Capítulo 14
Não vi Marcela, nem no restante da quinta e nem na sexta. Conversamos por mensagens, mas em momento algum ela propôs ou deu a entender que queria me ver. E eu também não. Estava morrendo de medo de ser inconveniente, de parecer emocionada demais, de ser chata. Mas aquilo me incomodou profundamente. Eu estava com saudades. Queria vê-la, tocá-la, beijá-la. Só na sexta à noite tentei sutilmente um convite para fazermos algo. Ela declinou educadamente, fazendo eu ter certeza de que tinha acabado sabe-se lá o que nós tínhamos começado na casa dela. Havia sido só aquilo. Nunca mais se repetiria. Não nos veríamos mais. Depois disso, nossa conversa morreu.
No dia seguinte pensei várias vezes se deveria ir no aniversário de Artur. Não sei se estava preparada para ver Marcela e saber que as coisas tinham mudado. Meu Deus, eu sou uma sapatão muito emocionada! Alguns amigos perguntaram se eu queria carona, respondi que não. Se eu fosse, iria no meu carro. Por dois motivos. Sendo otimista: assim eu poderia dar uma carona de volta para Marcela. Sendo pessimista: assim poderia vir embora a hora que eu quisesse, caso sentisse vontade. No fim, resolvi ir. Não fazia sentido mudar minha vida social só porque ela estaria lá. E pelo menos vou vê-la de novo.
Estacionei o carro, peguei o presente e desci. Odiava chegar sozinha nos lugares. Com os olhos procurei Karina. Encontrei meus amigos primeiro, sentados em uma mesa. Fui até eles. Puxaram uma cadeira para mim.
— Viram Karina e Artur?
Ricardo apontou para a mesa onde estava o bolo:
— Tirando fotos.
Meu estômago gelou. Olhei na direção deles. Marcela estava de costas para mim, para meu alívio. Ela estava toda de preto, com calça e blusa sociais. O cabelo preso alinhadamente. Odiei gostar daquela outra versão dela. Eu estou ferrada. Fiquei sentada esperando a oportunidade de falar com Karina e o aniversariante. Com Karina até consegui, entreguei o presente, mas Artur não parava um só minuto, correndo e brincando com as outras crianças.
Eu acompanhava Marcela com o olhar, mas quando ela se virava em minha direção, eu desviava os olhos. Não sabia se ela já tinha notado minha presença. E não sabia se eu queria descobrir.
Eu já estava há uns vinte minutos na festa quando fui novamente fazer minha ronda com o olhar, procurando por ela. Dessa vez a encontrei olhando para mim. Meu coração disparou. Marcela sorriu e acenou discretamente. Eu retribuí o sorriso. E fiquei mais aliviada. Na minha cabeça ansiosa, ela… sei lá… fingiria que não me conhecia.
*****
Durante os curtos minutos da casa da minha tia até o sítio onde eu iria trabalhar, eu e meu primo não trocamos mais que quatro palavras. Fomos num silêncio constrangedor. Eu não sabia o que dizer para puxar assunto com ele. Nunca fomos próximos, ao contrário da relação que eu tinha com Érica. Talvez pelo fato de Evandro sequer ter nascido quando me mudei para o Rio. E nas poucas vezes em que vim de férias, ele sempre foi muito mais novo, não entrando muito nas nossas brincadeiras. Na verdade, eu e Érica o expulsávamos, não deixávamos que ele participasse. Pensando agora, talvez esse distanciamento tenha sido um pouco minha culpa.
Quando chegamos, Evandro desceu do carro comigo e abriu a porta de trás para que eu pegasse minhas coisas. Eu agradeci com um sorriso, ele murmurou um “de nada”. Sem me olhar, perguntou que horas queria que ele me buscasse. Eu respondi que ligaria assim que estivesse liberada. Agradeci de novo. Ele entrou no carro e foi embora.
A família do aniversariante ainda não tinha chegado, como eu já esperava. Eu gostava de chegar mais cedo para preparar tudo, conhecer o lugar, ter ideias de fotos…
Depois que configurei a câmera, comecei a fotografar a ornamentação da festa. Já tinha terminado quando os primeiros convidados chegaram e, logo depois, o aniversariante. Karina veio me cumprimentar e apresentar Artur, que eu passei a praticamente perseguir por onde ia, tentando tirar o maior número de fotos com qualidade que conseguia. Fotografar criança era sempre um desafio, mas era delicioso.
Quando dei uma pausa nas fotos — Artur estava no pula-pula e eu já tinha conseguido boas fotos dele lá — fiquei num canto esperando o próximo clique. Só então dei uma olhada em volta, tentando localizar Ciça, mas não a encontrei. Não sabia se ela viria. Não nos falávamos desde o dia anterior. E eu sabia que por minha culpa. Inconscientemente me afastei. Ou melhor, afastei Ciça. Talvez fosse melhor assim. Não queria envolvê-la em algo que para mim não seria possível ter futuro. Não duraria muito, só o tempo em que eu ficaria na cidade. E vai ser breve! Depois me recriminei por estar pensando por Ciça, eu nem sabia o que ela realmente queria, o que pensava. Talvez quem não quisesse nada sério fosse ela, inclusive.
Meu momento de reflexão foi interrompido quando meu mini-cliente passou correndo na minha frente, cheio de crianças atrás. Acompanhei Artur, tirando algumas fotos de longe. Depois sugeri para Karina que fizéssemos as fotos no bolo. Artur já estava impaciente de ficar preso, passando de colo em colo, enquanto queria brincar. Ri da expressão de profundo alívio dele quando foi libertado e pôde voltar a correr. Foi quando saí de perto da mesa do bolo que eu a vi. Ciça estava sentada em uma mesa com outras pessoas. Alguns eu reconheci. Ela não me viu, mas eu passei a acompanhá-la com os olhos sempre que possível.
A olhei várias vezes, mas ela não me olhava de volta. Até que finalmente nossos olhares se cruzaram. Sorri e acenei. Ela também sorriu. Estranhamente senti um frio na barriga. Uma coisa diferente. Percebi que estava com saudades dela. Eu estava ficando louca, pois naquele momento pensei ter sentido o cheiro de Ciça invadindo minhas narinas. Ela já não me olhava mais. Fiquei agitada. Uma estranha sensação de… perda. Saí de onde estava, fui atrás de Artur. Me afastei da mesa dela. Mas não conseguia me controlar. Eu a buscava o tempo inteiro. Nos olhamos de novo. Dessa vez sem sorrisos. Uma breve troca de olhares. Circulei pela festa. Mais fotos. Karina me pediu que fotografasse as mesas com ela e o pai de Artur. Até tentaram levar o aniversariante, mas ele resistiu bravamente, se escondendo na piscina de bolinhas. Quando chegamos na mesa em que Ciça estava, a olhei mais uma vez. Ela também me olhou. Parecia que a gente queria se dizer algo com o olhar. Precisei desviar e olhar por trás da câmera. Próxima mesa. Mais várias fotos. Entre uma mesa e outra eu voltava a procurá-la. Eu estava inquieta. Vi uma das moças falar no ouvido de Ciça. Me assustei com a reação do meu corpo vendo aquela cena. Eu estava com ciúmes. Caralh*! Será que elas duas… não, aquela era Isabela, amiga de Ciça. Amiga. E se fosse uma amizade com benefícios? Eu mesma tinha amigas que se tornavam minhas amantes em algumas noites, quando as duas estavam afim, sem fazer nada, um pouco carentes…
A moça ficou colada em Ciça, fazendo aquele sentimento horrível crescer dentro de mim. Eu estava absolutamente surpresa comigo mesma. Precisava me controlar. Estava trabalhando. Sempre soube lidar com meus sentimentos, aceitá-los, dominá-los, controlá-los, mas naquele momento não. Minhas mãos estavam suando. Não queria olhar, mas era traída por mim mesma. Olhava. E não gostava do que via.
Quando as fotos terminaram, Karina perguntou o que eu queria comer, disse que não tinha me visto comer nada. E era verdade, eu só havia tomado um suco. Não estava com muita fome. Mas ela fez questão, pediu para um garçom trazer uma bandeja com tudo que estivesse disponível para que eu comesse. Ele trouxe, eu peguei uma pipoca, cachorro-quente, suco e batata frita, e fui para uma mesa vazia no canto da festa. Estava mastigando, com a boca completamente cheia, quando ouvi a voz dela:
— Festa de criança é sempre ótima, né?
Levantei meus olhos, e coloquei a mão na frente da boca. Fiquei com vergonha de repente. Ciça tinha um pequeno sorriso nos lábios, mas eu podia ver o brilho divertido nos olhos dela ao me flagrar comendo com ímpeto, e com a mesa cheia de comida.
Quando consegui engolir, brinquei de volta:
— Não conta pra ninguém, mas acho que eu viria mesmo sem cachê…
Ela riu comigo. Indiquei a cadeira ao meu lado e convidei:
— Senta…
*****
Eu não sabia decifrar aqueles olhares. O que significavam? Significavam alguma coisa? Ela tinha deixado claro que não estava a fim de me ver nos últimos dois dias. Eu estava me sentindo rejeitada. Por mais que eu soubesse que ela não era obrigada a querer me ver, nem querer repetir, assim como não tinha sido a primeira vez que levei um toco, como também provavelmente não seria a última… Eu continuava com aquele sentimento de rejeição. Me martirizava pensando no que eu tinha feito de errado, o que Marcela não tinha gostado. Mas ela sorriu para mim… Sorriu por educação. O que eu esperava? Que ela me mostrasse o dedo do meio numa festa de criança?
— Sua… amiga… não tira os olhos de você…
Isabela sussurrou no meu ouvido. Eu sabia de quem ela estava falando, claro. Assim como não passou despercebido o tom que ela usou na palavra “amiga”. Mas, mesmo assim, me fiz de desentendida:
— Que amiga?
Isabela fez uma careta para mim:
— Ah Ciça, por favor…
Não tentei mais fingir. Também não respondi. Isa chegou a cadeira para mais perto de mim, passou o braço pelo meu ombro e continuou falando baixo, para que ninguém mais na mesa ouvisse:
— Aconteceu alguma coisa entre vocês, né? Se não aconteceu, já já vai acontecer…
Eu sacudi a cabeça em negação:
— Por que tá falando isso?
— Tá muito na cara… Vocês duas se olhando o tempo todo…
Suspirei e olhei para baixo:
— A gente… aconteceu… mas acho que já acabou.
Isabela riu e apertou o braço ao meu redor:
— Ai, amiga… A menina não para de te olhar. Vocês ficaram?
Respondi apenas balançando a cabeça.
— E já brigaram?
— Não brigamos… Ela se afastou…
Isabela voltou a falar no meu ouvido:
— Minha filha, pela forma que ela tá te olhando, não acabou nada.
Eu levantei os olhos e disfarçadamente procurei por Marcela de novo. Isa completou:
— Se eu fosse você, tomava uma iniciativa.
Isabela afastou a cadeira. Ainda pedi baixinho:
— Não comenta com ninguém ainda, por favor.
Ela sorriu e meneou a cabeça.
— Posso saber o que as duas tanto conversam escondido?
Isabela fez uma careta para Léo:
— Assunto de meninas.
Quando percebi que Marcela sentou sozinha numa mesa, tive o ímpeto de ir até ela. Mas não atendi de imediato. Não sabia se estaria sendo invasiva. Não sabia se ela queria uma aproximação. E também tinha o fato dela estar trabalhando. Fiquei por alguns minutos inquieta. Até que decidi seguir o conselho de Isabela. Falei para que só ela ouvisse:
— Já volto.
Isa sorriu e piscou para mim.
Me aproximei de onde Marcela estava, com o coração quase saindo pela boca. Não sei como consegui falar, mas minha brincadeira pareceu quebrar o gelo. Fiquei mais calma.
— Senta…
Puxei a cadeira e me sentei ao lado dela.
— Quer?
Apontou para as comidas na mesa. Eu agradeci e fiz que não com a cabeça. E fiquei com medo do silêncio se alongar demais, ficando constrangedor. Falei a primeira coisa que consegui pensar:
— Evandro te trouxe?
Ela balançou a cabeça enquanto mastigava. Depois disse:
— Aqui é bem pertinho da cidade mesmo, como você falou…
Eu concordei. Silêncio de novo. Foi ela quem falou:
— O Artur é uma graça…
Eu sorri:
— Ele é…
Marcela bebeu um gole de suco, deixou o copo na mesa e virou o corpo todo para mim:
— Você e a Karina são amigas há muito tempo?
Eu arqueei as sobrancelhas como se todos aqueles anos passassem pela minha cabeça:
— Desde que a gente tinha treze anos… Estudamos juntas quase a vida inteira.
Ela continuava me olhando:
— Acho incrível amizades assim… Não tenho mais contato com minhas amigas de infância… Acho que nem da adolescência…
Eu tentei amenizar, também por achar que era verdade:
— Talvez seja mais fácil manter uma amizade longa em cidades muito pequenas, quando as duas pessoas continuam morando perto.
Marcela beliscava uma batata e outra:
— Talvez…
— Qual é a amizade mais longa que você tem?
Ela parou para pensar um pouco:
— Tirando minha prima que conheço desde que nasceu… Acho que é a Elis. Assim, nós somos amigas mais virtuais que presenciais, eu acho.
Rimos juntas e ela continuou:
— Nos falamos mais online do que offline... Mas sempre que nos encontramos parece que nos vimos no dia anterior. Não tem constrangimento, não tem estranhamento, sabe?
Eu apenas concordei. Ela ia falar mais coisas, mas foi interrompida pelo chamado de Karina:
— Você pode tirar uma foto de Artur com a bisavó?
Marcela ficou de pé instantaneamente. Eu também levantei, enquanto ela pegava a câmera. Caminhamos juntas, até ela seguir Karina e eu voltar para minha mesa.
Não nos falamos no restante da festa. Marcela ficou ocupada o tempo todo. Cantamos o parabéns. Comemos o bolo. Meus amigos começaram a ir embora. Eu fiquei adiando ao máximo. Queria falar com ela uma última vez. Por fim só ficamos eu e um casal de amigos na mesa. A festa já estava quase vazia. Quando eles também se despediram, não tive escolha. Aproveitei um momento em que Karina e Marcela conversavam e me aproximei para me despedir. Abracei Karina, depois me virei para Marcela. Tentei falar da forma mais casual que consegui:
— Você quer carona?
Foi Karina quem respondeu:
— Ah que ótimo, vai com Ciça, ela te deixa em casa.
Eu olhei para o chão. Provavelmente Karina nem imaginava o que se passava entre eu e Marcela. Apesar de sermos amigas, não tínhamos um contato diário onde eu contava absolutamente tudo da minha vida para ela, e vice-versa.
Marcela me agradeceu e disse que avisaria ao primo que não precisaria vir buscá-la. Karina saiu para se despedir de alguém. Marcela foi pegar a bolsa com os equipamentos e eu fiquei parada no mesmo lugar, esperando. Quando ela voltou, perguntei:
— Vamos?
Seguimos até meu carro em silêncio. Destravei no alarme. Marcela colocou a bolsa no banco de trás. Eu entrei. Ela entrou. Antes de girar a chave na ignição, pensei em falar alguma coisa. Olhei para ela, mas não tive tempo de proferir a primeira palavra. Marcela colocou as duas mãos no meu rosto e me puxou para um beijo. Minha surpresa só durou alguns segundos. Coloquei a mão no pescoço dela, enquanto o contato do piercing na minha pele me arrepiava. Quando afastamos os rostos, ela apenas sorriu. Eu estava confusa. Deliciada, mas confusa. Não disse nada. Ela também não. Sentou direito no banco, olhando para frente. Eu também me virei e liguei o carro. O rádio conectou automático no meu celular e começou a tocar Liniker. A música era o único som dentro do carro. Depois de alguns minutos ela colocou a mão na minha perna, acariciando com o polegar e, quando era possível, eu colocava a minha mão sobre a dela.
Assim que entramos na cidade, perguntei:
— Você vai pra sua casa mesmo?
Ela riu e falou com bom humor:
— Pra onde mais eu iria?
Eu não respondi de imediato. Demorei alguns segundos para falar, sem olhar para Marcela, com os olhos na estrada:
— Pra minha, se você quiser.
Ela apertou mais minha coxa. Se aproximou do meu rosto e eu precisei desacelerar o carro quando ela sussurrou perto do meu ouvido:
— Me leva.
Fim do capítulo
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AlphaCancri Em: 27/04/2025 Autora da história
Acho que Marcela quer se proteger e, de certa forma, proteger Ciça também, né?
E o que Ciça sente por Marcela tá fazendo ela agir!