Tentando Consertar
O apartamento de Verena e Silvia, no décimo andar de um prédio elegante nos Jardins, estava mais animado do que em qualquer outra noite das últimas semanas. Uma playlist suave preenchia o ambiente, taças tilintavam, risos vinham da varanda onde Rafaela monopolizava a atenção com alguma história imprópria demais para ser contada em voz baixa.
Verena circulava pela sala com uma taça de vinho tinto nas mãos, os cabelos soltos, óculos bem posicionados, o vestido escuro simples e elegante — uma tentativa discreta de parecer relaxada. Silvia, ao seu lado, sorria com delicadeza, mas seus olhos atentos pareciam buscar algo em Verena que ainda não haviam encontrado naquela noite.
A mesa estava posta com petiscos, queijos e uma travessa de lasanha feita por Silvia — um ritual antigo que ela resgatara naquela noite como tentativa de retorno. Amigos de longa data estavam por ali, alguns colegas da advocacia, outros nomes conhecidos da política, mas em menor número, escolhidos a dedo para manter a noite íntima.
— Isso aqui tá parecendo celebração de contrato de casamento aberto — soltou Rafaela, jogando uma azeitona na boca, enquanto afundava no sofá ao lado de Silvia. — Só falta a plaquinha: “Liberado com consentimento mútuo”.
Silvia riu, mas com um certo rubor. Verena, por sua vez, lançou um olhar rápido para Rafaela, que respondeu com uma piscadela. Era a forma dela suavizar o ambiente, sempre no limite entre o desrespeito e o carinho.
— Você é insuportável — disse Verena, mas sem raiva. Apenas cansada.
— E irresistível — respondeu Rafa, bebendo mais um gole.
A noite seguiu entre conversas leves, pequenas memórias compartilhadas, e aquele tipo de riso que tenta, com todas as forças, mascarar o que não está sendo dito. Silvia segurava a mão de Verena de vez em quando, tocava seu braço, seu ombro. Buscava. Queria que aquele momento significasse alguma coisa além de um evento social.
Mais tarde, quando os amigos começaram a se despedir, Silvia acompanhou os últimos até a porta. Verena ficou sozinha na varanda, olhando a cidade. As luzes lá embaixo pareciam pequenas e distantes. Quase irreais.
— Foi uma boa noite — Silvia disse ao voltar, a voz doce.
Verena assentiu. Sorriu.
— Você acha que a gente ainda pode...? — Silvia começou, mas não terminou.
Ela se aproximou, os olhos serenos. Tocou o rosto de Verena, com carinho. Um gesto cheio de cuidado, mas também de carência.
— Pode tentar de novo. Com a gente.
Verena não respondeu de imediato. Apenas levou a mão ao rosto da esposa, e se permitiu, por um instante, se apoiar naquele afeto. Não era paixão, mas era real.
— Eu também quero tentar, Silvia. De verdade.
Elas se abraçaram. Um abraço demorado, mas sem urgência. Era mais alívio do que desejo.
Mas quando subiram pro quarto, Verena soube. Soube que mesmo tentando, aquilo não se encaixaria mais como antes. A noite terminou com carícias leves, quase tímidas, e um silêncio que gritou alto demais no escuro do quarto.
No dia seguinte, enquanto tomava café sozinha na varanda, Verena ajeitou os óculos no rosto, o cabelo atrás da orelha, e encarou o céu de São Paulo — meio cinza, meio azul.
A mente já vagava de volta ao gabinete, aos papéis, ao golpe em andamento, e — contra sua vontade — à menina de olhar assustado no corredor.
Valentina.
...
O céu de São Paulo estava encoberto, como se o dia tivesse acordado com preguiça. Verena tomava o último gole do café já frio, sentada na varanda, com as pernas cruzadas e o jornal esquecido ao lado. As plantas que Silvia cuidava com tanto carinho balançavam levemente com o vento. Ela ajeitou os óculos com um gesto automático, passando os dedos pelos cabelos e depois pela gola da camiseta. Tudo nela denunciava inquietação.
Ela pensava na noite anterior. Silvia tão dedicada, os amigos, o riso solto de Rafa... e ainda assim, nada parecia tocar o lugar certo dentro dela. Era como se tivesse assistido tudo de fora. Como se já estivesse ausente — mesmo ali.
Levantou-se devagar, foi até a cozinha e colocou a xícara na pia. Silvia ainda dormia. A noite havia terminado com beijos mornos, toques cuidadosos, e um abraço que parecia mais uma despedida. Por um momento, Verena quis chorar. Mas respirou fundo e pegou o celular: mensagens de Rafaela, lembretes da assessoria, e um simples “Bom dia” de Gabriela, que ela ignorou.
Ela saiu em silêncio.
...
O gabinete estava mais agitado do que de costume naquela segunda-feira. Verena entrou sem dizer muito, acenando discretamente aos funcionários e indo direto para sua sala. Deixou a bolsa no sofá, ligou o computador, e abriu a janela como fazia todas as manhãs. Precisava de ar.
Pouco depois, uma batida tímida ecoou na porta entreaberta.
— Com licença, deputada.
Valentina.
Verena virou-se. A garota estava parada ali, com o mesmo semblante tímido, segurando uma pasta. Usava uma camisa bege e uma calça escura, o cabelo preso num rabo de cavalo frouxo que deixava algumas ondas caírem ao redor do rosto.
— Oi — disse Verena, seca. — Precisa de alguma coisa?
— A senhora Rafaela pediu pra eu entregar isso — ela se aproximou devagar, deixando a pasta sobre a mesa. — São os relatórios da semana passada e a prévia do projeto de lei que a senhora pediu.
— Pode deixar ali mesmo.
Valentina hesitou, como se quisesse dizer algo. Então, ao ver que Verena já voltava a olhar para a tela do computador, deu um passo para trás.
— Ah... eu ia comer por aqui, antes de começar a organizar os arquivos. Trouxe um lanche, mas—
— Valentina — interrompeu Verena, sem desviar o olhar da tela — existe um refeitório no prédio, sabia?
A garota arregalou os olhos, claramente pega de surpresa.
— S-sim... desculpe. Eu... achei que não teria problema só hoje.
— Aqui é um ambiente de trabalho, não a sala da sua casa. Evite esse tipo de coisa.
Valentina assentiu, constrangida.
— Claro. Não vai acontecer de novo. Me desculpe.
E saiu apressada, os passos apressados e silenciosos ecoando no piso frio do corredor.
Verena ficou sozinha na sala, sentindo o peso do próprio tom de voz. Ajeitou os óculos, cruzou os braços e encarou a pasta sobre a mesa como se ela fosse culpada por algo.
— Bom dia, excelentíssima — disse Rafaela, entrando pouco depois com um copo de café na mão. — Peguei no terceiro andar. O nosso já parece petróleo vencido.
Verena não respondeu.
Rafaela arqueou a sobrancelha.
— Tá com a mesma cara de quem dormiu em cima de um dossiê.
— Dei uma bronca na estagiária.
— A Valentina?
Verena assentiu, olhando para os papéis sobre a mesa.
— Ela ia comer aqui dentro. Achei melhor lembrar que temos um refeitório.
— A garota tá apavorada, Verena. Não custa nada um pouco de humanidade antes das regras. Ela já anda parecendo um gato em casa de gente estranha. Aí você vai lá e liga o aspirador na frente dela.
Verena suspirou, passando a mão no cabelo, depois ajeitando o colarinho da blusa.
— Eu só... prefiro não criar vínculos. Principalmente com ela.
— Por causa da Silvia?
Verena não respondeu.
Rafaela se aproximou e apoiou o café na mesa. Cruzou os braços.
— Só espero, de verdade, que você não esteja confundindo preocupação com desejo. Porque aquela menina tem 16 anos. Isso não é só uma linha que você pode atravessar, é um abismo.
Verena encarou a amiga.
— Eu não sou louca.
— Mas tá andando perto demais do fogo.
Um silêncio denso se instalou entre elas.
— Ontem à noite... — começou Verena, baixando o tom — eu tentei de verdade me reconectar com a Silvia. Foi bom. Mas... não o suficiente.
Rafaela se aproximou, sentou na poltrona de frente.
— Não existe fórmula, Vê. Às vezes não é a falta de amor. É só que vocês mudaram, e estão tentando manter vivo o que talvez já tenha se transformado.
Verena passou a mão pelo rosto.
— E eu não sei mais o que fazer.
Rafa se levantou, pegou o café da mesa e sorriu.
— Faz o que sempre fez: respira, observa, e decide com calma. Mas pelo amor de todos os escândalos que já desviamos, não mexe com a Valentina.
Verena não respondeu. Apenas olhou pela janela. A cidade lá fora parecia parada, como se segurasse a respiração com ela.
Fim do capítulo
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anonimo2405 Em: 30/04/2025 Autora da história
Pois é. Fico com pena da Silvia.