada pela primeira vez em dias. — A gente devia fazer isso mais vezes.
Verena assentiu, distraída, os olhos percorrendo o ambiente como quem procura um ponto de fuga. Rafaela, sempre com uma expressão meio debochada, girava o copo de caipirinha com uma rodela de limão pendurada na borda.
— Então, me atualizem aí — disse Rafaela, com aquele ar de quem não vai deixar nada passar. — Vocês duas andam ocupadas demais pro meu gosto. Estão tramando o quê?
Silvia deu uma risadinha e, como quem deixa escapar algo sem querer, disparou:
— Ah, não contei? A gente tá começando a planejar um filho.
Rafaela arqueou as sobrancelhas, o sorriso escorregando dos lábios. Virou o rosto lentamente para Verena, como se estivesse esperando uma confirmação silenciosa — ou uma negação. Verena se ajeitou na cadeira, passou a mão nos cabelos, depois nos óculos, depois no colarinho do blazer. Um ritual automático de quem não quer se expor.
— Sério? — perguntou Rafaela, tentando manter a voz leve, mas com um quê de incredulidade.
— Sério. — Silvia parecia animada. — Claro, ainda é cedo, estamos conversando, mas só o fato da Verena ter trazido o assunto... pra mim já é enorme.
— Enorme mesmo — murmurou Rafaela, ainda com os olhos fixos em Verena.
Verena sorriu sem mostrar os dentes e desviou o olhar para o cardápio, como se aquilo fosse a coisa mais interessante do mundo.
— Mudança de planos, né? — Rafaela completou, agora com um tom neutro, quase frio. — É... bom saber.
Silvia, que parecia não ter notado o clima sutil que se instalou na mesa, pegou mais um gole de vinho e continuou falando sobre clínicas de fertilização e adoção, enquanto Verena permanecia calada, mexendo distraidamente em uma batata frita. Rafaela, por sua vez, agora observava tudo com olhos atentos — não ao vinho, não à música ambiente, mas à amiga ali diante dela, claramente tentando apagar um incêndio com panos úmidos de desculpas.
Ela não disse mais nada naquela noite, mas Verena sabia: o sermão viria no dia seguinte.
E não seria leve.
Sexta-feira – Gabinete parlamentar, 9h03
O som da cafeteira preenchia o ambiente com seu ronronar abafado. A luz do sol atravessava as janelas amplas, lançando feixes dourados sobre a mesa de reuniões. Verena estava ali desde cedo, revisando documentos, mas mal prestava atenção nas páginas. Os dedos tamborilavam contra a mesa. O blazer preto cobria a camisa clara de sempre. Óculos ajustados no rosto, cabelo preso em um coque impecável. Tudo milimetricamente no lugar — menos a cabeça.
Rafaela entrou sem bater, como sempre fazia. Com uma expressão que mesclava cansaço e irritação, largou sua bolsa em cima de uma poltrona e cruzou os braços.
— Então é isso? — começou, sem nem dizer bom dia. — Vai me contar agora ou espero sair no Diário Oficial?
Verena sequer levantou os olhos.
— Bom dia pra você também, Rafa.
— Ah, não vem com ironia, Verena! Você sabe exatamente do que eu tô falando!
A deputada soltou um suspiro, tirou os óculos e os colocou sobre a mesa com cuidado. Encarou a amiga.
— Se você tá falando sobre o que a Silvia comentou ontem, sim, a gente tá conversando sobre isso.
Rafaela deu uma risada curta, sem humor.
— Conversando? Verena, até outro dia você dizia que um filho era a última coisa nos seus planos. Que não dava pra ter criança nesse caos político, nessa bagunça que é a tua vida. E agora, do nada, você tá animada com essa ideia? Me poupe.
Verena ficou em silêncio. Os olhos escuros não piscavam, mas também não enfrentavam o olhar da amiga.
— Foi um impulso, né? — Rafaela pressionou, mais baixo. — Você tá tentando se agarrar em alguma coisa. Fingir que a vida tá sob controle. Só que um filho... não é uma decisão que se toma assim, pra calar um buraco emocional.
Verena levantou-se, caminhou até a janela. Os carros passavam lá embaixo como formigas. Ela cruzou os braços, apertando os cotovelos.
— Eu sei disso — disse, finalmente. — Mas eu também sei que a Silvia tá esperando por um gesto meu há meses. E... talvez seja hora de tentar salvar o que ainda dá pra salvar.
Rafaela se aproximou, o tom mais brando agora.
— Verena... você quer mesmo salvar esse casamento... ou quer apagar a culpa de outra coisa?
Verena se virou com os olhos fixos nela, as palavras como lâminas não ditas presas na garganta.
— Não é sobre a Valentina — ela respondeu, rápida demais.
O nome ficou ali, pairando entre as duas, carregado de tudo o que não deveria ser dito em voz alta. Rafaela ergueu uma sobrancelha, como se dissesse "é mesmo?"
— Eu não disse nada sobre ela — retrucou, provocando.
Verena cerrou o maxilar, apertou os olhos por um instante e passou as mãos no rosto, afundando os dedos nos cabelos até bagunçar o coque.
— Isso é loucura. Eu tô cansada, Rafa. Só... me dá um tempo.
Rafaela assentiu, mas não recuou.
— Eu te dou o tempo que você quiser, Verena. Mas não posso ficar calada vendo você enterrar a própria vida com decisões que você nem acredita. Só... pensa. De verdade.
Ela deu meia-volta e saiu da sala, deixando a porta entreaberta.
Verena ficou ali, parada, como quem ouve as próprias batidas do coração mais alto do que qualquer ruído no corredor.
Ela voltou a se sentar, colocou os óculos, e pela primeira vez naquele dia, deixou os papéis de lado.
Fechou os olhos.
E respirou fundo.
Fim do capítulo
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Zanja45
Em: 28/04/2025
Que dilema de Verena, logo a prima da esposa? E ainda menor de idade?Pelo visto o que está segurando mais ela é o parentesco, pois se não fosse isso já teria caído. E também a interferência constante da amiga, tentando colocar juízo na cabeça dela. - Ela está num beco sem saída. - Porque todos os dias Vale vai estar bem diante dela. - Ela vai acabar se envolvendo em um escândalo sexual e outras coisas que ela está envolvida enquanto deputada.
Gostando muito, na expectativa desses encontros, pois está muito bom. - Quero ver até onde vai a fé de Valentina e a resistência de Verena? ( Para Verena está bem mais difícil, pois ela tem muito a perder).
anonimo2405
Em: 29/04/2025
Autora da história
Que bom que está gostando! Pois é, as duas estão numa situação bem difícil, só que realmente a Verena tem muito mais consequências se não conseguir se segurar.
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Zanja45
Em: 28/04/2025
Eita! Se Verena queria silêncio, no elevador é que não encontrou - Mas, encontrou a tensão crescente, prestes a entrar em ebulição. Hahaha!
anonimo2405
Em: 29/04/2025
Autora da história
Elevadores são complicados, por isso não ando rs
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anonimo2405 Em: 17/06/2025 Autora da história
Pois é. Não é uma decisão pra ser tomada assim.