Vozes e Versos
No gabinete, o ritmo parecia diferente naquela manhã. O ar-condicionado estava mais gelado que o normal e os passos apressados nos corredores pareciam ecoar mais. Valentina chegou no seu horário habitual, como sempre, com os olhos um pouco inchados pela falta de sono e o cabelo preso em um coque apressado.
Passou direto pela recepção, tentando parecer invisível, mas Rafaela a interceptou como quem fareja nervosismo.
— Ué, bonequinha, tomou café ou só veio alimentada de ansiedade? — disse com um sorriso torto, encostando-se ao batente da porta.
Valentina tentou sorrir, sem muito sucesso.
— Tomei café, sim. Um pouco nervosa só. Final de ano, escola, estágio...
— Relaxa, você vai tirar de letra. Tem cara de menina certinha, dessas que escondem a cola pros outros não verem.
— Não escondo, não — respondeu baixinho, corando.
Rafaela soltou uma risada e cruzou os braços.
— Tá mais corada que tomate. Tá tudo bem mesmo?
Valentina assentiu, desviando o olhar. Sentia-se ainda deslocada naquele ambiente. Os ternos, os papéis, a formalidade. E Verena.
Falando nela, a porta do fundo se abriu. A deputada saiu acompanhada de dois assessores, falando sobre uma proposta de emenda, mas seu olhar cruzou brevemente com o de Valentina. Foi um segundo. Talvez menos. Mas foi como se o tempo tivesse parado. A expressão séria, os óculos ajustados com cuidado no rosto, o cabelo bem arrumado — cada gesto de Verena parecia ensaiado para não permitir vulnerabilidade alguma.
Mas Valentina percebeu algo. Um leve enrijecer no maxilar. Um desvio de olhar rápido demais. Como se Verena tivesse visto mais do que gostaria.
— Volto em dez minutos, Rafa — disse Verena sem olhar diretamente para a ruiva. — Deixa os papéis prontos.
— Sim, senhora dona excelência gelada — murmurou Rafaela quando ela se afastou. Depois se virou para Valentina com um olhar curioso. — Aquela mulher é um enigma, viu? Só não sei se é um cubo mágico ou uma bomba-relógio.
Valentina não respondeu. Só sorriu de canto e foi para sua mesa.
...
Mais tarde naquele dia
Ao chegar em casa, o cheiro de sabão em pó e arroz no fogo a envolveu como um abraço. A mãe, de avental florido, cortava couve na pia. O pai lia o jornal na sala, a irmã rabiscava um caderno no chão.
— Oi, filha. Como foi hoje?
— Corrido. Um monte de coisa no gabinete.
— Aquele lugar é chique, né? A prima Silvia deve ter puxado uns fios pra te colocarem lá.
— Acho que não... — respondeu, puxando uma cadeira. — Eles selecionam por prova e entrevista. Nada de favor.
— Tomara que esteja sendo bom. Só não esquece de quem você é, viu?
Valentina assentiu. Sabia o que a mãe queria dizer. Não esquecer de sua fé, dos valores, do que estava “certo”.
Durante o jantar, entre garfadas e comentários sobre o culto do domingo, dona Ana Paula tocou no assunto com a naturalidade de quem fala de clima:
— E o Tiago? Falou que vai na vigília com você?
Valentina corou.
— Falou sim.
— Aquele menino é direito. Se tiver interesse, não é pecado conversar, viu? Mas com juízo. Nada de segredos. Seu corpo é templo do Espírito.
Valentina sorriu, constrangida. A irmã deu risada e o pai lançou um olhar sério para a menina mais nova, que se calou na hora.
Depois do jantar, recolheu os pratos e foi até o quintal para estender algumas roupas. O céu estava limpo, e ela ficou um tempo olhando as estrelas, ouvindo o som da vizinhança: TV alta, latidos, música gospel ao fundo. Pensou no dia. Pensou em Verena.
No fundo, sabia que algo nela estava mudando. Sentia o coração pesado e confuso. E cada vez mais, aquela sensação de que vivia entre dois mundos — um onde ela sabia exatamente o que esperar, e outro que era um completo mistério.
E era esse mistério que a atraía. E assustava.
A cozinha ainda cheirava a alho refogado e louça recém-lavada. Valentina secava os pratos enquanto a mãe guardava os potes, em silêncio, como se as palavras estivessem penduradas no teto, esperando o momento certo para cair.
— Mãe — disse Valentina, quase num sussurro, olhando para o pano úmido em suas mãos. — A senhora sabia que a prima Silvia é... casada com uma mulher?
Ana Paula parou por um segundo, com a tampa de um pote suspensa no ar. Seus olhos buscaram os da filha, mas não havia reprovação ali. Apenas cautela.
— Sabia, sim. Sua tia comentou... de um jeito atravessado, claro. Mas eu sabia.
Valentina assentiu devagar.
— É que... quando ela me trouxe em casa aquele dia, eu não falei nada. Fiquei com medo do pai, sabe?
— Fez bem em não comentar. Algumas coisas... a gente precisa saber a hora certa de falar.
Ana Paula voltou a guardar o pote, mas sua voz saiu mais baixa.
— Deus ama todos, filha. Isso nunca muda. Mas tem caminhos que se afastam d’Ele. A gente não julga, não fecha a porta. Acolhe, ora, aconselha. O pecado não muda o amor de Deus, mas também não pode ser celebrado.
Valentina ficou em silêncio. Pensava em Verena. No terno preto, nos óculos cuidadosamente ajeitados, na postura firme e nos olhos que pareciam ver mais do que deviam. Pensava em como era difícil associá-la à palavra "pecado". Não fazia sentido. Não parecia errado e isso a confundia ainda mais.
— Entende o que eu tô dizendo, minha filha? — insistiu Ana Paula, gentil, mas firme.
Valentina assentiu.
— Entendo.
Mas não entendia. Não completamente. E isso a assustava.
— A gente tem que ser forte — continuou a mãe, agora lavando as mãos. — O mundo vai dizer que tudo é certo. Que tudo pode. Mas a Palavra não muda. E se você estiver firme nela, vai saber o que fazer.
Valentina forçou um sorriso, mas sua mente estava longe. A imagem de Verena voltava como um eco e junto dela, uma inquietação que nenhum versículo parecia capaz de acalmar.
...
O quarto de Valentina era simples e arrumado. A colcha florida, a estante com livros da escola e da igreja, o porta-retrato com uma foto de família sorrindo num retiro evangélico. Ela se sentou na cama e pegou a Bíblia que ficava sempre na mesinha ao lado.
Folheou algumas páginas com os dedos ainda úmidos do pano de prato. Parou no Evangelho de João, onde um versículo estava grifado com marca-texto amarelo:
"Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade." (João 17:17)
Leu em silêncio. Depois leu de novo.
Era reconfortante. Era... familiar. Mas naquela noite, as palavras pareciam distantes. Como se não entrassem direito. Como se esbarrassem em algo dentro dela — uma parede que não deveria existir.
Suspirou fundo. Lembrou do rosto da mãe, tão seguro, tão certo do caminho. E do rosto de Verena, tão... incerto. Como se ela mesma fosse feita de caminhos cruzados, cheios de atalhos perigosos e encantadores.
Fechou a Bíblia devagar, apoiando-a sobre a colcha com cuidado, como se ela fosse frágil demais para os pensamentos que ainda vinham depois.
Ela não queria pecar. Não queria se afastar. Mas também não queria mentir pra si mesma.
Fim do capítulo
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Zanja45
Em: 26/04/2025
A mãe de Valentina tem a mente mais aberta para certos tipos de assuntos, já deu para perceber. Mas não sei como será a reação dela quando descobrir sobre a inclinação da filha. - Porque Valentina já está muito perturbada com os sentimentos que estão vindo a tona em relação a Verena. - Quero ver até quando a deputada vai resistir a novinha, proibida para ela.
anonimo2405
Em: 27/04/2025
Autora da história
Pois é. A situação não tá fácil pra nenhuma delas.
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Zanja45
Em: 26/04/2025
Será que Verena ficou com ciúmes ao ver Rafa com Valentina?
anonimo2405
Em: 27/04/2025
Autora da história
Bem, acho que ela tá tão perturbada que nem deve ter pensado nisso. Mas vai saber.
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anonimo2405 Em: 10/06/2025 Autora da história
Oiie. Boa noite!
Eu que agradeço pelo carinho. Espero que continue gostando!