O Peso do Azul por asuna
Capítulo 12
O bar estava saturado de sons que não me pertenciam. Risos soltos, gargalhadas demasiado altas, conversas que ondulavam em torno da mesa como marés desordenadas e eu ali, à deriva.
O copo refletia as luzes penduradas no teto, quentes e falsas, quase reconfortantes, como se tentassem distrair-me daquilo que me apertava o peito.
Chloe endireitou-se ligeiramente na cadeira, os olhos semicerrados numa ação que escondia cálculo sob o disfarce do desinteresse.
— Só acho curioso o que escolhes priorizar. — A sua voz chegou baixa, enviesada, mais provocação do que preocupação.
Sorri. Um sorriso sem calor, feito só de lábios.
— E eu acho curioso como estás sempre tão atenta às minhas escolhas.
A pausa que se seguiu carregava um peso que ninguém ousou nomear. Piper bebeu da sua bebida com exagero teatral, o tilintar do gelo a soar alto demais. A garota ao lado de Chloe fingia observar o copo, porém os seus sentidos mantinham-se atentos.
Percebi, então, que não éramos apenas duas pessoas num embate contido éramos o centro de um palco improvisado. E a plateia, embora muda, absorvia cada palavra, cada nuance.
Parte de mim queria desaparecer, dissolver o desconforto com ar contido.
Mas outra parte queria ficar. Queria que ela visse que não podia provocar sem consequência.
Chloe notou. Claro que notou. E, como sempre, soube usar isso a seu favor.
— Sempre tão direta, Maya. É quase enternecedor. — A suavidade escondia a lâmina.
— E tu, sempre tão hábil a dizer tudo sem realmente dizer nada. — Respondi de forma mais contida do que desejara, no entanto firme.
Ethan mexeu-se discretamente do meu lado. A loira recostou-se, os braços cruzados com precisão.
— Incomodo-te assim tanto?
— Não incomoda. — Menti. — Só surpreende. Mas já não me apanha desprevenida.
A resposta traçou uma ruga quase invisível no canto do seu sorriso. Desarme mínimo, contudo, nítido.
— Eu prefiro quando as pessoas são consistentes. — Devolveu.
— E eu prefiro quando elas sabem quando parar. — Atirei, sem filtro. A fadiga a esgueirar-se por debaixo da lucidez, pedindo para que aquilo terminasse.
Ela abriu a boca, pronta para a resposta. Vi o brilho, a réplica na ponta da língua.
Mas antes que pudesse pronunciá-la, Piper bateu palmas.
Alto. Rápido. Como quem salva um navio antes de afundar.
— Ok, stop. Já percebi tudo. Está oficialmente decretado: vamos sair daqui. — Anunciou, erguendo-se com súbita decisão. A sua expressão brilhava de entusiasmo, como se uma ideia improvável tivesse acabado de se acender dentro dela.
Todos a fitaram com surpresa.
— Sair? — perguntou Noah, franzindo a testa.
— Sim. Acabei de ter uma ideia genial. Tipo, realmente genial. — disse, já a levantar-se com um entusiasmo quase elétrico. — Fiquem aqui. Ou melhor, esperem lá fora. Todos. Juro que vai valer a pena.
Ninguém se mexeu. Até Chloe ergueu uma sobrancelha, intrigada.
— Estou a falar a sério! — insistiu, já contornando a mesa com a rapidez de quem não tem tempo para dúvidas. — Vão. Todos. Para a rua. Dou-vos cinco minutos. Dez, se forem lentos. Confiança cega, vá! Movimento, gente!
Jude ergueu-se de seguida, os olhos brilharam surgerindo saber do que se tratava.
— Eu ajudo linda. — afirmou, logo desapareceram as duas, deixando-nos num breve estado de confusão.
Ainda sentada, lutei contra o impulso de observar Chloe.
Sabia que esta me encarava. Sentia-lhe a atenção pousar-me no rosto como se me tocasse, sem o fazer. Recusei ceder. Levantei-me devagar. Ethan acompanhou-me.
Lá fora, o ar estava mais frio. O céu, limpo, destacava uma lua pálida, mas firme. Espalhámo-nos pela calçada. Amber encostou-se a um poste de iluminação, Noah sentou-se na borda do passeio, os cotovelos apoiados nos joelhos. Chloe manteve-se de pé, de braços cruzados, ligeiramente afastada. Junto dela, a garota que a acompanhava. As duas trocavam palavras baixas, sussurradas.
Eu conseguia ouvi-las. Não o conteúdo, mas o tom. Cada murmúrio, ainda que indistinto, parecia crescer dentro de mim como ácido subtil. Aquele nó, entre ciúme e desconforto formava-se sem aviso.
Porém recusei deixá-la tomar conta.
Mantive a atenção fixa nalgum ponto indefinido do horizonte. A respiração saiu-me controlada. Uma respiração conhecida. E o frio, agora, parecia mais interno do que vindo da noite.
Segundos depois, o som de passos apressados quebrou a espera muda.
Piper e Jude reapareceram, ofegantes, rindo uma da outra, carregando um saco nas mãos, garrafas, copos de plástico, um altifalante, uma lanterna e uma manta colorida que parecia ter vivido muitas histórias antes desta.
— Marcha, pessoal. Praia. Agora. — Decretou a ruiva triunfante, como se estivesse a anunciar a solução para todos os males do mundo.
— Estás a brincar. — Soltou Amber, rindo-se, meio descrente.
— Estou seríssima. Está uma noite perfeita. Sem vento. Só areia, mar e ideias idiotas. Jude trouxe uma manta. Porque somos pessoas irresponsáveis, sim, mas ainda com alguma decência térmica.
O comentário arrancou um riso geral, breve, mas necessário. Sem que fosse preciso mais insistência, o grupo ergueu-se com um entusiasmo meio teatral, meio genuíno.
Seguiu-se um pequeno cortejo até à praia. As risadas reapareceram, mais leves.
Instalámo-nos num círculo desalinhado, perto da iluminação pública. O mar sussurrava ao longe, e o ar trazia aquele cheiro a sal e liberdade. Piper colocou a manta no chão, abriu o saco e retirou as garrafas com a solenidade de quem revela um tesouro.
— Muito bem — Começou, o rosto abriu-se levemente. — Já que estamos nesta deliciosa onda de tensão passivo-agressiva, que tal um jogo?
— Um jogo? — Ethan franziu o sobrolho, desconfiado.
— Sim. — respondeu a ruiva, já distribuindo os copos com eficiência. — É tipo “Eu nunca…”, mas com um upgrade, agora é “Quem já...”. Se te identificas, bebes. Sem explicações. Sem perguntas. Só bebe e eu como boa anfitriã farei as perguntas.
Notei uma ligeira troca de olhares entre todos, um misto de expectativa, nervosismo e divertimento. No fundo, todos sabiam que nada num jogo destes era realmente inocente. Porém ninguém protestou.
Jude colocou música num volume baixo, quase como pano de fundo. Um jazz lo-fi misturado com o som das ondas ao longe.
Chloe sentou-se do outro lado do círculo, calma demais. Sam, ao lado, inclinava-se ligeiramente para ela. Piper ficou entre mim e Jude.
Cruzei as pernas, o copo pousado à frente. Era de plástico opaco, translúcido. Dentro, um líquido escuro, promissor e proibido. A minha mão repousava próxima, sem tocar. Uma distância medida.
A indecisão surgiu lentamente na minha mente
E se eu beber?
Não era apenas sobre quebrar uma regra. Era sobre romper com quem eu fui ensinada a ser.
A menor de idade. A filha do pastor. A que prometeu. A que rezava antes das refeições e pedia perdão por pensamentos que mal tinham nascido. O copo não era só um copo. Era um marco. Um risco. Um corte, ainda que pequeno, com a parte de mim que ainda se agarrava à esperança de ser aceitável aos olhos de alguém que nunca me viu por inteiro.
E, no entanto, ali estava ele.
Inofensivo. Quente nas mãos dos outros. Uma parte de mim queria saber o que vinha depois. O que se soltava quando o corpo baixava a guarda. O que se dizia sem filtro, sem defesa.
No entanto havia outra parte, aquela que se sabia observada. Como se ele ainda me visse, mesmo quando eu já não queria ser vista.
E foi então que senti o azul-turquesa pousar sobre mim.
A sua presença era como um farol invertido. Não me guiava, expunha. E, mesmo sem me tocar, fazia-me sentir mais nua do que qualquer confissão.
Endireitei as costas. O copo permaneceu ali, intato, tal como a dúvida.
— Primeira rodada! — anunciou Piper, erguendo o seu copo com o exibicionismo de sempre. — Quem aqui já fingiu gostar de alguém só para não estragar o ambiente?
Risos leves romperam o vazio. Sam, bebeu com prazer evidente. A ruiva seguiu-a sem indecisão. Ethan demorou-se, depois cedeu resignado.
Chloe, porém, não se moveu. A sua atenção fixa em mim. O plástico descansava entre os seus dedos, como se não ousasse ser tocado.
Eu permaneci imóvel.
— Já beijei alguém só para calar a pessoa. — Continuou, num tom mais suave.
As gargalhadas surgiram mais rápidas desta vez. Jude foi a primeira a beber, como quem se orgulha da lembrança. Piper não vacilou. Ethan abanou a cabeça, divertido, mantendo o copo firme no chão.
Chloe hesitou.
Um segundo apenas.
Depois levou o copo aos lábios. Sem sorrir. Sem adornos. Um gole breve. Suficiente. Definitivo.
O meu estômago contraiu-se. Não pelo movimento. Foi a lembrança que ele arrastou atrás de si. Do que ela escolheu não deixar acontecer.
O meu copo continuou onde estava. E, com ele, a minha resistência. Por enquanto.
Piper ergueu o rosto, empolgada. Como se soubesse, inconscientemente, que naquele círculo desalinhado, a verdade ia escapando aos poucos. Não pelas palavras, contudo pelas pausas.
— Próxima! — anunciou, endireitando-se com exibicionismo. — Quem já se arrependeu imediatamente depois de dizer alguma coisa?
Desta vez, os copos ergueram-se quase em uníssono. Nathan foi o primeiro. Amber. Jude. Chloe.
Encarei o meu.
Por dentro, um desfile de frases. Ditadas pelo medo, pela raiva, pela urgência. Ditas cedo demais. Tarde demais. Palavras que me arranharam a garganta só por existirem. Que diminuíram o peito só por terem sido ditas.
Bebi.
Senti o líquido descer lento, abrasando memórias como quem tenta purgar o que doeu demais para guardar.
A ruiva sacudiu a cabeça com uma tristeza fingida.
— Estamos todos condenados — declarou, dramatizando com um falso suspiro. — Bem, prossigamos. Esta é fácil. Quem já fez algo só para chamar a atenção de uma pessoa em específico?
A gargalhada foi rápida, quase automática, mas havia nela uma nota ligeiramente nervosa.
Jude e Amber beberam em perfeita sincronia, rindo de si mesmas. Noah também, com uma expressão de “culpado, sim senhor”. Ethan encolheu os ombros e bebeu. A ruiva ergueu o dela como quem brinda a uma memória embaraçosa.
Chloe não se mexeu.
Ficou absolutamente imóvel. O copo ali, entre os dedos, intocado. Perdida em algum ponto que ninguém via. A expressão neutra, neutra demais.
E eu?
Apertei os dedos na borda do plástico. Mas não o levantei. Porque se o fizesse, teria de admitir tudo.
Cada vez que deixei o cabelo solto.
Cada vez que permaneci, só mais um segundo, à espera de ser notada.
Fiquei em suspensão. Mas doeu como se tivesse bebido até ao fim.
Piper não comentou. Talvez tenha percebido. Ou talvez tenha escolhido continuar, como se não fosse nada.
— Próxima — disse, agora num tom mais baixo, quase murmurado. Havia algo na sua voz que já não era só brincadeira. Como se o jogo começasse, finalmente, a pesar-lhe nas mãos. — Quem já ficou preso em algo que sabia que não devia ter começado?
A pergunta pairou no ar pesada. Desta vez, ninguém riu. Ninguém tentou suavizar com um comentário.
Um, dois, cinco copos ergueram-se.
O meu foi um deles.
E o dela também.
E nesse gesto, simultâneo, breve o jogo deixou de ser só um jogo.
A ruiva olhou em redor. Feição mais séria agora, como se algo dentro dela também estivesse prestes a quebrar. E então, sorriu. Não de forma característica dela, mas como reflexo. Um último esforço de devolver leveza a uma noite que já não queria ser leve. Uma tentativa falhada de manter o jogo à tona quando já era claro que estávamos todos a afundar.
— Ok — disse, num suspiro pesado. — Quem já desejou alguém que sabia que não devia desejar?
O impacto foi imediato.
O eco mudo caiu. Denso. Real.
A música desapareceu. As ondas? Eram só ruído de fundo.
O mundo pareceu encolher, como se ela tivesse atirado um fósforo aceso num espaço saturado de memórias, de vontades caladas, de feridas abertas.
Ninguém se mexeu. Nenhum sorriso. Nenhuma desculpa disfarçada em gargalhadas. Só a tensão, viva, quente, a circular entre nós como uma corrente invisível, prestes a queimar.
Então, devagar, o copo de Chloe ergueu-se.
Ergueu-o com uma calma assustadora. Sem indecisão.
E eu, eu demorei.
O calor já me ardia na garganta antes de sequer tocar no plástico. Senti-o instalar-se ali, na fronteira entre aquilo que eu sabia e o que nunca quis admitir.
Bebi. Sem pensar.
Talvez porque já tivesse desejado demais. Talvez porque o corpo se fartou de esperar pela permissão da mente. Ou talvez, porque não era mais possível fingir.
E o pior?
O pior era já não saber o que custava mais: o desejo ou o medo de aceitá-lo.
Piper não comentou.
Não precisava.
Apenas assentiu. Seguidamente pousou o copo no chão, com a delicadeza de quem larga algo que já não consegue sustentar. A sua vibração, agora estava baça. Menos teatrais. Mais humanos.
E então, falou.
— Quem já se afastou de alguém, com medo do que sentiu?
A pergunta assentou como uma verdade antiga. Dura. Sem aviso. Não era uma provocação, nem um convite. Era um espelho e eu não estava pronta para o reflexo.
O ar tornou-se espesso, como se o mundo tivesse prendido a respiração.
Senti o álcool subir-me à garganta, mas não era álcool.
Era outra coisa. Um calor cruel, denso, que me arranhava por dentro.
Laura.
O nome ficou preso entre os pulmões e garganta. Um pecado antigo, daqueles que nunca morrem, só se escondem.
O corpo endureceu. Tenso. Rígido. Cada som se tornou um ruído longínquo, abafado, como se o mundo estivesse debaixo de água. Dentro de mim, uma outra corrente começava a agitar-se. A memória arrastou-me para um lugar onde eu já não queria voltar. Mas voltei.
Era verão. Um calor opressivo, quase sagrado, colava os corpos às paredes da casa paroquial onde o grupo de jovens se reunia. O suor escorria, mas eu não me importava. Estava lá por ela. Por Laura.
Olhos claros. Voz de brisa. Um sorriso que fazia o mundo esquecer-se de ser severo. Ríamos com a Bíblia no colo, partilhávamos versículos como se fossem promessas, e havia algo, por baixo das palavras e das rezas que pulsava. Um tremor mudo. Um desejo que ainda não tinha nome, mas que já era vivo.
Quando ela me tocava, ombro, manga, cabelo eu deixava. Fingindo distração. Até ao dia em que não houve mais fingimento.
Aquele beijo. Rápido. Suave. Tímido. Porém devastador. E o pânico. Não pelo toque. Mas por tudo o que ele dizia sobre mim.
As imagens atropelavam-se.
“Isto não devia ter acontecido”, a frieza na minha voz ao proferir aquela frase, ela encarrava o chão.
As mensagens que ignorei.
A culpa que se tornou oração.
Aquela expressão dela, silenciosa, magoada, que me seguia em cada banco da congregação, como uma lembrança viva do que eu não fui capaz de ser.
Esse instante ficou gravado. Cicatriz escondida entre versículos e orações murmuradas de madrugada. Perdão pedido por não saber sentir da forma certa. Ou talvez, por sentir demais.
E agora, ali, sentada, entre vozes e memórias, com um copo vazio, e os olhos de Chloe cravados em mim, senti a ferida abrir-se de novo.
Era sempre assim. Fugir antes do toque. Calar antes do desejo. Respirar só o necessário para não ser apanhada a viver.
No entanto Chloe não era Laura.
E eu. Eu já não era mesma que tremia só de se examinar no espelho.
Ou era?
Dentro de mim, tudo começou a ferver. Como se no corpo não coubesse mais sentimentos. Como se estivesse a transbordar sem saber para onde.
A ansiedade subiu, lenta. Como uma maré traiçoeira. A intensidade da vergonha misturava-se com uma raiva antiga.
Por ter crescido a acreditar que amar podia ser pecado.
Por ter aprendido a esconder tudo o que em mim era verdade.
As mãos cerraram-se. O plástico rangeu. Quase como se também ele quisesse gritar.
Senti o ardor. A visão tornou-se baça. O coração batia forte demais. Forte ao ponto de me doer nos ouvidos. No peito. Na garganta.
Comecei a respirar pela boca. Todavia o ar parecia insuficiente.
Curto.
Frio. Como se faltasse espaço nos pulmões.
As mãos tremiam. Não disfarçável. Era visível.
A ponta dos dedos gelada. A pele a formigar.
Queria fugir. Ou desaparecer. Ou apagar a luz dentro de mim por uns minutos. Só para conseguir respirar sem dor.
Foi então que algo quebrou o ritmo.
Um movimento contido.
Preciso.
Do outro lado do círculo, vi o seu corpo a mover-se com uma lentidão que quase me fez duvidar se era real.
Inclinou-se sem pressa, com leveza. Alcançou o saco pousado entre ela e Sam. Os seus dedos deslizaram com precisão, extraindo de lá uma garrafa de água.
Abriu com cuidado e estendeu-a na minha direção.
Não me olhou diretamente.
Não disse uma única palavra.
Só estendeu a garrafa, com a delicadeza reservada a quem se quebra por dentro.
A ação parecia banal, quase irrelevante. Mas para mim, para mim, foi tudo. Era como se ela me tivesse apanhado a cair no escuro.
Não era um convite.
Não era pena.
Era uma mão invisível a agarrar-me antes de me desfazer por completo.
Uma oferta.
Demasiado pequeno para os outros notarem. Demasiado grande para o meu coração aguentar.
Respirei fundo, tentando manter o equilíbrio.
Aquela respiração entrecortada de quem regressa à superfície depois de tempo demais submersa.
Levantei o rosto. E quando a encontrei, já não era a Chloe de horas antes, a que provocava com precisão. Era outra. A que vem sem armadura. A do silêncio que acolhe. Do ato que não invade, mas ampara. A que escuta de corpo inteiro. A que vê o que escondemos antes mesmo de sabermos que o estamos a esconder.
Agarrei a garrafa. E, por um instante, os nossos dedos quase se tocaram.
Tão perto.
Tão absurdamente perto.
Inclinei a cabeça. Brevemente. Um agradecimento murado, envergonhado, sussurrado com os olhos húmidos. Parte de mim ainda achava que não merecia. Nem a gentileza. Nem a atitude. Nem a atenção sem exigência.
Esta recostou-se de volta com uma naturalidade que só ela conseguia ter. Sem exibicionismo. Sem buscar reconhecimento. Apenas voltou. Recolheu-se dentro de si com aquela contenção habitual, agora, essa contenção não tinha o sabor de distância. Tinha o peso do cuidado. Da maturidade.
Foi então que percebi algo a mudar. O ambiente mantinha-se leve à superfície, todavia havia uma nova ausência de som. Sam observava a loira com uma expressão diferente, fixa, carregada de algo que não era bem ciúme, nem bem curiosidade. Era como quem espera uma resposta.
Vi os lábios moverem-se, num sussurro. Uma frase curta. Algo dito apenas entre elas. A outra não respondeu. Limitou-se a manter o rosto virado para a frente, como se não tivesse ouvido. Porém eu vi o leve enrijecer da mandíbula. Mas não respondeu.
Virou o rosto, afastando-se daquele foco, e então, num movimento que parecia leve, contudo preciso, elevou a voz, procurando os outros com um sorriso carregado daquele sarcasmo bem ensaiado, o mesmo que ela usava sempre que queria esconder pequenas implosões sob uma camada de charme.
— Ok, isto está a ficar solene demais para o meu gosto. Já me sinto num documentário sobre emoções reprimidas. — Fez uma careta exagerada, teatral. — Piper, tu disseste que tinhas feito uma playlist para noites “dramáticas, mas dançáveis", certo?
A ruiva levantou a cabeça, surpreendida com a súbita mudança de tom, animando-se de imediato.
— Fiz, sim senhora. E tenho orgulho nisso. — Apontou para o altifalante que permanecia no centro. — Está aí para quem quiser.
Chloe ergueu-se com um suspiro falso, abanando a cabeça como se carregasse a pressão do mundo.
— Ótimo. Porque honestamente? Esta música — fez um movimento vago no ar — está a soar como uma trilha sonora de um funeral emocional coletivo. Vou salvar-nos da depressão sonora antes que comecem a ler poemas à luz da lua.
O grupo dispersou-se em murmúrios ligeiros. Noah brincou com Jude sobre o seu gosto musical duvidoso, Ethan riu, e Amber reclinou-se na areia. A pressão emocional de há instantes parecia diluir-se lentamente na superfície das conversas banais. Mas a tensão entre Chloe e Sam permanecia suspensa no ar.
A loira passou por detrás de mim. Não apressada. Não descuidada. Com um ritmo cuidadosamente medido.
Inclinou-se ligeiramente, só o suficiente para que a sua voz me chegasse num sopro, baixo, quente. Não foi urgente. Nem invasivo. Foi íntimo no modo mais respeitador possível.
— Precisas de um minuto?
A pergunta não trazia pena. Nem insistência. Só presença.
E foi nesse pequeno instante que eu tive a certeza que ela sabia. Que tinha visto. Que me via. E que, do seu jeito, estava a cuidar.
Assenti com um movimento rápido, a respiração ainda presa a meio caminho.
Num movimento suave pegou altifalante e endireitou-se devagar, com a mesma naturalidade despretensiosa.
— Então vem comigo. Se as músicas forem horríveis, não quero ser a única a sofrer. — disse, num tom leve, e o rosto suavizou-se numa expressão quase descontraída.
Levantei-me devagar, o coração ainda apertado, a respiração desalinhada. Ela caminhava à frente, descalça, os pés a marcar a areia com passos seguros. E eu seguia. Não por impulso. Não por desejo. Mas porque, naquele instante, segui-la parecia a única forma de voltar a mim.
Acompanhei-a em silêncio. Os passos enterravam-se suavemente na areia fria. A noite estava mais escura ali, afastadas do círculo de luz onde os outros permaneciam, mas nem por isso menos nítida. O som das ondas soava mais presente, mais limpo, como se agora fosse permitido escutá-lo por inteiro.
Ela parou, pousou o altifalante, fingiu mexer no celular durante alguns segundos e depois abaixou-se, ajustando o volume com calma, como se fosse só isso que a trouxera ali. Não me olhou de imediato. Nem me chamou. Apenas ficou.
Sentei-me perto, mantendo alguma distância. A garrafa ainda na mão, o coração a tentar reencontrar o seu ritmo. Ficámos assim. Em suspensão. Só o som do mar e uma melodia suave a atravessar o espaço entre nós.
Sentou-se também. Não ao meu lado, mas suficientemente próxima para que a solidão se calasse. Cruzou as pernas, recostou-se, apoiando-se nas mãos, e observou o horizonte como se fosse a única coisa que lhe interessava.
Mas eu sabia. Sentia. Ela estava ali por mim.
Fechei os olhos por instantes. Inspirei devagar, sentindo finalmente o ar preencher os pulmões. O corpo ainda lembrava a vertigem, mas já não doía tanto.
Queria perguntar. Queria entender o que a movia. Porque há pouco ela jogava comigo diante de todos, testava-me, feria com doçura. E agora, era abrigo. Por quê?
Quando os abri, Chloe virou o rosto, como se tivesse esperado por isso. Estava tranquila. Sem cobrança. Sem pressa.
— Esta música é boa — murmurou, num tom neutro, quase etéreo.
Assenti, o mínimo possível, mas com sinceridade. Era boa. Era tudo o que eu precisava naquele instante.
Ela não disse mais nada. Apenas voltou a fixar-se no mar. O corpo descontraído. De vez em quando, os olhos deslizavam discretamente na direção do grupo. Como quem vigia distâncias. Como quem mede o espaço entre um gesto e uma interrupção.
E naquele recanto de sombra e som, senti algo dentro de mim aquietar. Não desaparecer. Não a se resolver. Mas assentar, como areia depois de uma onda forte.
O corpo deixava de se defender. A mente, ainda em vigília, começava a ceder. Não era paz. Mas parecia-se com um esboço dela.
Chloe não me tocou. Não se aproximou mais. E talvez por isso, estava mais próxima do que nunca.
Abri a garrafa de água e tomei um gole.
Ela falou, com um cuidado raro. O suficiente para ancorar.
— Quando era criança — começou, a voz baixa, como se falasse consigo mesma — costumava fingir que conseguia ouvir o mar a responder. Respostas em código morse. Só que em espuma.
Olhei de lado. Não tive coragem de encarar por completo. Um sorriso breve escapou-me, involuntário.
— Tinhas muito tempo livre? — perguntei, a voz ainda fraca, como se lutasse contra o que restava do torpor.
Ela riu. Um som pequeno, honesto.
— Demasiado. — Fez uma pausa curta, a atenção perdida na imensidão do mar — O meu irmão dizia que eu estava a treinar para ser uma espécie de maluquinha profeta. Mas às vezes — vacilou, os lábios prenderem-se por um segundo — às vezes sentava-se comigo. Fazíamos perguntas em voz alta. E depois fingíamos que ele respondia. Ficávamos a ouvir o silêncio, como se fosse a resposta certa.
— Isso é meio poético. — Comentei, sem pensar, mas sentindo-o.
— É só memória. — Respondeu, o tom traía-lhe a entrega.
Passou os dedos pela areia, desenhando formas vagas. Gestos pequenos, inconscientes, como se servisse para ordenar pensamentos que não cabiam em palavras.
— Sempre fui melhor a estar em silêncio perante os outros do que a falar. — Revelou, num tom imparcial, mas claro — Cresci a medir o que não era dito. A sentir os vazios. A identificar quando o ar mudava numa divisão. A minha mãe dizia que eu “adivinhava” o seu humor antes de ela própria saber. Mas não era magia. Era sobrevivência.
Fiquei quieta. O corpo atento. O coração a ouvir com mais partes do que só os ouvidos.
— Houve um tempo — continuou, agora com um fio de hesitação na voz — em que deixei de distinguir se era eu que estava assustada ou se estava só a absorver o medo dos outros. Quando o corpo aprende a viver em alerta, mesmo a ausência de som faz barulho.
Senti um nó no meu estômago.
Porque era-me familiar.
O pânico que não vem de fora. Que nasce por dentro.
— O que eu vi acontecer em ti há uns minutos atrás — continuou, quase num murmúrio, sem se fixar em mim — eu também já tive. Aquela sensação de que o ar encurta, de que o corpo vai colapsar, mas por fora está tudo intato.
As palavras pairaram entre nós. Sem vergonha. Só verdade.
— E como é que se… — comecei, mas a voz falhou. Deixando a pergunta no ar, incompleta.
Ela não respondeu logo.
— Não se cura como se cura um ferimento. — Expôs, tranquila, como se já tivesse ensaiado aquilo para si mesma muitas vezes — Aprende-se a reconhecer o que acende o fósforo. Os gatilhos. Aprende-se a dizer ao corpo que já não está no mesmo lugar, mesmo quando a cabeça insiste em voltar.
Olhou-me. O olhar firme, mas sem pressão.
— Vais precisar de aprender a fazer isso por ti. — Continuou — Porque ninguém vai conseguir estar sempre lá para apagar o incêndio. Mas podem, às vezes, sentar-se contigo enquanto ele acalma.
Naquele momento, não estava a tentar salvar-me. Estava a mostrar-me que eu podia aprender a salvar-me a mim mesma.
— Estás a sair-te bem, então. — A voz saiu-me frágil.
A expressão suavizou-se, deixando ver algo limpo.
— Tu também. — respondeu, pousando o queixo sobre o joelho.
Ficámos a olhar-nos, um segundo mais longo do que o costume. Nesse pequeno espaço coube tudo a dor, a ternura, e a pergunta que teimava em querer nascer.
Engoli em seco. A respiração era minha outra vez. E antes que a coragem me escapasse, deixei-a sair.
— Por que me observas tanto?
Ela não pareceu surpreendida. Nem desconfortável. Só me estudou, como se já soubesse que aquilo ia chegar. E, ainda assim, tivesse esperado que fosse eu a quebrar aquela espera muda.
Demorou um instante antes de responder. O azul-turquesa suavizou, como se o que estivesse prestes a dizer não fosse só escolha, fosse inevitável.
— Tu não és previsível. — Começou num sussurro, firme, íntimo. — A maioria das pessoas revelam-se cedo demais. São fáceis de ler, mesmo quando acham que se escondem. Mas tu, tu és outra coisa.
Pausou, a medir cada palavra como quem ensaia um toque
— És como um compasso irregular. Um som fora da métrica. E eu observo-te porque nunca sei o que vais fazer a seguir. Porque mesmo quando penso que já entendi, há sempre mais. Qualquer coisa que se esquiva. Que escapa. E eu tenho esta mania de querer entender o que não se deixa agarrar logo de início.
Uma curva discreta formou-se nos lábios, cheia de significado.
— Mas hoje, naquele momento, o teu silêncio gritou. Como se tudo em ti dissesse não olhes, e ao mesmo tempo implorasse por te ver. — Inspirou devagar, como quem se desarma só um pouco, o suficiente. — E eu vi. Vi de verdade. E foi impossível desviar.
O mundo esbateu-se um pouco. Tudo o resto silenciou.
— É por isso que te observo. Porque, mesmo quando te calas, estás sempre a dizer qualquer coisa.
Fez uma pausa breve.
— E o mais estranho — Fez uma nova pausa. Aproximou-se um pouco, não de forma óbvia, mas como quem inclina um pensamento para tocar outro. — É que, no meio de tanta coisa barulhenta, tu és o ruído que me faz querer ouvir melhor.
Não pressionava, mas também não recuava. Era firme sem ser invasiva. Quente sem ser exigente.
O coração batia com tanta força que quase abafava o som do mar. Eu não queria fugir. Mas também não sabia se devia ficar. Talvez fosse isso que ela via em mim: essa batalha constante entre o impulso de escapar e a ânsia de permanecer.
A boca entreaberta, como se uma resposta quisesse escapar, mas nenhuma palavra fizesse justiça ao que se agitava cá dentro.
Ela não se mexia. Nem eu. Qualquer gesto em falso e quebrávamos aquilo que, até ali, tínhamos construído no limite do inominável.
Mas o corpo tem vontade própria.
Baixei o rosto por um instante, e a minha mão, esquecida sobre a areia, roçou de leve na dela.
Não foi planeado. Nem pensado. Foi uma hesitação que tocou a pele.
Ela não recuou. Também não avançou. Permaneceu ali. Imóvel. Os dedos a meio caminho dos meus.
Senti o calor subir-me pelo braço. Lento. Intenso. Quase demais. Não era o toque que me desarmava. Era o que ele prometia: a ideia de que, se eu quisesse, podia ceder. Podia deixar-me ser tocada.
Podia jurar que a respiração dela mudou. Um ligeiro prender de ar, quase impercetível, contudo suficiente para o meu corpo registar. Ambas à beira de um passo, incertas da direção.
Foi então que ela fez algo que me apanhou desprevenida.
Discreto. Quase invisível.
Tirou algo do bolso do casaco. Um papel dobrado. Pequeno. As pontas gastas, dobras pelo tempo ou pelos dedos. Estendeu-mo sem dizer nada. Apenas me encarou, breve, intensa.
Peguei no papel com hesitação. Os dedos ainda trémulos, como se receassem que o gesto fosse uma armadilha emocional. Abri-o com cuidado.
Era uma folha arrancada de um bloco de notas, fina, ligeiramente amarelada. No centro, desenhado a caneta azul, havia um pequeno mar. Ondas simples, quase infantis. E por baixo, uma frase:
“Nem tudo o que te afoga é fundo.”
A caligrafia era inclinada, rápida, mas legível. Sem assinatura. Sem data. Mas o gesto, o gesto era íntimo. Quase íntimo demais.
O coração apertou-se. Não pela dor, pela ternura.
Ia levantar os olhos de novo para ela quando ouvi passos.
— Chloe. — A voz de Sam cortou o momento como uma brisa fria em noite quente. — Desculpa, dá para falarmos um minuto?
Ela virou-se, devagar. A expressão fechou-se ligeiramente. Não por dureza, mas como quem guarda algo precioso antes que se parta.
— Claro. — disse, com uma serenidade controlada. Depois olhou-me mais uma vez, como quem diz "isto não acabou aqui", antes de se levantar.
Fiquei ali. O papel entre os dedos. O mar azul, rabiscado em tinta e memória, continuava a ondular dentro de mim.
Fim do capítulo
Às vezes, o que não é dito grita mais alto do que qualquer confissão.
Maya bebeu. Chloe também. Mas será que isso basta para quebrar o silêncio entre elas?
Nem todas as verdades nascem sob o luar tranquilo. Algumas esperam a maré certa para rebentar com força.
E quando essa onda vier? Será libertação ou ruína?
Quem vai dar o primeiro passo? Quem vai afundar e quem vai ficar para ver o que emerge das águas revoltas?
Até ao próximo capítulo :D
P.S.: Não incentivo ninguém a beber e dirigir. Mesmo quando o coração está mais embriagado do que o copo.
Comentar este capítulo:
thays_
Em: 13/04/2025
Eu não imaginava que Maya tivesse tido alguma experiência como essa em seu passado. É nítida e compreensível a culpa que ela vem carregando ao longo desses anos pelo conflito entre sua religião e seus sentimentos.
Chloe vem me surpreendendo cada vez mais. De início ela passava um pouco a impressão de mutrir mais desejo do que sentimento por Maya. Agora, imagino eu por estarem se aproximando, parece que seus sentimentos estão crescendo. Ou talvez sempre estiveram lá, não sei. Simplesmente achei lindo o fato dela perceber as sutilezas das emoções conturbadas de Maya e lhe oferecer conforto e cuidado. Adoro quando as duas ficam a sós!
Amei a iniciativa de Maya de tentar se aproximar. Será que a bebida lhe deu um pouco de coragem que lhe faltava?
Parabéns mais uma vez pela escrita impecável e excelente!
Até breve!
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
asuna Em: 15/04/2025 Autora da história
Sim, a Maya carrega uma culpa silenciosa e a Laura foi apenas uma semente que deu origem a muralhas construídas com medo, vergonha e silêncio. Muralhas que começam a desmoronar com a presença da Chloe.
Confesso que adoro saber que Chloe está a surpreender! Sinceramente eu não queria ou quero que ela seja uma personagem previsível. Neste capítulo, tentei mostrar uma camada mais profunda . Agora se consegui? Espero sinceramente que sim! :)
Acho que, naquele momento, a Maya que vive sempre dividida entre os seus dilemas internos, sentiu naquele gesto um espaço de amparo. E Chloe, com toda a sua presença instintiva, quase enigmática, tornou-se essa figura que a Maya ainda não consegue decifrar totalmente. Talvez por isso, levada por essa curiosidade emocional e por um desejo de entender quem é essa pessoa, a Maya simplesmente deixou-se levar. E, por um instante, não resistiu.
Obrigada mais uma vez pelo carinho e pela reflexão sobre o capitulo. Adoro saber o que te toca na história.
Até breve!