Capítulo 11
Mandei mensagem para ela. Sim, eu tomei a iniciativa. Na noite anterior tínhamos combinado de fazer alguma coisa. Como era domingo, pensei em fazer algo mais cedo. Marcela me respondeu logo em seguida:
“Gigante?”
Repliquei na mesma hora:
“Ele não abre hoje. Domingo é dia de culto.”
Ela me mandou uma carinha confusa. Depois escreveu:
“Vamos fazer o que, então?”
Eu respirei fundo. Digitei. Apaguei. Digitei de novo:
“Quer tomar um açaí? Ou um sorvete?”
Me arrependi. Mas não dava mais para apagar, ela já tinha visto. Estava digitando.
“Ótimo! Que horas?”
Uma hora depois eu estava em frente à casa dela. Assim que entrou no carro, me perguntou:
— Como assim o gigante não abre em dia de culto? O que tem a ver?
Eu ri da indignação dela:
— Ele é da igreja… Aos domingos vai ao culto com a família e não abre o bar.
Ela ficou muda, com a expressão de confusão ainda no rosto. Depois riu:
— Essa cidade é muito engraçada.
Paramos na… adivinhem só… única sorveteria e açaiteria da cidade. Pagamos e sentamos para comer numa mesa na calçada. Marcela olhou em volta algumas vezes, depois perguntou:
— É sempre assim?
Eu sabia do que ela estava falando. A cidade parecia deserta. Desde que paramos ali, pouquíssimos carros tinham passado. Não tinha ninguém. Só uns cachorros vagando pela praça.
— É… sempre assim.
Olhei para o relógio:
— Mas daqui a pouco a missa termina e aí tem o movimento das pessoas saindo da igreja.
Ela me olhou:
— Tudo aqui gira em torno de religião?
Eu confirmei com a cabeça:
— Basicamente, sim.
Conversamos mais um pouco, até eu perceber o movimento que vinha da escadaria que dava acesso à igreja:
— Olha lá… a missa acabou.
Ela olhou para trás, na direção que eu indicava. Depois se virou para mim de novo:
— Já estava ficando preocupada de todos terem ido embora daqui e esquecido de nos avisar.
Eu ri com ela. Algumas pessoas pararam na rua, nas lanchonetes, na sorveteria. E a cidade voltou a parecer ser habitada.
— Ué, Cela, você tá aí?
Olhamos juntas na direção da mulher.
— Oi, tia Rita…
Eu fiquei repentinamente sem jeito:
— Oi, Rita.
— Tudo bem, Ciça? Que bom que você tirou essa moça de casa.
Me limitei a sorrir. Érica apareceu atrás dela, com Luize. Nos cumprimentou. Marcela as convidou para sentar, mas recusaram. Quando elas estavam se despedindo, minha tia apareceu. Fiquei mais apreensiva ainda. Não tem nada de errado, vocês não estão fazendo nada. Ela cumprimentou Rita, Érica, falou comigo e foi apresentada à Marcela. Depois do que me pareceram horas, foram embora, todas juntas.
Outras pessoas passaram por nós, algumas cumprimentaram, outras só olharam. Eu não sabia se era coisa da minha cabeça ou não, mas falei o que estava pensando:
— Pode ser que amanhã todos falem que somos um casal…
Eu queria apenas deixá-la ciente de que aquilo poderia acontecer. Várias vezes em que me sentei sozinha com outra moça, mesmo que só minha amiga, no dia seguinte começaram as fofocas. Mas depois que as palavras saíram da minha boca, me pareceu uma tentativa de flerte. Ia tentar consertar, mas Marcela sorriu para mim:
— Seria incrível… escandalizar essa cidade.
Eu ri com ela, mas não sabia se era a pessoa certa para acompanhá-la naquilo.
*****
Ciça me deixou em casa e combinamos de nos ver no dia seguinte, na caminhada que já era rotina.
Fiquei estranhamente ansiosa para que chegasse a hora logo. Queria vê-la. Sentia falta da companhia dela. Será que eu estou começando a enxergá-la com outros olhos? Não alimentei aquele pensamento, mas também não consegui me concentrar para pintar. Meu celular apitou. Corri, na esperança de ser uma mensagem de Ciça, mas não era. Um número desconhecido, com a foto de uma família.
Mais tarde, quando ouvi a voz de Ciça me chamar, desci as escadas quase correndo. Num impulso, a abracei na calçada:
— Adivinha só? Fechei o meu primeiro trabalho na cidade!
Ela sorriu para mim:
— Que ótimo! Parabéns! Vai fotografar alguém?
Andamos na direção do parque:
— Um aniversário de criança nesse fim de semana.
Ciça me olhou e perguntou:
— Artur?
— Como você sabe?
Eu ainda não tinha me acostumado com o “todo mundo conhece todo mundo”.
— É filho da minha amiga… Ela me convidou….
— Você sabe onde fica o sítio… como é mesmo o nome?
— Bela vista.
Estalei os dedos:
— Isso!
— Não é muito longe. Uns cinco minutos de estrada de chão.
Comecei a pensar na parte prática:
— Vou tentar o carro do meu tio.
Ela ofereceu docemente:
— Se quiser, pode ir comigo.
Eu sorri, agradecendo:
— Obrigada, mas vou ter que chegar bem mais cedo…
Ela ofereceu de novo:
— Eu posso te levar e depois voltar para a festa.
Olhei para ela por alguns segundos e meu coração se encheu. Não sei explicar o motivo. E também não fiquei pensando muito sobre. Eu sempre gostei mais de sentir. Eu estava sentindo e ponto. Não me importava em achar uma razão lógica.
Apesar de não querer causar incômodo, não estava muito em condições de recusar ajuda:
— Vou tentar o carro do tio Nando… se não der, você me leva, pode ser?
*****
Estávamos na última volta da caminhada, conversando, como sempre, sobre as mais variadas coisas. Quando nos dirigimos para a saída do parque, Marcela me pegou completamente de surpresa:
— Quer jantar na minha casa amanhã?
Eu gaguejei, meu estômago revirou, meu coração disparou:
— Aham… pode ser… sim…
Aquele sorriso dela. E trocou de assunto, como se tivesse acabado de falar a coisa mais banal do mundo. E talvez para ela fosse mesmo, mas para mim…
Não me concentrei mais na conversa, não sei o que falei. Nos despedimos em frente à casa dela. Caminhei até a minha, com dificuldade para respirar corretamente.
No dia seguinte fui para o trabalho, mas não posso dizer que trabalhei. Meu corpo físico estava lá. Mas só ele. Quase não comi nada na hora do almoço. A comida não descia. Meus colegas de trabalho conversavam dentro da sala, mas eu não ouvia o que falavam.
— Ciça?
Olhei na direção da porta. Era Jonas. Me entregou uns papéis. Eu agradeci? Não sei. Percebi que ele ainda falava comigo quando continuou parado, olhando para mim:
— Vai fazer o que no feriado?
Feriado? Nem lembrava de feriado.
— Não sei… Acho que nada…
Ele sorria:
— Pô, vamos animar de fazer alguma coisa. Tomar uma, um churrasco…
Eu só queria voltar para meu universo particular:
— É, vamos ver…
Ele ainda conversou com Diego e Gabriela antes de sair. Meu relógio vibrou, indicando uma mensagem. Tremi quando vi que era de Marcela.
“Como vou preparar nosso jantar hoje, não vou caminhar. Te espero aqui às 19:30h?”
Respondi e olhei para o relógio. Ainda faltavam três horas para o final do meu expediente. E mais de cinco horas para encontrá-la.
Também não fui caminhar. Tomei um banho demorado. Lavei e sequei meus cabelos. Passei a roupa, coisa que não costumava fazer, limpei o tênis para ficar branquinho. Deixei para me vestir quando faltavam apenas dez minutos para às sete e meia. Não queria chegar na hora exata. Escovei os dentes, passei um creme no corpo, perfume… Tirei os óculos de grau e coloquei as lentes de contato. Saí de casa dez minutos depois da hora combinada. Estacionei em frente à casa dela. Não buzinei. Mandei uma mensagem. “Estou aqui embaixo”. Ela demorou uns cinco minutos para me responder. “Sobe”. Subi as escadas e parei na porta que eu achava que era a dela. Um filtro dos sonhos pendurado me fez ter certeza. Levantei a mão para bater, mas a porta se abriu antes. Marcela me recebeu sorrindo:
— Oi! Entra…
Me deu passagem. Entrei e fiquei parada na sala. Ela me pegou pela mão:
— Vem, tô terminando nosso jantar.
Largou minha mão quando chegamos na cozinha. Sentei num banquinho, perto do balcão. Ela voltou para o fogão.
— Esqueci de perguntar mais cedo… você come carne?
Respondi que sim, sem conseguir tirar os olhos da imagem à minha frente. Ela estava de costas para mim, de frente para o fogão. O cabelo preso num coque deixava o pescoço à mostra. Usava uma camiseta de alça fininha, que me permitia ver boa parte das costas e dos ombros. E todas aquelas tatuagens. Uma calça de tecido, larga no corpo, e nos pés, um chinelo. Virava a cabeça para trás quando falava comigo:
— Eu tô falando de um jantar como se fosse uma coisa super elaborada, mas é só um fricassê de frango, tá?
O sorriso.
— Não coloca muita fé não…
Eu estava hipnotizada. Completamente.
— Pra mim, qualquer coisa na cozinha é elaborada.
Ela virou o rosto na minha direção e sorriu de novo. Depois pegou uma travessa e colocou na minha frente. Conversamos enquanto ela acabava de encher o recipiente. Depois colocou no forno e disse:
— Pronto, agora é só esperar. Tá com muita fome?
Eu fiz que não. Ela pegou dois copos e colocou na nossa frente:
— Então… eu não tenho taças aqui. É muita cara de pau da minha parte te pedir para beber vinho no copo?
Eu ri. Naquele momento se ela me pedisse para beber na palma da mão, eu beberia feliz. Pegou a garrafa e explicou enquanto abria:
— Não tinha muitas opções no mercadinho… mas peguei um suave… Lembrei que você disse que não gostava de coisas amargas.
Aquela mulher estava fazendo eu me apaixonar por ela. Não que fosse difícil. Não que precisasse de tudo aquilo. Talvez eu já até estivesse…
Brindamos. Depois que bebemos o primeiro gole, ela perguntou:
— Tá bom pra você?
Bom? Para mim estava ótimo. Tudo. Absolutamente tudo:
— Perfeito.
Conversamos até ela se lembrar do fricassê no forno. Deu um gritinho que para os meus ouvidos foi adorável.
— Caramba, quase queimou.
Fomos para a mesa. O vinho estava para baixo da metade. Ela serviu nossos pratos. Eu experimentei. Estava delicioso.
— Nossa…
Provavelmente o efeito da bebida me fez olhá-la quando completei:
— Uma delícia.
Terminamos de comer. Perguntei dos quadros. Ela me levou de novo até a sala e me mostrou alguns.
*****
Olhei para Ciça, nós duas na varanda. Primeiro ficamos em pé, debruçadas na sacada. O céu ali era um espetáculo. As poucas luzes, a falta de prédios altos e a baixa poluição faziam com que as estrelas ficassem muito visíveis. Depois nos sentamos no chão, tomando vinho no copo. Ela também tirou os sapatos e ficou na minha frente, com as bochechas um pouco avermelhadas por conta da bebida. Me pareceu a imagem mais bonita que eu tinha visto desde que cheguei naquele lugar. Pela primeira vez me peguei pensando abertamente na hipótese de nós duas sermos mais que amigas. Com tanta coisa acontecendo na minha vida, romance nem tinha passado pela minha cabeça até então. Aquela era uma bela surpresa. Resolvi arriscar. Quando o assunto morreu, fui sincera:
— Eu queria beijar você.
Esperei a reação dela. O rosto todo ficou no tom das bochechas. Desviou os olhos dos meus, olhou para o chão. Não entendi se tinha sido uma recusa ou se era só surpresa. Se fosse a primeira hipótese, não seria problema para mim. Vida que segue, seríamos só amigas. Mas ela voltou a me olhar. Tive a impressão de que olhou para minha boca. Falou numa mistura de vergonha e bom humor que eu adorei:
— O que tá faltando?
Eu sorri. Ela também. Aproximei meu rosto do dela. Minha mão direita foi para o pescoço de Ciça, enquanto com a esquerda eu me apoiava no chão. Toquei os lábios dela com os meus, devagar. Nos beijamos assim por alguns instantes, até ela entreabrir os lábios. Nossas línguas se tocaram. Se encontraram. Fui obrigada a interromper o beijo. Me afastei suavemente e ri:
— Desculpa, deu câimbra no meu braço…
Apontei para meu braço esquerdo, em que estava apoiada. Ciça soltou uma risada que achei deliciosa.
Aproveitei para propor:
— Vamos entrar?
Fim do capítulo
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Raf31a
Em: 18/04/2025
Marcela super direta... adorei!!
A Cãibra sempre atrapalhando as sapatões.
AlphaCancri
Em: 20/04/2025
Autora da história
Direta e reta!
Tô achando que nesse caso a câimbra pode até ter ajudado, vamos ver… haha
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AlphaCancri Em: 20/04/2025 Autora da história
Marcela sem fazer rodeios… tomara que dê certo!