A Estagiaria
Capítulo 2
A luz da manhã entrava preguiçosa pelas janelas grandes do apartamento. As cortinas brancas dançavam suavemente com a brisa de São Paulo. O cheiro de café fresco preenchia o ar com uma promessa de rotina — uma tentativa de normalidade.
Verena saía do banho enrolada na toalha, os cabelos ainda úmidos e despenteados. Encontrou Silvia na cozinha, já vestida com uma blusa branca de seda e uma calça de alfaiataria bege clara. Cabelos lisos e soltos na altura dos ombros, o rosto sem maquiagem, mas com aquela beleza calma que não precisava de retoques.
Silvia mexia o café com uma colher pequena, distraída, os olhos lendo algo no celular.
— Bom dia — disse Verena, ao se aproximar.
Silvia sorriu sem tirar os olhos da tela.
— Bom dia, deputada.
Verena beijou-a no topo da cabeça antes de abrir a geladeira.
— Alguma crise constitucional no grupo de advogados?
— Só uma cliente que quer processar o ex-marido porque ele deixou o cachorro com a nova namorada. — Silvia finalmente ergueu os olhos. — Mas e você? Pronta pra mais um dia fingindo que está tudo sob controle?
Verena riu com o canto da boca.
— Eu nasci pra fingir controle.
— Você nasceu pra controlar tudo — corrigiu Silvia. — Só não sabe o que fazer quando não consegue.
O silêncio entre as duas foi breve, mas cheio. Verena abriu um iogurte e se recostou no balcão.
— Sobre ontem... a conversa. Sobre filho.
— Pode esquecer por enquanto — disse Silvia, rápido demais, como se já tivesse se arrependido. — Eu só falei. Você não precisa se obrigar a pensar nisso.
Verena a encarou por um instante. Não disse nada. Mas no fundo, algo nela já começava a pensar.
Gabinete da Deputada Verena Castilho — 09h24
Rafaela já estava na sala quando Verena chegou. Estava sentada em sua mesa, com os pés apoiados na cadeira ao lado e um croissant quase inteiro na mão.
— Bom dia, sua Excelência — disse com a boca cheia. — O caos já te espera.
— Maravilhoso. Sempre sonhei com isso — respondeu Verena, tirando os óculos escuros.
Rafaela se endireitou na cadeira e lançou um olhar sugestivo.
— Temos estagiária nova. Mandaram de uma daquelas escolas de bairro de reportagem de buraco na rua, convênio com a cota social. Começa hoje. Tem cara de quem vai desmaiar se você olhar direto.
Verena franziu o cenho.
— Eu nem lembrava desse convênio.
— Ninguém lembra. Só aparece alguém de vez em quando, e a gente finge que vai dar função.
Antes que Verena pudesse comentar, a porta se abriu com uma batida tímida. E então, ela entrou.
Valentina.
Loira, cabelos compridos e levemente ondulados caindo sobre os ombros. A roupa era simples, social, mas modesta — claramente escolhida com o cuidado de quem teme errar. Os olhos castanho-claros estavam fixos no chão, como se aquilo fosse mais seguro do que encarar o mundo.
— Com licença... bom dia.
A voz era doce, quase sussurrada.
Rafaela ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar disfarçado para Verena, como quem diz olha aí.
Verena, no entanto, permaneceu em silêncio por alguns segundos. E, naquele breve instante, algo nela se agitou.
Havia uma delicadeza crua naquela garota. Algo que não combinava com aquele ambiente feito de cinismo e segredos. Como uma música tocando em meio a um bombardeio.
— Você é a...?
— Valentina. Valentina Moraes. Vim pelo convênio da escola Manoel Castanho. É meu primeiro estágio.
Verena assentiu devagar.
— Bem-vinda, Valentina. — A voz dela soou firme, mas estranhamente suave. — Espero que esteja pronta pra aprender rápido.
Valentina sorriu com os olhos ainda inseguros.
— Estou, sim.
Rafaela observou tudo em silêncio, o olhar ora curioso, ora desconfiado.
Quando Valentina se afastou para sentar-se no canto indicado, Rafaela se aproximou de Verena com um sorriso debochado.
— Aí vem o inferno disfarçado de anjo.
Verena não respondeu. Apenas observou Valentina mais uma vez, enquanto ela tirava um caderno da bolsa e começava a anotar algo com uma caneta azul. Havia uma calma ali. Um tipo de luz.
Valentina passou o resto da manhã em silêncio, sentada no canto da sala, observando com atenção tudo ao redor. Havia algo de quase infantil no modo como ela segurava a caneta, apertando um pouco demais. Escrevia tudo — mesmo o que não precisava. Como se temesse que qualquer detalhe esquecido pudesse ser um erro fatal.
Rafaela, de tempos em tempos, lançava-lhe olhares curiosos. Não era o tipo de garota que costumava aparecer naquele ambiente. Verena também percebia isso. E era justamente o que a deixava desconfortável.
Durante uma reunião com dois assessores sobre a reestruturação de um projeto de educação, Verena notou que Valentina permanecia sentada ali, quieta, sem sequer olhar para o celular. Os olhos atentos, corpo rígido, como quem teme ser um incômodo apenas por existir.
Quando a reunião terminou, e os assessores deixaram a sala, Verena fechou a pasta com mais força do que o necessário. Sentia-se observada. Não de forma direta. Mas de um jeito que a deixava... visível demais.
— Precisa de algo? — perguntou, sem tirar os olhos dos papéis.
Valentina ergueu o olhar, assustada por ter sido notada.
— Não, senhora. Só estou acompanhando, como pediram.
"Senhora". Verena cerrou os dentes por dentro. Detestava quando a chamavam assim. Principalmente vinda de alguém com aquela voz tão doce.
— Verena. Só Verena.
— Claro, desculpe. É o costume.
Ela baixou os olhos de novo, constrangida.
Rafaela reapareceu com um copo de água e entregou para Verena, em silêncio. Depois se aproximou da mesa, mas olhou discretamente para Valentina, como se analisasse uma pintura antiga que não fazia sentido ainda.
— Tá parecendo uma freira num baile funk — sussurrou, assim que estavam fora do alcance da menina.
Verena não respondeu. Estava mexendo nas folhas, mas não lia nada.
— Já vi garotas caladas demais antes — continuou Rafaela. — Sempre tem um motivo.
— Ela só tá nervosa. Primeiro dia.
—Pode ser. Ou pode ser que ela tenha aquele tipo de silêncio que grita, sabe?
Verena soltou o ar devagar, fechando os olhos por um segundo.
— Você tá vendo coisa onde não tem.
Rafaela sorriu, debochada.
—Você é quem vê, Verena. Eu só comento.
Na hora do almoço, Verena permaneceu no gabinete. Não estava com fome. A desculpa era o volume de trabalho, mas a verdade era que não queria lidar com Silvia por mensagem. Não naquele momento.
Valentina, por educação, não ousou perguntar nada. Apenas abriu a marmita simples que havia trazido de casa e se acomodou em um canto da sala, sobre uma mesinha lateral, o mais silenciosamente possível.
Verena ouviu o barulho do plástico sendo aberto e, sem tirar os olhos da tela, disse com firmeza:
— Tem um refeitório no andar de baixo. Não precisa comer aqui dentro.
O tom não foi ríspido, mas também não teve gentileza. Era apenas... prático. Como tudo em Verena.
Valentina congelou por um segundo. Levantou-se depressa, envergonhada, e recolheu os talheres de volta à bolsa com movimentos apressados.
— Me desculpa, achei que... não tinha problema. Eu não sabia...
— Só estou dizendo que você pode ficar mais à vontade lá embaixo — disse Verena, sem olhar para ela.
— Claro. Desculpa de novo. Com licença.
A garota saiu quase tropeçando nos próprios pés, o rosto vermelho, os olhos baixos. E assim que a porta se fechou, Verena soltou um suspiro longo e se recostou na cadeira.
Por que aquilo incomodou tanto?
Talvez não fosse sobre Valentina. Talvez fosse sobre ela mesma, ou sobre o que aquele tipo de presença evocava. Uma lembrança antiga. Um espelho desconfortável. Não sabia.
Estava prestes a tentar voltar à leitura de um relatório quando Rafaela entrou na sala, segurando um café gelado na mão e com a testa franzida.
— O que você fez com a menina? — perguntou, já jogando o corpo na poltrona ao lado da mesa.
Verena ergueu os olhos.
— Nada. Só pedi que fosse comer no refeitório.
— Pediu ou mandou?
— O que importa?
Rafaela bufou.
— Ela tava no corredor com a marmita na mão, olhando pros lados como se tivesse entrado por engano num funeral. Parecia prestes a chorar. Achei que fosse vomitar no elevador.
Verena respirou fundo, irritada consigo mesma — não porque se arrependia, mas porque se sentia observada.
— Não quero gente almoçando dentro do gabinete. Só isso.
— Desde quando você se importa com isso? Já teve assessor que trouxe marmitex com farofa de ovo aqui e você nem piscou.
— Era diferente.
Rafaela a encarou por um segundo, e depois soltou um risinho.
— É... é diferente mesmo.
— Para com isso, Rafa.
— Eu não tô dizendo nada, chefia. Só tô dizendo que a gente reage diferente quando sente alguma coisa que não quer sentir.
Verena apertou a mandíbula.
— Ela é uma estagiária. É o primeiro dia. Fim.
Rafaela deu de ombros.
— Tá bom. Só cuidado. Às vezes a gente enxerga demais num olhar que nem tinha intenção nenhuma.
Ela se levantou, bebendo o café devagar, antes de sair da sala.
Verena ficou ali, sozinha, olhando para a porta fechada. E, por um segundo, desejou que o dia já tivesse acabado.
Mas estava só começando.
O fim do expediente chegou com mais lentidão do que Verena esperava. O tempo parecia se arrastar desde o almoço, como se o ar no gabinete tivesse engrossado. Os barulhos de passos, de impressoras e vozes no corredor soavam abafados demais.
Verena passou a tarde em reuniões, respondendo e-mails, resolvendo pendências — tudo no automático. Cada tarefa cumprida era um esforço consciente para afastar qualquer pensamento que insistisse em surgir. Evitar nomes, rostos, sentimentos.
E, ainda assim, vez ou outra, seus olhos buscavam pelo canto da porta. Por aquele vulto claro, discreto, quase ausente.
Valentina não voltou a cruzar olhares com ela. Cumpria suas funções com rigor, como se temesse errar qualquer detalhe. Quando entregou os papéis revistos para Rafaela, o fez em silêncio. Não houve sequer um aceno para Verena.
Ela percebeu. E não gostou da própria percepção.
No fim do dia, já com os últimos raios do sol atravessando a persiana, Castilho observou pela janela o movimento na rua enquanto arrumava as últimas pastas na bolsa. Valentina passou ao longe, no corredor, sem notar que era observada. Carregava a mochila nas costas, a postura ligeiramente curvada — como se ainda não tivesse se acostumado a ocupar espaço.
— Vai querer que eu leve isso aqui pro carro? — Rafaela perguntou, já com os saltos na mão e o batom meio apagado.
Verena negou com a cabeça.
— Não. Pode ir. Eu fico mais um pouco.
Rafaela lançou um último olhar enviesado, mas não disse nada. Apenas assentiu e saiu.
A porta se fechou com um clique suave. E só então Verena se permitiu respirar fundo. O silêncio caiu como um cobertor pesado.
Ela se recostou na cadeira, encarando o teto por alguns segundos. E, sem saber exatamente por quê, pegou o celular e abriu o bloco de notas. Escreveu uma única palavra: "inconveniente." Depois apagou.
Minutos mais tarde, já em casa, a penumbra da sala a recebeu com um cheiro fresco de lavanda. Silvia gostava de manter velas aromáticas acesas quando o dia terminava. Dizia que ajudava a limpar o peso do mundo.
Silvia surgiu da cozinha com um avental claro e um sorriso calmo. Os cabelos lisos e escuros estavam presos em um coque frouxo, e ela parecia tão à vontade no ambiente quanto uma personagem de filme francês.
— Fiz salmão com ervas e arroz de amêndoas — anunciou. — Achei que você ia querer comer algo leve.
Verena sorriu com o canto da boca, cansada demais para responder com palavras.
Beijou-a de leve na bochecha, pousando a bolsa sobre a cadeira.
— Dia difícil?
— Normal — respondeu, sentando-se à mesa.
Silvia serviu os pratos em silêncio por alguns segundos, depois se sentou de frente para ela, apoiando os cotovelos suavemente na mesa. Ficou observando Verena comer como quem esperava o momento certo de dizer algo importante.
— Estive pensando... — começou, a voz baixa, sem pressa.
Verena ergueu os olhos, já prevendo o tema.
— Sobre o que falamos outro dia. O filho.
Silêncio.
Silvia não insistiu logo de cara. Bebeu um gole de vinho e continuou:
— Eu sei que esse ano tem sido puxado. E que sua cabeça tá sempre em mil lugares ao mesmo tempo. Mas... talvez por isso mesmo. Talvez a gente precise de algo que nos traga de volta pra casa, sabe?
Verena mastigou devagar. Não respondeu. O prato à sua frente parecia mais distante do que nunca.
Silvia insistiu, com carinho:
— Você sempre disse que queria. Que só precisava do momento certo.
Verena apoiou os talheres na borda do prato. Olhou para Silvia por longos segundos. O rosto calmo, cheio de amor, tão diferente do caos que a habitava por dentro.
— Eu não sei se é o momento certo — respondeu enfim, com sinceridade. — Ou se ele existe.
Silvia sorriu, como quem compreende sem se sentir derrotada.
— Tudo bem. Eu só queria lembrar que estou aqui. Que ainda é nós duas. Só nós duas.
Verena assentiu, engolindo em seco.
Mas não disse mais nada.
Naquela noite, deitada ao lado da esposa, com o corpo imóvel e a mente inquieta, Verena pensou em silêncio em todas as coisas que não sabia nomear. Nos desconfortos pequenos, nas escolhas que sempre acreditou serem imutáveis. E na sensação estranha de estar à beira de um abismo — sem saber se o medo vinha da queda... ou da vontade de pular.
Fim do capítulo
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