Capítulo 9
Incorporei as caminhadas na minha rotina. Acordava e pintava um pouco, até a hora de preparar meu almoço. Depois que eu comia, descansava por meia hora e voltava a pintar. Para o meu alívio, minha criatividade tinha aflorado nos últimos dias. E quando isso acontecia eu precisava aproveitar. Durante a tarde fazia algumas tarefas domésticas, varria, colocava a roupa para lavar, estendia as já lavadas no varal…
A caminhada passou a ser uma recompensa no fim do dia. Quando as coisas começavam a ficar estranhas na minha cabeça — aquela sensação de sufocamento ameaçava surgir de novo — eu me lembrava que iria sair de casa e caminhar um pouco ao ar livre.
Voltei a encontrar a moça que me deu carona. Ciça. Agora eu sabia o nome dela. Na quarta, eu tinha acabado de pisar na varanda quando a vi passar em direção ao parque. Corri de volta para a sala, troquei de roupa, calcei meu tênis, peguei o fone, e desci as escadas. A alcancei quase na chegada do parque. Caminhamos conversando sobre tudo e, mais uma vez, me surpreendi. Tínhamos muitas coisas em comum. A conversa fluiu com muita facilidade. Seria legal fazer novos amigos ali, para além da minha prima.
No dia seguinte não pintei, não criei nada. Tirei o dia para fazer o que eu considerava a parte chata do meu trabalho. Divulguei quadros, alimentei minhas redes sociais profissionais com fotos e anúncios, fiz um banner com meus contatos para divulgar meus serviços de fotógrafa. Érica tinha pedido para que eu fizesse e mandasse para ela. Queria postar nas redes sociais e pedir para os amigos também divulgarem. No fim da tarde fui para o parque. Ciça chegou depois de mim. A vi quando olhei para trás. Ela sorriu e acenou. Eu parei para esperá-la. E como nos outros dias, caminhamos conversando.
— Eu vi que Érica postou hoje uma propaganda do seu trabalho…
Eu acenei com a cabeça:
— Ela deu a ideia de divulgar… pras pessoas conhecerem.
Ciça sorriu e ofereceu:
— Se quiser me passar, eu posto também.
Agradeci, desbloqueando meu celular, abrindo o teclado e passando para ela:
— Salva seu número. Aí eu te mando…
Uma hora depois estávamos saindo do parque. Nos despedimos em frente ao apartamento. Entrei em casa e fui direto tomar um banho. Preparei a comida ouvindo música. Quando sentei para comer, peguei o celular. Me lembrei de mandar o banner para Ciça. Abri o aplicativo e procurei o nome dela. Não achei. Entrei na agenda. Letra “C”… Nada. Achei super estranho, ela mesma tinha salvado. Procurei de novo. Ciça… só pode ser apelido de Cecília. Mas não tinha nenhuma Cecília nos meus contatos. Achei que estava louca. Desisti de procurar. Talvez ela tenha achado que salvou, mas não salvou…
Quando cheguei no parque na sexta, encontrei com ela. A vi ainda longe, mas vindo na minha direção. Esperei parada. Quando ela se aproximou, falei:
— Você não salvou seu número ontem?
Ela fez uma cara de confusa:
— Salvei.
Eu peguei o celular e entrei de novo nos contatos:
— Não achei…
Estendi o celular para ela, que com poucos toques na tela, me estendeu de volta:
— Aqui…
Olhei para a tela. Maria Cecília.
— Seu nome é Maria Cecília? Jamais acharia…
Ela riu comigo:
— Esqueci de te falar que salvei assim… É o hábito de sempre escrever meu nome completo.
Voltamos a andar, lado a lado. Caminhamos por mais de uma hora, depois descemos. Nos despedimos em frente à minha casa. Eu subi o primeiro degrau quando ela perguntou:
— Quer ir no gigante hoje? O pessoal tá combinando de ir…
O “pessoal” provavelmente eram os amigos dela, que conheci na outra noite:
— Que horas?
Voltei para a calçada quando ela respondeu:
— Umas oito… oito e meia…
Eu balancei a cabeça:
— Tá bom!
— Eu passo aqui pra te buscar… Chama Érica…
E finalmente nos despedimos.
*****
Não era pra eu ter chamado! Era? Talvez sim… Não tem nada demais.
Andei o restante do caminho até minha casa me corroendo de dúvidas. Fiquei receosa de o meu convite ter parecido… sei lá… um convite com segundas intenções. Mas não foi. Certo? Ela era uma moça muito legal. E eu quis convidá-la, só isso. Ela já conhecia meus amigos. Depois que a frase “passo para te buscar” saiu da minha boca, me apressei em falar de Érica. Foi uma coisa inconsciente, como se eu estivesse fazendo algo errado e quisesse corrigir.
Estava entrando no portão de casa quando meu celular vibrou. Mensagem de um número desconhecido. Mas que eu soube à quem pertencia assim que abri. Ampliei a foto de perfil, onde Marcela aparecia sorrindo. Ela havia me mandado o banner e logo abaixo a mensagem “Te espero às oito. Érica não vai poder ir”. Senti um frio na barriga. Como se aquilo fosse algo extraordinário. Mas não era. Eu sabia que não era.
Quando fiquei pronta, mandei mensagem para Isabela e Léo, que também iriam comigo. Quando eles disseram que estavam prontos, também mandei mensagem para Marcela:
“Pronta?”
Ela demorou uns cinco minutos para me responder:
“Me dá mais dez minutinhos?”
Repliquei na mesma hora:
“Claro, sem pressa. Quando estiver pronta me avisa”
Isabela e Léo começaram a mandar mensagens no grupo, perguntando por que eu estava demorando. Resolvi sair de casa e passar para buscá-los, com o carro quase parando. Primeiro peguei Isabela. Depois fui em direção à casa de Léo.
— Ciça, seu carro tá com problema?
Franzi a testa e olhei para ela, sentada ao meu lado:
— Não, por quê?
— Por que você tá andando a dez por hora então?
Eu não queria falar que estava esperando Marcela. Não queria falar que ela iria com a gente como se isso fosse uma grande coisa. Queria falar de forma banal. Como se não fosse nada demais. Ah, Marcela vai com a gente. Que Marcela? Ué, a prima de Érica. Assim, normal, como deveria ser. Pretendia avisar que pararia para pegá-la quando estivesse quase chegando na casa dela. Eu conhecia muito bem os meus amigos.
— Só tô fazendo hora…
Não precisei olhar para Isabela para saber a cara confusa que ela tinha feito:
— Pra quê?
Buzinei em frente à casa de Léo. Enquanto manobrava o carro, falei da forma mais blasé que consegui:
— Pra esperar Marcela. Ela vai com a gente.
— Quem?
Não olhei para ela:
— Marcela… a prima de Érica.
Ela ainda parecia confusa:
— Érica pediu carona?
— Não.
Instantes de silêncio.
— Como ela sabe que a gente tá indo pro gigante, então?
Minha voz deu uma falhada:
— Eu convidei.
Isabela gritou no meu ouvido:
— O quê? Como assim?
A voz dela estava esganiçada:
— Você convidou? Quando? Por quê? O que eu perdi, Maria Cecília?
Antes de eu responder, Léo abriu a porta do carro:
— Que histeria é essa?
Isabela virou para trás, quase ficou de joelhos no banco:
— Ciça convidou Marcela pra ir com a gente.
Eu acompanhei a conversa dos dois apenas ouvindo, sem olhá-los.
— Que Marcela?
— Prima de Érica.
— Convidou como?
— Não sei, ela não fala.
— Érica também vai?
— Não…
Léo se inclinou para frente, no vão entre os bancos:
— De onde você tem intimidade com ela?
Eu me virei de lado:
— Ela também caminha no parque. Estive com ela hoje e falei que nós iríamos.
Foi Léo quem perguntou:
— Só isso? Você chamou a menina do nada? Vocês não têm intimidade pra isso… E você não tem essa desenvoltura toda…
Eu balancei a cabeça:
— A gente já conversou algumas vezes no parque.
Os dois soltaram em uníssono:
— Huuuum…
Eu disse que conhecia meus amigos.
— Só porque eu sou lésbica, não posso ter amizade com uma mulher? Eu tô com segundas intenções com você então, Isabela?
Os dois riram.
— Comigo não, mas com outra lésbica… sei lá, né.
Eu olhei totalmente para ela:
— Como assim outra lésbica?
Léo quem perguntou:
— Ué, ela não é sapatão?
Me virei para ele:
— De onde vocês tiraram isso?
— Todo mundo tá comentando... que quando ela era adolescente teve um trelelê na família… A avó não aceitava… E ela e a família até pararam de vir aqui.
Marcela lésbica? Não que isso fosse algo inacreditável ou impossível. Só que eu não queria pensar nisso como uma hipótese real. Era mais fácil que ela fosse hétero. Assim continuaria sendo uma paixão platônica, impossível. Aquela informação me pegou desprevenida.
Meu celular vibrou. Era ela. Estava me esperando. Dirigi com Léo e Isabela tagarelando no meu ouvido. Quando parei em frente à casa dela e buzinei, praticamente implorei para meus amigos:
— Sem gracinhas, pelo amor de Deus.
Ela desceu as escadas, Isabela abriu o vidro do carona:
— Oi!
Léo abriu a porta de trás e ela entrou:
— Boa noite!
Dirigi o mais rápido que pude. Quanto menos tempo ficássemos todos dentro daquele carro, menor a chance de algum comentário desnecessário sair da boca dos meus amigos.
Chegamos e pegamos uma mesa. Isabela foi atrás do que ela achava o mais importante: a cerveja. Voltou com um litrão e quatro copos. Brindamos. Eu ainda presa na informação que tinha recebido. Marcela é lésbica.
— Vamos pedir um petisco?
Concordei automaticamente. Eles conversavam. Marcela era muito boa em puxar e manter assuntos. Percebi que não era exclusivamente comigo. Ela se dava bem com qualquer pessoa. Tinha repertório para qualquer conversa.
Quando a segunda garrafa de cerveja chegou na mesa, ela serviu os copos. Quando chegou no meu, impedi que o enchesse.
— Já parou?
Dei de ombros:
— Daqui a pouco eu volto…
Ela sorriu. Para mim.
— Você não gosta de beber? Na outra vez também não bebeu.
Eu sorri um pouco:
— Eu não gosto do gosto de cerveja.
— Gosta do que, então?
Eu estava gostando daquele foco em mim? Não sei.
— Ah, drinks, vinho… Coisas não tão amargas.
O sorriso dela aumentou. Concordou com a cabeça, como quem diz “entendi”.
Ricardo chegou com outros dois amigos. Sentaram com a gente. Só então me lembrei de perguntar:
— Por que Érica não veio?
Marcela revirou os olhos:
— O marido dela não quis vir, eu acho.
Henrique era três anos mais velho que eu. Nunca fui muito com a cara dele. Sempre o tinha achado meio babaca. Quando ele e Érica ainda namoravam, todo mundo sabia que ele a traía a torto e a direito. Fiquei genuinamente triste por ela quando soube que iriam se casar. E depois de casados, nada mudou. Todo mundo sabia que ele tinha uma amante, que morava em outra cidade.
Mas eu não falaria nada disso para Marcela:
— Entendi…
Voltamos para a conversa da mesa. O assunto era eleição. De novo.
— Você vai trabalhar, Ciça?
— Sim.
— Você vota no Rio, Marcela?
Ela respondeu depois de um gole na cerveja:
— Voto…
Ricardo se inflamou ao falar:
— Gente, eu já escolhi minha roupa para ser presidente de seção. Eu vou estar um luxo, tá?
Isabela fez uma cara preocupadíssima:
— Ai, eu não sei ainda o que vou usar pra votar.
Olhei para Marcela e vi a confusão na cara dela. Falei para a mesa:
— Por que vocês gostam de fazer da eleição um desfile? Eu vou de jeans, blusa e tênis.
Ricardo olhou para mim com uma cara de extremo desdém:
— Ai, Maria, você é uma sapatão muito básica…
Eu gelei. Involuntariamente olhei para Marcela, que também me olhava. Quando nossos olhos se cruzaram, eu desviei. O assunto continuou, mas não prestei mais atenção. Agora ela sabia. Isso mudaria alguma coisa? Não consegui mais falar com ela, diretamente, pelo resto da noite. Quando fomos embora, só Léo e Isabela falavam dentro do carro. Parei em frente ao apartamento de Marcela. Ela se despediu de uma maneira geral. Não falou nada comigo. E foi embora. Eu segui com o carro. Mas minha cabeça ficou ali com ela.
Fim do capítulo
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AlphaCancri Em: 12/04/2025 Autora da história
Concordo plenamente com você, viu? rsrs
Te espero terça :)