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O Peso do Azul por asuna

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Palavras: 6137
Acessos: 434   |  Postado em: 15/04/2025

Capítulo 13

O dia seguinte chegou, e como era costume, o sábado escorreu pelos dedos como areia quente. O final de tarde trouxe consigo uma luz dourada e morna, que se esgueirava preguiçosamente pela janela, desenhando sombras compridas no chão da sala, como se tudo se movesse em câmara lenta.

Estava enroscada no sofá, as pernas dobradas sob o corpo, envolta num cobertor leve. O papel permanecia no bolso, dobrado, gasto. Não o abrira novamente. Limitava-me a mantê-lo por perto, como se o toque bastasse para confirmar que a noite passada não tinha sido um delírio.

Do outro lado da sala, Piper parecia uma extensão do sofá, estendida, almofada ao peito, os olhos colados na tela. Um reality show de casais gritava banalidades em volume de telenovela, promessas meladas, lágrimas recicladas e reconciliações com data de validade.

— A sério, quem é que acredita nestas criaturas? — resmungou, como se se sentisse pessoalmente insultada pela existência do programa. — Se me disseres que isso é amor verdadeiro, atiro-me da varanda. E levo esta almofada comigo — bateu-lhe duas palmadas — só para não morrer de vergonha sozinha. E deixo um bilhete a pedir desculpa à sanidade da humanidade.

Soltei um riso abafado contra a borda da caneca.

— Talvez seja um tipo de amor que só sobrevive com contrato de imagem. — Murmurei.

— Ou sob narcotização de ego. — Rebateu, atirando a almofada para o lado com desdém. Sentando-se com um suspiro exausto. — De verdade, Maya se isto é amor, então assino já um contrato vitalício com a solidão. Com cláusula de rescisão apenas em caso de alguém que saiba manter uma conversa sem dizer “mercúrio retrógrado” ou “a culpa é do meu ex”.

— Estás a exagerar — comentei, num tom que já soava a refrão, daqueles que se repetem em quase todas as conversas que tínhamos.

— Estou? — arregalou os olhos, ofendida. — Ele traiu-a com a melhor amiga e ela perdoou-o porque ele a levou num brunch. Maya. Um brunch. Sem uma carta. Sem um pedido sentido. Foram ovos mexidos frios e café que parecia ter sido filtrado com as lágrimas de um internato. Se isso é redenção amorosa, então estamos todos a caminho do abismo. E de Uber.

Tapei a boca com a mão para conter a gargalhada. Definitivamente ela tinha essa capacidade rara de transformar o absurdo em arte.

— Talvez seja só falta de referências. — Arrisquei, mais para mim mesma. — Talvez aceitem esse tipo de amor porque nunca vivenciaram outro. Porque nunca lhes mostraram que pode ser mais. Mais verdadeiro. Mais real. E acabam por acreditar que o pouco é tudo.

Esta estudou-me, o cotovelo no encosto do sofá, o queixo apoiado sob a mão. Estava a observar-me com um foco que rareava nela.

— Isso é de uma grande tristeza, sabes? — expôs, o tom mais cru, mais nu do que o habitual. — Que o parâmetro de amor de alguém seja uma reconciliação entre dois sociopatas emocionais que choram mais vezes num episódio do que eu num semestre inteiro.

A ausência de som apoderou-se de mim. Fiquei ali, com o olhar preso no fundo da caneca.

— Então diz-me doutora Piper. O que é amor para ti? — questionei, num impulso.

Ela soltou um riso breve, o olhar manteve-se quieto, mais sério do que eu esperava.

— Amor? — repetiu. — Amor é alguém que não me atrase. Nem me dramatize. Que saiba estar sozinho sem precisar que eu cure isso. Nada de jogos. Nada de silêncios armadilhados. Nada daquele “em que estás a pensar?” só porque fiquei calada dois segundos. — Endireitou-se. — E que saiba a diferença entre gostar e precisar. Eu não quero ser urgência. Quero ser escolha.

Sorri de leve. A sua sinceridade, essa forma crua de dizer as coisas, como se arrancasse a verdade a ferros. Havia beleza nisso. Mesmo que ela não reparasse.

— Isso soa a alguém que já esteve do lado errado da moeda — murmurei, levando a caneca de chá aos lábios.

— Vi. E era de chocolate. Daqueles baratos. Derreteu-se na minha mão antes de pagar o que prometia.

Rimo-nos. E, por um momento, tudo pareceu mais leve. Piper era um abrigo insuspeito. Ruidosa, irónica, mas surpreendentemente, segura.

— Para mim — comecei sussurrando — amar é silêncio. Mas não o silêncio que pesa. É aquele em que estamos com alguém e não precisamos de nos explicar para sermos compreendidas. Onde o silêncio é presença. É nisso que eu sei que estou segura.

Senti-me observada, expressão entre divertimento e admiração era visível. Depois soltou uma gargalhada curta e abanou a cabeça.

— Tu és mesmo um poema ambulante. Aposto que tens isso escrito num diário com capa de tecido e marcador de cetim.

— Tenho. Mas só partilho com quem me faz rir sobre brunchs ofensivos. — Repliquei, levantando a caneca como um brinde.

Ela brindou de volta com a almofada.

— Então estamos fodidas, mas bem acompanhadas.

O silêncio que se seguiu não foi desconfortável, mas deixou algo suspenso no ar. Vi-a mexer distraidamente na ponta do cobertor, os dedos desenhando gestos que denunciavam um pensamento a fermentar.

— Sabes que ontem à noite, durante o nosso momento “terapia coletiva com álcool” — começou, com aquele tom arrastado que usava quando queria fazer uma pergunta sem parecer que queria respostas — houve um certo momento em que tu e a Harper. Puff. Desapareceram.

Levantei os olhos devagar. Não me encarava. Estava mais interessada na televisão desligada, transmitindo uma neutralidade cuidadosamente ensaiada. Fingida, mas com intenção.

— É só que, uma pessoa vê dois seres a trocar farpas no bar como se estivessem prestes a declarar guerra fria — continuou, com um brilho de troça no olhar. — E depois, sumiram. E de repente há uma playlist nova, um certo isolamento emocional e vocês duas ali, afastadas, como duas constelações que se orbitam, selando um pacto lunar secreto. Com trilha sonora personalizada, claro.

Pisquei devagar. Ela tinha visto mais do que pensei.

— Fomos só… apanhar ar. — murmurei, esforçando-me por soar casual. Contudo fui traída pela hesitação.

— Claro. Ar. Desse tipo que nos faz repensar a existência, o sentido do toque humano e o lugar de cada célula no universo. — Arqueou uma sobrancelha. — Deve ter sido mesmo um ar transcendental.

Abri a boca para responder, porém ela ergueu a mão no gesto que já era sua assinatura, meio irreverente, meio “salvador de discussões desnecessárias”.

— Olha, relaxa. Eu não julgo. Eu observo. Arquitetar teorias é o meu passatempo preferido. — Os seus olhos prenderam-se nos meus com um brilho entre curiosidade e aviso. — E sejamos sinceras, a Chloe tem um histórico. Tu sabes disso, não sabes?

Fez uma pausa, puxando a almofada para o colo com uma tranquilidade estudada.

— Ela é um fenómeno, Maya. Não sei se é genética ou spray de feromonas, as garotas que não se apaixonam ficam intrigadas. As que se apaixonam raramente saem inteiras. E tu — apontou-me com o queixo, o sorriso a querer nascer nos cantos da boca — estás exatamente no meio do campo de batalha.

Fiquei calada. Não era o silêncio de quem não tem o que dizer, era o silêncio de quem tem demasiado, e nenhum filtro suficientemente seguro. As palavras vibravam cá dentro, batendo contra as grades que eu própria construí. E não era só sobre Chloe. Era sobre todas as minhas dúvidas, tudo o que eu sentia.

Passei o dedo pela borda da caneca.

Inspirei fundo, procurando palavras que não traíssem tudo o que sentia. Estava prestes a tentar, quando a porta rangeu, Amanda entrou na sala com a leveza de quem interrompe sem perceber. Piper virou-se na sua direção com naturalidade, e eu aproveitei para desviar o olhar, como se a sua presença me tivesse apanhado a meio de um pensamento que eu não queria que ninguém visse.

Ela entrou, carregando um dossier debaixo do braço, os óculos mantidos na ponta do nariz.

— Estava à vossa procura. — disse, pousando o dossier na mesa de apoio. — Só queria avisar que, no próximo fim de semana, vou acompanhar o Tom numa conferência em Brisbane. Vai ser um evento importante para ele e não tem como adiar. Vamos ficar fora até domingo à noite, então, a casa vai ser só vossa.

A ruiva endireitou-se no sofá, como se já estivesse a desenhar planos na mente.

— Sozinhas, é? — iniciou, com um tom provocador, claramente satisfeita com a ideia. — Estamos a falar de casa livre ou casa livre com regras invisíveis e bilhete escondido com “nada de despautérios”?

Amanda arqueou uma sobrancelha e cruzou os braços, sorrindo como quem já viu este filme demasiadas vezes.

— Confio em vocês. — respondeu simplesmente, contudo os olhos afiaram-se brevemente quando se fixaram em mim. Eu sabia o que estava a fazer. — Maya, querida, está tudo bem? Ficas confortável com isso?

Assenti com um sorriso pequeno, mas genuíno.

— Sim, claro. Vai ser bom termos o espaço para nós.

Ela observou-me por mais um momento, provavelmente tentando entender se realmente eu dizia a verdade.

— Se precisarem de alguma coisa, deixo todos os contatos anotados no balcão. Espero que se lembrem que o forno é para cozinhar, não para guardar t-shirts. E que a pia não é uma instalação artística de louça suja. E, por favor, não vivam só de snacks e take-away, está bem?

A ruiva revirou os olhos, o sorriso malicioso estampado no seu rosto.

— Vou tentar não queimar nada. — Prometeu, erguendo uma mão com uma exagerada solenidade. — Juro solenemente que não transformarei a cozinha num campo de batalha, outra vez.

Amanda soltou um riso abafado e revirou os olhos, sabendo evidentemente que as coisas, no fundo, nunca são tão simples quanto parecem.

— Só isso já me dá alguma paz de espírito. — Murmurou, antes de se inclinar para beijar o topo da cabeça da filha. — Mas, por via das dúvidas vou avisar os vizinhos de que podem ouvir ruídos suspeitos e gargalhadas fora de horas. Só para manter as aparências.

Já sozinhas Piper lançou-me um olhar rápido de soslaio, com aquele brilho nos olhos que dizia tudo sem que fosse preciso mais palavras.

— Então, casa só para nós. O que vamos fazer? — perguntou. — Vamos fingir que somos adolescentes responsáveis ou fingir que somos adolescentes em negação e fazer a maior festa da história?

Fiz uma pausa. O seu tom era repleto de desafio, e ao mesmo tempo diversão.

No fundo, algo dentro de mim se agitava com a ideia. Uma festa? Aqui? Sozinhas? A ideia atraía-me mais do que eu queria admitir. A sensação de liberdade, de não precisar de responder a ninguém, de finalmente poder soltar-me um pouco.

Ainda me sentia indecisa, porém a sua expressão, fez-me gargalhar.

— Podemos sempre fingir que somos só, duas pessoas que querem deixar a casa exatamente como a encontraram? — sugeri, mais séria do que pretendia.

Ela inclinou a cabeça, como se ponderasse a ideia, e depois sorriu de forma ligeiramente mais suave.

— Justo. Podemos começar com isso. — respondeu, assentindo de forma quase conspiratória, o olhar a brilhar com uma diversão que já prometia caos. — Mas, se formos por esse caminho, não posso garantir que as paredes da casa não fiquem com algumas marcas de lembrança.

Soltei um riso nervoso. Eu não sabia se ela falava a brincar ou se já estava, mentalmente, a escolher a playlist para a “maior festa da história”.  Mesmo assim, eu sabia, ou queria acreditar, que Piper não me puxaria para nada que eu não quisesse. Havia nela uma provocação constante, todavia nunca invasiva.

O som da campainha interrompeu o momento, cortando o ar entre uma gargalhada e uma resposta por dar.

Levantei-me devagar, o calor do riso ainda a arder nas minhas bochechas.

— Eu atendo. — disse, os meus pés começaram a mover-se antes que o meu cérebro processasse qualquer hipótese de quem poderia ser.

A casa respirava num silêncio leve. Cada passo até à porta pareceu mais lento do que o anterior. A minha mão pairou sobre a maçaneta um segundo a mais, então, abri.

E foi como se o tempo, de repente, decidisse suspender-se por capricho.

Chloe estava ali.

Os cabelos loiros pareciam ter dançado numa tempestade recente, desalinhados, como sempre, num jeito que só a ela pertencia. Os olhos azul-turquesa, de um brilho intenso e impossível de decifrar, fixaram-se nos meus com a mesma segurança tranquila de sempre, revelando pouco além da superfície cuidadosamente controlada.

O ar entre nós era uma pausa, um silêncio breve. Abri a boca para a cumprimentar, sentindo a garganta subitamente seca, procurando palavras que não vinham. As sílabas pareciam dispersas. Chloe manteve-se imóvel, observando-me com a sua habitual calma distante.

Talvez o silêncio fosse o único idioma que realmente entendíamos.

Atrás de mim, a casa parecia ainda guardar o eco do riso de Piper, mas aqui, no limiar da porta, havia outro ruído. Um silêncio tão profundo quanto o mar noturno que nos acolhera na véspera.

A minha mão tremia discretamente contra a madeira fria. Chloe, porém, mantinha a postura natural, descontraída, com aquele ar estudado e indecifrável que não dava espaço para dúvidas ou hesitações.

— A Piper está? — perguntou, num tom leve e distraído, como se não houvesse qualquer peso naquelas palavras, como se a noite anterior fosse apenas mais uma noite qualquer perdida no tempo.

Assenti devagar, dando um passo atrás para deixá-la passar, enquanto ela avançava com passos seguros. O seu aroma, aquela combinação subtil e inconfundível de baunilha, preencheu-me devagar, como uma onda silenciosa que ameaça submergir-nos sem aviso prévio.

O meu coração ainda batia acelerado. A sua presença, sempre tão natural, revelava apenas o que ela permitia ver. Para mim, porém, cada gesto seu, cada silêncio, era um texto repleto de significados que eu tentava decifrar sem nunca ter a certeza do que encontraria.

Seguimos em silêncio até à sala.

Piper permanecia no sofá, estendida. A televisão de novo ligada, num programa qualquer que servia apenas como som ambiente. A cabeça virou-se na nossa direção ao ouvir os passos, primeiro como um reflexo distraído e depois com um ligeiro sobressalto de reconhecimento. Arqueou uma sobrancelha, endireitando ligeiramente a sua postura.

— Harper, tu sabes que as visitas não anunciadas são tradição dos fantasmas, não dos humanos. — disse, com um meio sorriso carregado de sarcasmo.

A loira esboçou um sorriso de canto, pousando os olhos nela com uma calma que parecia ensaiada.

— Tu sempre tão calorosa. Dá gosto ser recebida com tanto entusiasmo.

— É o meu dom. — retorquiu, esticando as pernas por debaixo da manta. — Então? — A sua expressão faiscou — Vieste contar como correu o grande momento “Sam e Chloe — o spin-off”?

Engoli em seco.

O ar alterou-se de forma subtil. Um estremecer quase impercetível, mas eu senti-o a prender-se no peito, obrigando o meu coração a pedir permissão para bater. A imagem de Chloe a afastar-se com Sam, sem me olhar, sem vacilar, projetou-se novamente diante dos meus olhos com uma nitidez cruel.

Ela ficou imóvel por um instante, as mãos entrelaçadas atrás das costas, numa postura casual, porém defensiva. O rosto permanecia sereno, uma máscara perfeita e cuidadosamente mantida, no entanto nos olhos havia um brilho mais contido, uma camada de vidro fino escondendo o que quer que fosse que ela não permitia ao mundo ver.

— Não sabia que era assunto de interesse público e que precisasse de um relatório detalhado. — Respondeu num tom tão neutro que quase parecia ensaiado, diplomático ao ponto de deixar a frase flutuar entre a ironia e a seriedade. — Lamento, não há nada digno de nota.

A ruiva inclinou a cabeça ligeiramente, avaliando-a com curiosidade penetrante, mantendo a curva no canto dos lábios.

— Não? — questionou com uma inocência fingida. — Então deduzo que o silêncio seja apenas porque a noite correu exatamente como esperavas? Ou foi mais uma daquelas noites em que se fala muito com os olhos, mas se diz zero com a boca?

O desconforto alastrou-se lentamente dentro de mim, tornando-se um peso quase físico. O olhar de Piper cruzou-se com o meu brevemente, o suficiente para sentir-me exposta, como se tivesse sido arrastada para um palco sem qualquer aviso prévio.

Chloe sustentou a sua postura com uma elegância fria e calculada. Não se mexeu, não ergueu a voz num tom acima do necessário. Contudo, o ar parecia subitamente carregado, mais denso, envolvendo-nos numa tensão silenciosa que eu sentia cada vez mais pesada sobre os meus ombros.

— Piper. — O nome saiu dos seus lábios como um aviso gentil, mas firme, uma linha traçada com clareza implacável. — Pára.

A palavra não precisou ser alta para cortar o ar com precisão. Foi um golpe certeiro, uma defesa instantânea e eficaz, encerrando abruptamente o território da provocação. A ruiva ergueu as sobrancelhas, surpreendida não tanto pelo tom em si, talvez pela autoridade silenciosa que Chloe raramente expunha.

O silêncio que se seguiu foi dolorosamente longo. Eu permaneci imóvel, sentada na beira do sofá, a respiração presa em algum lugar dentro do meu peito, sentindo-me simultaneamente distante e demasiado envolvida.

Por fim, um suspiro, afastando-se teatralmente para trás, cedendo de forma aparentemente despreocupada, mas claramente entendendo o limite que acabava de ser imposto.

— Relaxa. Foi só uma piada. — Murmurou, levantando as mãos num gesto de trégua deliberadamente desajeitado. — Imagino que estejas aqui para algo mais relevante, não é?

A outra não respondeu de imediato. Os seus olhos fixaram-se num ponto distante.

— Sim, podemos conversar? — a pergunta saiu calma, controlada.

Piper assentiu lentamente, a expressão suavizando-se, agora mais contemplativa do que provocadora. Deslizou a manta para o lado com um gesto breve e levantou-se, abrindo caminho.

— Claro, vamos subir então. Mas espero que sejam problemas interessantes o suficiente para compensar o drama.

A loira passou por mim sem qualquer olhar ou palavra. Eu fiquei para trás, presa numa imobilidade desesperada, sentindo-me afundar numa introspeção sufocante, sem saber como resgatar-me do turbilhão silencioso que era ela.

O tempo tornou-se algo distante, algo indefinível e impossível de medir enquanto eu estava na cozinha com Amanda, colocando pratos sobre a mesa com gestos automáticos, sem sequer me aperceber do que fazia. Os pensamentos enrolavam-se em espirais infinitas, tentando compreender a dinâmica que se desenrolava no andar de cima. Quanto tempo tinha passado desde que Piper e Chloe subiram? Minutos? horas?

— Maya, estás bem? — Amanda perguntou suavemente, interrompendo os meus desvaneios.

Assenti lentamente, sem muita convicção.

— Sim, claro. Estava só distraída.

Esta lançou-me um sorriso compreensivo, voltando a concentrar-se no seu trabalho. Eu continuei a dispor cuidadosamente os talheres, como se aquele gesto tão mundano pudesse trazer-me de volta à terra firme. O som abafado dos passos nas escadas interrompeu abruptamente os meus pensamentos, fazendo o meu coração acelerar por instinto.

Piper e Chloe desciam, a voz da ruiva preenchendo o espaço com uma gargalhada espontânea, leve e genuína, quebrando o peso do silêncio.

— Essa foi muito boa. Admito — comentou Piper entre risos, abanando a cabeça enquanto entravam na cozinha.

A loira lançou-lhe um olhar divertido, mantendo um meio sorriso enigmático.

— Às vezes surpreendo-me até a mim mesma — replicou com uma ironia suave, mantendo a leveza do momento.

Observei-as em silêncio, sentindo uma distância quase dolorosa crescer dentro de mim. Desviei o olhar rapidamente, focando-me novamente na mesa.

Amanda ergueu o rosto com um sorriso caloroso ao ver Chloe.

— Chloe querida, que bom ver-te aqui. Fica para jantar connosco, sim? — sugeriu, com a sua habitual gentileza maternal.

Observei-a pelo canto dos olhos, percebendo uma ligeira indecisão. Antes que pudesse responder, Piper interrompeu-a imediatamente.

— Excelente ideia! — começou, num tom exageradamente animado, típico do seu sarcasmo habitual. — Já agora aproveita e dormes cá. Faz tempo que não fazemos isso. Podemos assistir a um filme de terror até de madrugada, como nos velhos tempos.

A outra ergueu as sobrancelhas com uma expressão quase divertida.

— Como nos velhos tempos? Ainda vais adormecer antes de chegarmos à metade do filme — retorquiu com um sorriso enviesado.

Piper revirou os olhos dramaticamente, fingindo-se ofendida.

— Por favor, não me subestimes. A minha resistência para filmes, neste momento, é lendária.

O tom descontraído delas criou um contraste doloroso com o meu estado interno, onde cada palavra parecia intensificar a ansiedade que crescia dentro de mim. Continuei a arrumar a mesa, procurando desesperadamente não revelar o quanto aquele simples convite abalava o meu mundo interior.

Ela aceitou com um aceno que quase passou despercebido. Uma leve inclinação de cabeça. Nada no gesto parecia definitivo, mas Amanda já sorria como se fosse.

Durante o jantar, as vozes preenchiam o espaço com naturalidade. Amanda falava com entusiasmo contido. Piper interrompia de vez em quando com alguma observação teatral. Chloe, entre uma frase e outra, mantinha os olhos baixos, o sorriso suave.

Observei tudo em silêncio. O barulho dos talheres a tocar nos pratos. O som leve da água a ser vertida. A luz amarelada sobre a toalha. Tudo parecia normal. Tudo parecia quase tranquilo. No entanto eu não conseguia deixar de reparar na forma como ela pousava o copo. Devagar. Como se não quisesse perturbar mais do que o necessário.

O meu olhar fugia na sua direção com mais frequência do que devia. E sempre que o fazia, sentia uma espécie de desequilíbrio. Como se o corpo, mesmo imóvel, oscilasse.

Amanda cruzou os braços sobre a mesa. Sorriu de lado, como quem se lembra de algo que pertence a outro tempo.

— E a tua mãe, Chloe? A Isabel ainda dá aulas?

A loira ergueu ligeiramente a sobrancelha, como se a pergunta a tivesse apanhado a meio de outro pensamento.

— Ainda dá. E ainda acredita que a Literatura é a salvação. — respondeu com um tom neutro, mas claro.

Amanda soltou um pequeno riso.

— A Isabel sempre teve essa fé nos livros.

Chloe assentiu, com um sorriso discreto.

— Está convencida de que um aluno que lê Camus antes dos vinte evita pelo menos uma crise existencial mal orientada.

— Isso soa exatamente como ela. Nunca conheci ninguém que citasse Shakespeare numa reunião de pais com tanta elegância.

— Cresci a ouvir sonetos antes de saber contar até dez. — expôs, tranquila. — Não aprendi a andar de bicicleta, mas sabia o primeiro parágrafo de “O Estrangeiro” de cor.

Amanda inclinou-se ligeiramente para a frente, com um brilho curioso nos olhos. O tipo de brilho que surgia sempre que uma conversa tomava um rumo mais interessante do que o esperado.

— Lembro-me de um debate em que a tua mãe comparou a Revolução Francesa à estrutura narrativa de “Rei Lear”. Ainda me pergunto como fez aquilo funcionar.

A outra não hesitou. Nem precisou pensar muito.

— Porque funcionava. — afirmou, serena. — Tragédias, quando bem organizadas, têm mais lógica do que a História. A diferença é que, na Literatura, os deuses ou os erros fazem sentido. No mundo real, nem sempre.

Amanda soltou um riso breve, e sacudiu a cabeça, divertida.

— Isso soa perigosamente bem pensado para uma adolescente.

— Crescer com ela obriga-nos a refletir antes de responder. Ou pelo menos a disfarçar bem quando não sabemos. — Chloe pousou o cotovelo na mesa, apoiando o queixo na mão, num gesto que era ao mesmo tempo despreocupado e incrivelmente atento. — Em casa, os argumentos não se ganhavam com o volume da voz. Mas com o número de referências por minuto.

Sorri, quase sem querer. Desviando o olhar rapidamente.

Cada resposta dela tinha o efeito de um raio silencioso. Eram inteligentes, sim. Mas era mais do que isso. Era a forma como falava, pausada, mas firme. Como se cada frase tivesse um lugar específico. Como se o mundo, à sua volta, se organizasse por palavras escolhidas com precisão. Ela não dizia muito, mas tudo o que dizia parecia certo. Assentava.

E eu sentia-me a dissolver devagar.

Como se cada frase tocasse num ponto qualquer que eu não sabia que estava exposto.

Continuei a mexer no guardanapo entre os dedos. Um gesto quase infantil, quase inútil, porém que me impedia de transbordar. Fingia que ouvia Amanda, mas tudo em mim gravitava em torno dela. O modo como se inclinava ligeiramente para trás, como se coubesse em qualquer lugar sem pedir espaço. O modo como sorria com contenção, como se estivesse sempre a guardar a melhor parte para depois. Havia nela uma clareza difícil de olhar de frente. Como a luz da manhã quando ainda não estamos prontos para acordar.

E talvez fosse isso que mais me perturbava. A clareza.

Amanda recostou-se com naturalidade, os cotovelos fora da mesa agora, a expressão ainda fixa em Chloe.

— E a fotografia? A tua madrasta ainda fotografa? — questionou com aquela leveza própria de quem conhece a resposta, mas quer ouvir a versão de dentro. — Sempre achei curioso como o olhar literário da Isabel e o olhar técnico da Lucy se equilibram ou competem na mesma casa.

A palavra “madrasta” caiu suave. Quase decorativa. Mas, dentro de mim, acendeu-se um eco. Uma pequena fratura na imagem que eu tinha dela. Não que eu devesse saber algo sobre o pai de Chloe.

Isabel e Lucy. Na mesma casa.

Fui criada a ver a família como um tripé: pai, mãe, filhos. Tudo o que fugisse disso era visto como emenda, como coisa remendada. Nunca me ensinaram a pensar em outras formas de amor que também pudessem ser casa. Talvez por isso aquele “madrasta” me soasse estranho. Não feio. Só inesperado.

E então, de forma quase involuntária, a pergunta apareceu.

Será que Chloe também cresceu sem um dos lados? Será que, tal como eu, aprendeu a conviver com a ausência moldada em silêncio? Eu sem mãe, ela talvez, sem pai? Ela com duas figuras maternas?

Lucy.

Madrasta.

Fotógrafa.

As peças reorganizaram-se dentro de mim. Lentamente. Sem alarme, mas com ruído.

— A Lucy continua. — disse, tranquila. — Agora anda obcecada com superfícies que distorcem. Reflexos em vidros, água suja, vitrines de cafés. Diz que só aí é que a realidade se mostra disposta a conversar. — A frase saiu quase leve, mas havia algo nos seus olhos.

Amanda sorriu, inclinando ligeiramente a cabeça.

— E tu? Preferes as palavras ou as imagens?

A loira rodou o copo entre os dedos.

— As palavras são o lugar onde me escondo. — Começou, num tom calmo, quase ausente, como quem lê uma linha já sublinhada demasiadas vezes. — A fotografia obriga-me a observar. A não desviar. A aceitar o que está lá mesmo quando não gosto. Isabel ensina-me a sentir por dentro. Lucy, a encontrar ângulos de fora. Uma dá-me vocabulário. A outra, nitidez.

Fez uma pausa. Pequena. Quase impercetível.

— Mas nenhuma me deixa ficar pelo óbvio.

E, nesse instante, os olhos dela deslizaram rapidamente na minha direção. Foi só um segundo. Mas vi. Vi como quem reconhece um tremor discreto na superfície da água.

A expressão manteve-se intacta. Mas havia qualquer coisa naquele olhar. Algo por detrás da frase como se uma parte tivesse sido dita apenas para mim. Ou sobre mim.

Não era provocação.

Era quase transparência.

E essa breve colisão bastou para me desalinhar por dentro. Voltei a fixar o guardanapo entre os dedos. Fingindo concentração. Mas era tarde demais.

O silêncio que se seguiu à sua resposta era ténue, mas dens.

Amanda sorriu, satisfeita com a troca.

Eu mantinha os olhos baixos. Foi então que Piper, com o seu timing quase sempre involuntário, mas certeiro, surgiu com a energia habitual a rasgar o momento como quem abre uma janela.

— Ok, já chega de conversa existencial e poesia doméstica. — disse, empurrando ligeiramente a cadeira para trás. — Harper, anda lá. Está oficialmente na hora de escolhermos o filme. E quero vetar qualquer coisa que envolva crianças demoníacas ou bonecos com olhos que brilham no escuro.

O seu tom era teatral, exagerado, como sempre. Contudo, de alguma forma, aquela interrupção parecia necessária.  

A outra sorriu. Não respondeu de imediato. Apenas pousou o copo, com a mesma calma com que fazia tudo, e ergueu-se com leveza. Os olhos passaram por mim, de relance.

— Maya — Piper chamou a minha atenção, virando-se para mim — vens? Ou vais ficar aí a contemplar os talheres?

Sorri, por reflexo. Sem me mover.

— Acho que fico. — respondi, num tom baixo, porém firme.

Ergueu uma sobrancelha.

— Sério? Maya, é tradição. Filmes malévolos, mantas partilhadas, comentários sarcásticos. Estás a quebrar o círculo da confiança.

Tentei rir. Ou, pelo menos, parecer leve.

— Talvez noutra noite.

Estava prestes a insistir, mas algo na minha voz ou no modo como não levantei os olhos fez com que recuasse.

— Perda tua. Se chorarmos de tanto rir, vai ser sem ti.

Virou-se para sair, lançando a Chloe um gesto vago com a cabeça. Ela seguiu-a, sem dizer nada.

***

No quarto, o silêncio era uma presença inteira. A casa, lá em baixo, parecia ter mergulhado noutro ritmo, risos abafados, um som distante que mal atravessava as paredes. Aqui, o tempo era outro.

O livro repousava no colo. As palavras alinhadas como soldados calmos, prontos para consolar. Lia há minutos. Ou horas. Já não importava.

A luz projetava sombras suaves sobre os lençóis. A porta estava entreaberta. Sempre gostei de portas assim nem abertas demais, nem fechadas.

O relógio marcava 22:30.

Virei a página. Lentamente. Sentia o corpo mais leve do que devia. Talvez de cansaço.

Foi então que o senti.

Não um som. Não um movimento. Apenas a sensação. Como quando o ar muda antes da chuva. Um tipo de presença que se pressente na pele antes de se ver.

Levantei os olhos.

Chloe estava encostada à ombreira da porta.

Braços cruzados, o corpo ligeiramente inclinado, como se aquele lugar lhe pertencesse. A cabeça apoiada no batente, o olhar em mim, calmo, mas atento. Cheio.

Vestia uma t-shirt larga, daquelas que parecem emprestadas ou escolhidas ao acaso, mas que lhe assentava de forma quase indecente de tão certa. Os shorts curtos revelavam-lhe as pernas com uma despreocupação natural, quase ensaiada. Um equilíbrio perfeito entre o casual e o provocador.

Desviei o olhar no instante em que senti o sangue subir. Como se só o ato de a ver fosse suficiente para me desorganizar por dentro.

Não me lembro de ter ouvido passos.

E, no entanto, ali estava ela.

Há quanto tempo?

Não perguntei.

Ficámos assim.

Ela a observar-me.

Eu a permitir.

O livro ainda aberto nas mãos, mas já sem texto. Como se a sua presença tivesse apagado tudo da página, deixando só o branco. Só espaço.

Nada naquele instante pedia pressa. Nem explicações.

Ela não sorriu. Mas também não parecia distante.

Era como se esperasse por qualquer coisa. Um recuo, um gesto. Um centímetro de permissão.

E eu, sentada, sentia-me dividida. Metade de mim queria dizer algo banal, quebrar o feitiço. A outra só queria permanecer naquele silêncio onde tudo parecia mais verdadeiro do que qualquer palavra.

Ela continuava à porta. Não como quem hesita, mas como quem domina o limiar. Como se soubesse habitar a fronteira entre estar e não estar.

— A Piper já adormeceu. — Comentou, fazendo uma pausa breve. — Confesso que pensei que tu também já estivesses a dormir. Ou a fingir.

O canto da boca curvou-se num sorriso curto. Suficiente.

Fechei o livro com lentidão. Um gesto pequeno, mas deliberado.

Não respondi de imediato.

Ela no meu quarto. À noite.

E por mais inofensivo que parecesse, havia no momento um peso. O peso de tudo o que ainda não acontecera.

Mordi a bochecha por dentro. Um gesto minúsculo. Como se esse fosse o único sinal de que eu ainda tinha controlo sobre mim.

Inclinei a cabeça, quase sem querer.

Ela entendeu.

O sorriso desapareceu. Não disse nada.

Deu um passo.

E entrou.

O quarto encolheu. Não fisicamente, mas na forma como o silêncio se adensou. Como se, com ela ali, o espaço ganhasse outra gravidade.

Avançou devagar, como quem percorre território íntimo. Os olhos seguiram pelas lombadas da estante. Os dedos deslizavam próximos dos livros, mas sem tocar. Como se sentissem sem precisar do contato.

— Têm bom gosto por aqui. — Murmurou, mais para si do que para mim. — Calvino, Duras, Clarice. — Uma pausa breve. — E este — inclinou-se ligeiramente, puxando um exemplar gasto de Faulkner. — Ninguém lê Faulkner sem intenções.

O sorriso era leve. Mas havia nele uma reverência rara, disfarçada na provocação. Um elogio escondido numa provocação bem medida.

— São da Amanda. — Sussurrei, a voz presa entre desculpa e admissão. — Eu só os pedi emprestado.

Virou-se devagar, ainda com o livro na mão. Os olhos encontraram os meus por um segundo que durou mais do que devia.

— Mesmo assim, podias ter escolhido ignorá-los. — afirmou. — Mas não o fizeste.

A frase ficou no ar, como uma linha solta que sabia onde queria tocar. E eu soube, naquele instante, que ela não falava apenas sobre os livros.

Fiquei em silêncio.

O coração fazia mais ruído do que devia. Como se tentasse preencher o que a boca não conseguia dizer. Como se denunciasse, batida após batida, tudo aquilo que ainda não tinha nome.

Pousou Faulkner com uma delicadeza quase cerimonial. Como quem reconhece o lugar exato onde algo pode partir. Um gesto silencioso, mas cheio de precisão.

Depois, aproximou-se da mesinha ao lado da cama.

E eu, por dentro, já não sabia onde terminava o meu corpo e começava o espaço que ela ocupava.

A luz projetava sombras quentes sobre o tampo. E ali, entre um caderno aberto e uma caneta, repousava a Bíblia. Gasta. Discreta na sua presença, mas impossível de ignorar.

Vi quando os seus olhos a reconheceram. Não houve surpresa. Nem julgamento.

Mas houve palavras.

— Faulkner e a Bíblia. — Murmurou, com um leve levantar de sobrancelha. A voz baixa, quase um sussurro atravessado de ironia mansa. — Uma ode à culpa e outra à redenção. No mesmo quarto. Isso é quase perversamente belo.

Sorriu. Devagar. Quase como se saboreasse o momento.

O olhar que lançou depois foi direto. Seguro. Não pedia permissão.

— Lembras-te do que te disse ontem? Na praia?

A pergunta soou calma, mas trazia um pesar. Como se já conhecesse a resposta. Como se estivesse a senti-la no meu silêncio.

Assenti. O gesto quase não aconteceu. Ainda assim, ela percebeu.

Deu um passo. Depois outro.

E o quarto encolheu ligeiramente. Ou talvez fosse só a minha perceção que mudava com a proximidade.

— Há coisas que não se desdizem. — Continuou. A voz baixa, afiada. — E eu detesto repetir-me. Mas certas ideias têm o mau hábito de voltar. — Parou na beira da cama, os olhos nos meus. — Especialmente quando estão sentadas à minha frente. Com um ar de quem quer fugir e ser apanhada ao mesmo tempo.

O sangue subiu-me da pele.

E ainda assim, não me mexi.

Ela inclinou-se um pouco. Não o suficiente para parecer invasiva. Porém o bastante para o ar entre nós se tornar palpável.

— Estás a esconder-te atrás de um livro que já não estás a ler. — Sussurrou. — E eu não consigo decidir se quero arrancar-te dele. Ou pedir para entrar.

As palavras tocaram fundo. Num lugar que eu ainda não sabia nomear, quanto mais proteger.

As mãos apertaram o lençol.

Não por medo.

Mas como quem segura algo antes de o deixar ir.

Porque naquele instante, já não era o receio que me mantinha imóvel.

Era ela. E tudo o que prometia sem dizer.

O ar vibrava numa frequência que só eu ouvia.

Abri a boca. Não sei para quê. Para parar. Para permitir. Para dizer qualquer coisa que quebrasse aquele feitiço que ela sabia conjurar com tão pouco.

Mas antes que o corpo respondesse, antes mesmo de reunir a coragem necessária, Chloe recuou.

Arqueou uma sobrancelha.

Não era surpresa. Nem provocação vazia.

Era desafio.

Depois, deu mais um passo atrás. Como quem se afasta de uma beira, mas sem desviar o olhar.

Os olhos ficaram nos meus. Turquesa firme. Como uma corda esticada entre dois pontos que não sabiam se queriam aproximar-se ou partir.

Quando chegou à porta, parou. Sem atravessá-la.

Uma pausa breve. Precisa. Deliberada.

Depois virou-se.

E saiu.

Sem ruído. Sem aviso.

Como quem deixa algo para trás não por descuido, mas por intenção.

Fiquei imóvel. Minutos talvez. O quarto parecia o mesmo, mas já não era. O ar, agora mais denso. A pele, mais desperta.

Tudo parecia ter sido retirado do espaço, menos o que não foi tocado.

E o que ficou nela, ficou em mim. Ainda ali.

Preso ao silêncio. E à lembrança morna dos olhos dela sobre a minha pele.

 

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Acho que, no final deste capítulo, talvez estejam a perguntar-se: quando é que esta contenção avassaladora vai finalmente rebentar?

Bom, se há algo que aprendi é que o silêncio não é ausência, é acumulação.
E essa acumulação está prestes a transbordar.

Será que este capítulo também vos deixou a fermentar por dentro?

Se chegaram até aqui, obrigada por sentirem comigo cada silêncio, cada hesitação, cada olhar suspenso.

Vemo-nos no próximo. ;)

 


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Comentários para 14 - Capítulo 13:
thays_
thays_

Em: 28/04/2025

Olá querida autora! A rotina está puxada por aqui, hoje vim atualizar minha leitura!

Olhe só, será que as duas irão fazer uma festa já que terão a casa só pra elas? Veremos!

E o que foi essa última cena no quarto da Maya? Até fiquei sem ar por aqui.

Desses autores que foram citados, dos livros que Maya tinha na estante, não conheço Faulkner. Você me indicaria algum livro dele?

Já vou correndo ler o próximo capítulo! Até breve!


asuna

asuna Em: 01/05/2025 Autora da história
Olá Thays! Que bom que estás de volta é sempre muito agradável ler as tuas observações sobre os capítulo :)

Relativamente ao livro recomendo O Som e a Fúria, tenho outro na minha lista que ainda tive a oportunidade de ler mas que se chama Absalão, Absalão!


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