Capitulo 8
Capítulo 8 – Bianca
Um mês havia passado. Um mês desde que Bianca havia trancado a porta da casa antiga, engolido o choro, apertado os punhos e dito a si mesma: “Agora é você por você.”
E naquele novo lugar, entre ruas de barro batido, sorrisos desconhecidos e um silêncio diferente, ela começava, enfim, a respirar de verdade.
O hospital era pequeno, mas bem cuidado. Com corredores claros, paredes pintadas em tons de verde e branco e aquele cheiro inconfundível de álcool e café velho. Os profissionais eram receptivos, apesar da desconfiança inicial diante da “médica nova da cidade grande”. Mas com o tempo, Bianca conquistou espaço — não com palavras, mas com escuta, paciência e empatia.
Naquela manhã, ela entrou no hospital com um sorriso no rosto e a pasta de prontuários debaixo do braço. Tinha dormido bem, pela primeira vez em semanas. Não havia pesadelos, nem lembranças doloridas. Apenas o som do despertador, o cheiro do café e uma sensação estranha de... leveza.
— Bom dia, doutora Bianca! — disse Cida, a recepcionista, com um sorriso largo e sincero.
— Bom dia, Cida! Tá cheirando café aí?
— Forte, do jeito que a senhora gosta. — Ela piscou, risonha. — Fiz pensando em você.
Bianca riu. — Você vai me mimar demais, assim vou querer morar aqui.
— Já não mora?
Bianca parou, pensativa. Morar era mais que estar fisicamente. Era se sentir pertencente. E, aos poucos, ela estava chegando lá.
— É, talvez eu more mesmo.
Na sala dos médicos, ela se deparou com Marcos, o clínico geral que, desde o primeiro dia, mostrou-se curioso e gentil. Um homem de meia-idade, olhar atento e bom humor infalível.
— E aí, doutora da capital. Vai continuar nos humilhando com seus diagnósticos rápidos e certeiros?
— Só se você continuar me ensinando o nome de todas as senhoras da cidade que preferem rezar antes de tomar antibiótico.
— Ah, isso é matéria obrigatória aqui. — Ele riu. — Quer sentar comigo no atendimento hoje?
— Quero sim. Mas antes, vou tomar aquele café da Cida. É quase um patrimônio local.
Durante a manhã, os atendimentos fluíram com leveza. Era como se cada consulta fosse um capítulo de um livro que ela começava a entender. Ali, os pacientes chegavam com mais do que sintomas — traziam histórias, medos, superstições, receitas caseiras e uma confiança silenciosa.
No fim do expediente, Bianca parou na praça da cidade para comprar frutas. A senhora do balcão do mercadinho já a chamava de “doutora minha filha”. E ao passar pela banca de flores, parou por impulso.
— Tem margaridas? — perguntou, apontando para as flores amarelas e brancas.
— Tem sim. Fresquinhas. Pra enfeitar a casa ou a alma?
— Os dois, talvez.
Comprou um pequeno buquê, sem planejar, e levou para casa. Ao chegar, colocou as flores em um copo de vidro e deixou sobre a mesa da cozinha. Sentou-se diante delas com uma taça de vinho barato e suspirou. Era um lar. Ainda em construção, mas era. O cheiro de comida feita por ela mesma, o silêncio das noites mais ameno, o cobertor que já sabia seu cheiro.
Pegou o celular e mandou uma mensagem para Melissa.
"Tô melhor. Hoje foi um dia bom. Conheci mais três pacientes incríveis, ganhei flores de mim mesma e sorri com vontade."
Melissa respondeu quase na hora.
"Sabia que você ia florescer. Te amo, minha médica corajosa."
Sorriu, emocionada.
Mais tarde, sentada na varanda, Bianca recebeu uma visita inesperada. Era Clarice, enfermeira do hospital, que morava duas ruas abaixo.
— Desculpa invadir, é que eu tava passando e vi a luz acesa... trouxe bolo de milho. Fiz demais.
Bianca abriu a porta, surpresa e feliz.
— Claro que pode entrar. Eu amo bolo de milho.
— Com café, né?
— Sempre.
As duas sentaram-se na cozinha. Bianca serviu o café fresco, Clarice cortou o bolo, e logo a conversa deslanchou. Falaram sobre o hospital, sobre o tempo, sobre como é difícil se sentir em casa depois que tudo desmorona.
— Sabe, quando meu marido foi embora, eu também achei que nunca mais ia conseguir acordar e sentir que o dia podia ser leve. Mas aí o tempo passa... e a gente passa com ele.
Bianca ouviu com atenção, admirando a força naquela mulher simples. Descobriu que Clarice gostava de novelas antigas, fazia crochê e cantava na igreja aos domingos. Era como se o mundo fosse abrindo pequenos espaços para que ela, Bianca, pudesse se encaixar.
No sábado, decidiu explorar a cidade. Caminhou pela feira livre, comprou queijo artesanal, parou para ouvir um sanfoneiro tocar na praça. Crianças corriam, casais caminhavam de mãos dadas, senhoras conversavam animadamente em cadeiras de plástico à porta das casas. A cidade tinha vida. E agora, ela fazia parte dela.
— Doutora, aceita uma pamonha? — gritou um senhor, atrás de um carrinho de madeira.
— Aceito sim! — respondeu, rindo. — Mas só se for da boa.
— Da melhor! Pode confiar.
Enquanto comia, observou o céu limpo e azul. Pela primeira vez em muito tempo, sentia-se parte de algo. Não era só a nova médica. Era uma mulher que, pouco a pouco, reconstruía a própria história.
No domingo, lavou roupas, fez almoço simples, leu um livro na rede. Depois, deitou no chão da sala e deixou que a luz do sol tocasse seu rosto. Pensou na ex-esposa. Pensou no amor que viveu, no que perdeu, no que aprendeu. Não havia mais dor ali. Só saudade — e gratidão.
À noite, antes de dormir, pegou seu caderno de anotações, aquele onde costumava escrever tudo que sentia quando não sabia como dizer em voz alta.
"Hoje eu senti paz.
E isso, pra mim, é quase como amar outra vez."
Fechou o caderno com um sorriso. Amanhã teria plantão. Talvez conhecesse novos rostos, talvez apenas revisasse prontuários. Mas agora, tudo isso fazia sentido.
Bianca adormeceu com o som do vento suave nas janelas, o cheiro das margaridas na cozinha e uma certeza tranquila no peito: ela estava, enfim, florescendo.
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Fim do capítulo
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