Capitulo 10
Capítulo 10 – Bianca
Cinco meses. Cinco longos, intensos, surpreendentes meses. Bianca olhava pela janela do consultório, observando o movimento na pequena praça em frente ao hospital. Havia crianças brincando, senhoras trocando receitas e segredos no banco de cimento pintado de verde claro, e até mesmo um cachorro dormindo preguiçosamente sob a sombra de uma mangueira. A cena era corriqueira para quem vivia ali, mas para ela, ainda carregava certa poesia.
Sua sala agora tinha identidade. Havia um porta-retratos com uma foto dela e dos pais, tirada num fim de semana qualquer, um pequeno vasinho com suculentas e uma caneca com o desenho de um coração sorrindo — presente de Dona Cida, uma das pacientes mais queridas. Bianca havia conquistado muito naquele tempo, não em títulos ou grandes feitos, mas em afeto. Sentia-se parte de algo. E isso não acontecia há muito tempo.
A rotina no hospital se tornara familiar. Os plantões continuavam puxados, especialmente às quartas e sextas, mas já não a deixavam exausta como antes. Havia uma fluidez em saber quem precisava de mais atenção, em ouvir as histórias dos pacientes com genuína empatia, e até em lidar com os dramas cotidianos da cidade: um corte malfeito com facão, uma torção no tornozelo durante uma partida de futebol no campinho, uma crise de pressão alta de alguém que exagerou na carne de sol.
Bianca aprendeu os nomes. Não só os nomes dos pacientes, mas também os das filhas, dos cachorros, dos vizinhos e até das galinhas. Era chamada de “Dra. Bia” com carinho e respeito, e já sabia onde encontrar o melhor pastel, o leite mais fresco e a livraria escondida que vendia romances usados por preço de banana.
Naquela manhã, ela finalizava os relatórios da última campanha de vacinação quando ouviu uma batida leve na porta.
— Posso? — era André, o técnico de enfermagem, com um sorriso já conhecido.
— Claro. Entra.
— Vim te lembrar do almoço de Dona Rita amanhã. Ela mandou avisar que não aceita desculpas.
Bianca riu.
— Já tinha colocado no calendário. E ela prometeu canjica, não é?
— Prometeu. E a mulher quando promete, cumpre.
Depois que ele saiu, Bianca recostou-se na cadeira e respirou fundo. Era isso. Estava, enfim, leve. Ainda sentia saudade da família, de algumas coisas da vida antiga, mas o passado já não pesava tanto. O apartamento em São Paulo era uma lembrança distante. A separação, embora marcante, já não doía como antes. Agora, ela sentia algo novo: curiosidade.
À tarde, após o expediente, decidiu passar na mercearia. Ia preparar uma torta de legumes para o jantar e precisava de ingredientes frescos. No caminho, cruzou com seu Elias, que puxava um carrinho com lenha.
— Boa tarde, doutora! Vai cozinhar hoje?
— Vou sim, seu Elias. Tentar, né?
— Ah, então passa lá em casa e pega alecrim. Planta boa, natural. Dá gosto na comida.
— Obrigada! Vou aceitar, hein.
Chegando à mercearia, foi recebida por Júlio, o dono, que sempre fazia piada.
— Olha só, se não é a médica mais bonita que já pisou nessa cidade!
— Júlio, quantas médicas você já viu aqui?
— Além de você? Nenhuma. Mas ainda vale o elogio, não vale?
Bianca riu, pegou os legumes e alguns temperos, e seguiu seu caminho. Já não sentia mais aquele desconforto de antes, aquela sensação de ser estranha. Agora, era como se pertencesse àquele lugar, mesmo sem ter raízes fincadas ali desde sempre.
Chegando em casa, pendurou a bolsa, amarrou o avental e ligou o rádio, deixando uma música suave preencher o ambiente. A torta saiu no ponto, e enquanto ela comia na varanda, sentia o vento morno da noite tocando seu rosto. Era paz.
Mais tarde, sentada no sofá com um livro no colo, Bianca abriu o celular e mandou uma mensagem para Melissa:
"Cinco meses. E eu tô feliz. De verdade. Não pensei que fosse dizer isso tão cedo. Obrigada por me empurrar quando eu não conseguia andar."
Melissa respondeu com um emoji de coração e uma mensagem curta: "Você merece. Só vai."
E era isso que Bianca queria: ir. Viver o agora. Sentir o novo. Se permitir.
No sábado, acordou cedo e foi ao café da praça. Já tinha virado ritual: um pingado e pão com manteiga na chapa. Lá, encontrou Beatriz, uma das recepcionistas do hospital.
— Dra. Bia! Senta aqui com a gente.
— Claro!
Sentou-se à mesa com três outras mulheres, todas da cidade, todas curiosas e simpáticas. Entre uma risada e outra, contavam histórias do passado, falavam de festas de São João, e perguntavam — discretamente — se Bianca estava solteira.
Ela ria. Desviava. Mas sentia algo bom em ser incluída. Em ter uma mesa cheia de vozes e calor. Em não ser mais apenas “a médica nova”.
No domingo, caminhou até o lago que ficava a alguns quilômetros da cidade. Levou uma toalha, um livro e uma garrafa de água. Deitou na grama, olhou o céu azul e permitiu-se apenas existir. Pensou na antiga Bianca, a que sofria calada, que carregava culpas e medos como se fossem mochilas de chumbo. E então pensou na mulher que agora se deitava ali, livre, serena, com os pés descalços e o coração quieto.
Não sabia o que o futuro guardava. Não fazia planos. Mas pela primeira vez em muito tempo, não sentia urgência. Havia tempo. Havia espaço. E ela estava disposta a se surpreender.
A volta para casa foi lenta, quase contemplativa. Os pés sujos de terra, o cabelo bagunçado pelo vento, e um sorriso sincero no rosto. Quando entrou em casa, acendeu uma vela de lavanda, colocou uma música tranquila e abriu o caderno onde, vez ou outra, anotava pensamentos soltos.
Na página em branco, escreveu:
"Talvez felicidade seja isso: uma tarde comum, um café quente, o riso fácil e a alma leve. Talvez seja só essa calma depois da tempestade. E, se for... então estou exatamente onde deveria estar."
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Fim do capítulo
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