Capítulo 8
Ela se lembrou de mim. Entrei em casa presa nesse pensamento. A voz de Marcela ainda nítida na minha cabeça:
“Você não foi caminhar hoje”.
Então ela me viu de verdade no parque. Ela lembrou do meu rosto.
Quando ainda estávamos na mesa, não falei com Marcela diretamente em momento algum. Só estávamos participando da conversa em grupo.
Ofereci a carona para as duas sem olhá-la, tentando parecer o mais natural possível. Mas fiquei estranhamente nervosa. Sem saber se queria que elas aceitassem ou não. Claro que não era nada demais. Só uma carona. Inclusive a casa em que ela estava morando era na minha rua, era caminho. A dela ficava no início, enquanto a minha era no final. Mesmo assim, aquela sensação de nervosismo, de ansiedade, antes de um grande acontecimento. Eu conhecia Érica, óbvio, mas não era amiga dela. Conhecia como conhecia todo mundo naquela cidade. Estudamos nos mesmos colégios. Frequentamos os mesmos lugares. Já conversamos em grupos de amigos por diversas vezes. Érica sempre foi simpática e extrovertida. Assim que entramos no carro ela puxou assunto, para meu alívio. Conversamos coisas banais. A prima dela só entrou na conversa quando ela falou do frio. Pelo retrovisor eu conseguia ver o rosto dela. Sorriu. Eu senti um frio na barriga. O olhar dela encontrou o meu.
“Você não foi caminhar hoje”.
Já tinha colocado meus pijamas. Parei em frente ao espelho do banheiro e me encarei:
— Não começa a criar fanfic nessa sua cabeça, pelo amor de Deus! Não aconteceu nada. A menina só foi simpática com você.
Depois de ter me dado um sermão, com o dedo em riste, escovei os dentes e fui para a cama.
Fiquei todo o domingo e a segunda-feira, até o fim do expediente, ansiosa. Saí do trabalho antes de o relógio marcar cinco em ponto, deixando Diego e Jussara abismados. Em casa, tomei um banho, escolhi com cuidado a roupa que iria vestir. Perdi muito tempo para prender meu cabelo. Não ficava bom. Não ficava como eu queria. Não podia ficar de qualquer jeito. Lanchei com pressa. Saí de casa e caminhei até o parque, subindo pela minha rua, pois sabia que passaria em frente à casa dela. O fone estava no meu ouvido, mas eu não tinha colocado nada para tocar. Desacelerei quando passei, do outro lado da calçada, em frente ao apartamento. Olhei de soslaio para a varanda dela. Vi uma cortina esvoaçando. Vi o que parecia uma tela em um cavalete. Mas não a vi. Continuei andando até chegar no parque. Dei voltas e voltas. Olhava para trás a cada dois minutos, tentando ver se ela havia chegado. Perdi a noção do tempo, não sei o quanto demorou até eu me deparar com ela, andando na minha frente. Fiquei sem saber o que fazer. Acelerar? Diminuir o passo para que ela se aproximasse de mim por trás? Correr e passar por ela, para que soubesse que eu estava ali? Enquanto eu torrava meu cérebro pensando e não chegando à conclusão alguma, demos umas quatro voltas assim, ela na minha frente, sem me ver.
Até que ela parou. Sentou em um dos bancos espalhados pelo caminho, com uma garrafa d’água na mão. Eu fiquei nervosa. O que eu ia fazer? Só cumprimentá-la rapidamente? Passar por ela com um aceno de cabeça e um “boa tarde”? Eu deveria parar? E falar o que? Quanto mais eu pensava, mais perto eu ficava. Mesmo tendo desacelerado o ritmo, eu estava perto demais. O que eu faço? O que eu faço? Pensei em passar rápido, aumentando meus passos, só dizer um “oi” de longe. Vou parecer sem educação? Cheguei a poucos passos dela. E se eu começar a correr? Não a olhava diretamente ainda. Meus olhos estavam fixos no chão. Vi que estava muito perto quando o tênis dela entrou no meu campo de visão. Apertei meu fone e parei a música. Não tinha jeito, precisava olhar para ela. Quando ergui meus olhos ela me olhava. Sorriu. O sorriso largo.
— Venceu a preguiça hoje?
Sorri de volta. Parei de andar. Mas fiquei sem jeito. Não sabia o que fazer com as mãos:
— Venci… Segunda-feira… não tem desculpa.
Achei péssimo o que eu falei. Ela continuou sorrindo. Não sabia se eu voltava a andar ou permanecia parada na frente dela. Falei a primeira coisa que me veio à cabeça:
— Você já acabou?
Péssimo!
Ela aumentou o sorriso:
— A caminhada? Ainda não… Só fiz uma pausa.
Ergueu a garrafa:
— Me hidratando um pouco.
Eu sorri e balancei a cabeça. Apontei para frente e falei:
— Eu já tô terminando…
Voltei a andar devagar e acenei para ela, que sorriu para mim e acenou de volta.
Assim que virei totalmente para frente e acelerei o passo, senti meu rosto queimar de vergonha. Me achei idiota. Achei péssimo tudo que falei. Péssimo. Quando cheguei de novo no ponto onde ela tinha sentado, já não estava lá. Caminhei em direção à saída e fui embora.
Eu estava ficando preocupada. Pensava demais nela. Criei expectativas irreais. No meio do trabalho me pegava olhando fixamente para tela, a cabeça em outro lugar. Pensei em não ir caminhar na terça. Mas acabei indo. E como no dia anterior, ela chegou depois de mim. Dessa vez dei de cara com ela entrando no parque. Acenou para mim. Eu acenei de volta sem parar de andar. E essa foi nossa única interação naquele dia. Não vi quando ela foi embora.
Na quarta, estava quase chegando no parque e tive a impressão de ouvir alguém me chamando. Tirei um dos fones do ouvido:
— Ciça…
Olhei para trás e quase não acreditei que era ela. Sorriu e andou mais rápido, até chegar ao meu lado:
— Te vi passando em frente à minha casa.
Eu estava nervosa:
— Ah sim…
— Posso subir com você?
Quase engasguei com minha própria saliva:
— Claro…
Aja naturalmente. Não está acontecendo nada.
— Érica me disse que esse é o único lugar da cidade pra se exercitar…
Enquanto eu precisava me concentrar para respirar, andar e formular uma frase, Marcela parecia muito à vontade conversando com uma “desconhecida”.
— Ao ar livre sim. E tem a academia…
Chegamos na entrada do parque:
— Odeio academia.
Eu sorri e concordei:
— Eu também.
Entramos e seguimos pela direita. Ela continuou ao meu lado. Eu não sabia o que fazer. Ela vai caminhar comigo? Mexi no meu celular, apertando coisas aleatórias na tela, como se estivesse fazendo alguma coisa, mas não estava.
— Você se importa se eu caminhar com você?
Olhei para o chão:
— Claro que não.
E não sabia o que falar. Eu tinha receio de perguntar alguma coisa e parecer invasiva. De dar alguma “bola fora”. De parecer chata ou desinteressante. Meus fones continuavam no meu ouvido, mas sem música. O dela estava pendurado no pescoço.
— Você sempre morou aqui?
Graças a Deus ela não é um “bicho do mato” que nem eu.
— Sim. Nascida e criada.
— E você gosta?
Eu suspirei e sorri levemente:
— Na verdade, é a única vida que eu conheço. Quando era mais nova já quis morar na cidade grande, mas hoje, me acostumei com isso aqui.
Ela balançou a cabeça. Eu arrisquei:
— E você? Sempre morou no Rio?
Ela não pareceu se importar com a pergunta:
— Nasci no Rio. Depois morei aqui por uns três anos, quando era criança. E aí voltamos para o Rio.
Emendei outra pergunta, uma dúvida genuína:
— E você veio pra ficar?
Ela demorou um pouco para responder. Dessa vez pareceu incomodada. Olhou para o chão e depois para frente:
— Não… Não pretendo ficar. Só estou passando uma temporada, para colocar algumas coisas no lugar.
Senti que o assunto era mais delicado. Não perguntei mais nada. Ela falou espontaneamente:
— Meu pai morreu no ano retrasado… Aí as coisas ficaram um pouco complicadas pra mim.
Fiquei sem saber muito bem o que dizer:
— Sinto muito.
Ela não falou nada de imediato. Depois perguntou:
— Você o conheceu? Meu pai…
Não fazia ideia.
— Acho que não… Qual era o nome dele?
— Mauro. Ele vinha aqui mais do que eu.
Senti um pouco de melancolia na voz dela quando completou:
— Ele gostava daqui.
— Ele era irmão da sua tia? Ou do seu tio?
— Da minha tia... Tia Rita é irmã do meu pai.
Não me lembrava dele:
— Talvez eu já o tenha visto por aqui… Mas não tô me lembrando do nome.
Ela mudou de assunto repentinamente, quando passamos em frente ao bar do gigante, fechado:
— Vocês vêm pra cá todo fim de semana?
Eu demorei um pouco a entender do que ela estava falando:
— Quase sempre. É o único lugar melhorzinho da cidade.
Ela sorriu. Aquele sorriso.
— Érica disse a mesma coisa.
Eu não estava contando as voltas. Conversamos sobre várias outras coisas. Ela perguntou com o que eu trabalhava. E quando ela me disse que era artista, me senti uma pessoa absurdamente sem graça. Falamos sobre trabalho, faculdade, cursos, signos, filmes, música, séries, livros… E para minha total surpresa, tínhamos gostos em comum. Eu acho que ficaria dando voltas e voltas naquele parque até meu corpo se desintegrar. Não queria ir embora. Mas ela pegou o celular e falou:
— Nossa, ficamos aqui por quase duas horas.
Tentei não demonstrar que, por mim, ficaríamos por mais duas:
— Caramba, nem percebi.
— Você vai ficar ou vai descer?
Fingi uma cara de esgotamento:
— Por hoje já deu.
Descemos ainda conversando, até a casa dela. Nos despedimos sem contato físico.
— Amanhã você vai?
Respondi que sim.
— Te encontro, então.
Um aceno de mão e ela subiu as escadas. Eu continuei descendo a rua, em direção à minha casa. Infelizmente Marcela era uma pessoa muito legal. Infelizmente nossa conversa fluiu com facilidade. Infelizmente eu gostei da personalidade dela. Infelizmente, porque isso tudo só piorava minha situação.
Fim do capítulo
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