Capítulo 7
Passei o fim de semana dentro de casa. Pintei como se minha vida dependesse daquilo. E meio que era essa a minha sensação. Preciso pintar, preciso criar. Não só por precisar disso para extravasar minhas emoções, mas também por me pressionar a trabalhar e fazer algum dinheiro. Sair daquele lugar. Voltar para o Rio.
No domingo à noite Érica veio com Luize na minha casa. Conversamos por algumas horas, enquanto Luize pintava folhas em branco com um pincel e tintas que peguei para ela brincar. Em algum momento eu perguntei o que se fazia naquela cidade para espairecer a cabeça, relaxar… Minha prima riu como se eu tivesse contado uma piada muito engraçada.
— Eu não tenho tempo nem para pensar em relaxar, Marcela…
Eu insisti:
— Tá… Mas se você tivesse? O que você faria?
Érica balançou a cabeça de um lado para o outro, sorrindo:
— Sei lá… Ver um filme?
Não era isso que eu queria ouvir. Ver um filme eu conseguiria em qualquer lugar. Queria saber o que eu poderia fazer de diferente ali:
— Mas… alguma coisa fora de casa? Pra onde você iria, por exemplo?
Ela deu de ombros:
— Gigante?
Eu deixei meu corpo recostar no sofá. Não é possível que não houvesse nada, absolutamente nada, para se fazer ali:
— Alguma coisa que não envolva álcool?
Érica riu de novo:
— O único lazer desse lugar é beber…
Fechei meus olhos. Um pesadelo. Não que eu não gostasse de sentar e beber com meus amigos. Mas era impensável aquele ser o único lazer possível:
— Um lugar para caminhar? Para se exercitar, não tem?
— Tem o parque.
Voltei a abrir meus olhos. O parque? Onde eu já tinha aprendido que ficava o bar do gigante. O único bar possível da cidade.
— As pessoas vão pra lá caminhar, correr…
Não era o ideal. Mas era alguma coisa.
Resolvi experimentar, precisava sair um pouco de casa e me exercitar. Preencher meu tempo. Ocupar minha cabeça. Na segunda-feira, quando o sol já estava quase se pondo e eu já tinha terminado minha cota de pintura do dia, resolvi ir até lá. Já tinha aprendido o caminho. Como se fosse muito difícil. Como se a cidade fosse muito grande. Cheguei na entrada e percebi que realmente algumas pessoas estavam ali. Não muitas. Comecei a andar pelo caminho asfaltado. Cumprimentei algumas pessoas que passaram por mim. Coloquei meu fone, uma playlist relaxante e não sei quanto tempo fiquei ali, rodando e rodando, vendo a mesma paisagem, as mesmas pessoas passando por mim. O bar do gigante ao fundo, fechado. Quando começou a escurecer, só restavam eu e duas moças que caminhavam juntas. As luzes se acenderam em postes ao longo do asfalto. Achei que já estava bom para o primeiro dia e voltei para casa.
No dia seguinte, fiz a mesma coisa. Esperei o sol estar quase se pondo e fui para o parque. Algumas pessoas passaram por mim, dei um boa tarde automático. Daquela vez cronometrei o tempo. Uma hora caminhando e voltei para casa. Na quarta-feira, a mesma coisa. Era instigante como a rotina naquele lugar se firmava facilmente. Os mesmos caminhos. As mesmas pessoas. As mesmas paisagens. Parecia que nada acontecia. Nada mudava.
Só na sexta-feira, meu quinto dia caminhando, percebi que eu era a única que caminhava na contramão. Entrava no parque e seguia pela esquerda, enquanto todo o resto parecia seguir pela direita. Mudei minha rota. Caminhei pela direita. Me adaptei. No sábado percebi que o fluxo de pessoas caminhando estava menor. Mas o fluxo de pessoas no bar, que dessa vez estava aberto, era considerável. Quando cheguei em casa, fui direto para o chuveiro. Depois fiz um sanduíche com coisas que ainda tinha na geladeira. Tia Rita tinha chegado com três sacolas de compras no início da semana. Fiquei morta de vergonha. Tentei dizer que não precisava, mas ela fez questão.
Estava deitada com o notebook aberto no meu colo, colocando anúncios online dos quadros que tinha finalizado, quando Érica me mandou um áudio.
“Vamos no gigante?”
Eu não sabia se queria ir. Estava muito confortável na minha cama. Olhei o relógio. Quase nove da noite. Outro áudio da Érica:
— Luize vai dormir com minha sogra hoje. Henrique não está em casa. Vou te apresentar às minhas amigas.
O filho da puta do Henrique.
Bom, se ele não dava valor à minha prima, que ela se desse valor então. Respondi e levantei para trocar de roupa. Alguns minutos depois ouvi Érica me chamar. Apareci na varanda e vi que ela estava em pé no meio da rua.
— Tô descendo.
Quando cheguei na calçada ela falou se desculpando:
— Henrique saiu no carro e Evandro pegou o do meu pai. Vamos ter que ir andando.
Para mim não tinha problema. Não achava o parque tão longe assim. Ela é que achava. Fomos caminhando devagar e conversando, até chegar no bar. A mesa para qual caminhamos estava cheia. Na verdade, eram várias mesas juntas. Nos sentamos e Érica me apresentou. Encheram um copo de cerveja e passaram para mim. Brindei com pessoas que não gravei o nome. A conversa na mesa girava rápido. Muitos assuntos. De alguns eu participava um pouco. Me perguntaram muitas coisas. Duas pessoas da mesa também moravam no Rio, mas vinham sempre ver a família. Conversamos sobre bares e eventos que costumávamos frequentar por lá. Às vezes o assunto virava uma fofoca sobre a vida de alguém que eu, obviamente, não conhecia. Me peguei rindo várias vezes de coisas que alguém falava. Quando Érica disse que iria ao banheiro, eu fui junto. Também estava apertada. Ela foi primeiro e eu fiquei vigiando a porta, que não trancava. Depois invertemos. Quando saí do banheiro, que era um cubículo na parte de trás do bar, minha prima sorriu para mim:
— Está gostando?
Eu sorri de volta e fui sincera:
— Seus amigos são muito divertidos.
O que tinha me surpreendido um pouco. Não sei exatamente o que eu esperava. Acho que tinha um preconceito velado, bem lá no fundo, de que seriam todos, sei lá… caipiras?
— Não são toooodos meus amigos, amigos mesmo, sabe? Mas aqui todo mundo se conhece… E aí um vai puxando o outro pra mesa… E vira esse grande mesão. Mas minhas amigas de verdade são Letícia e Maitê.
As duas moças que estavam sentadas ao nosso lado.
— O que você achou delas?
Não que eu tivesse tido tempo de formar alguma opinião sólida. Mas eu estava realmente me divertindo:
— São ótimas.
Voltamos para a mesa. Mais uma rodada de cerveja. Chegaram duas porções de petisco, que rodaram a mesa, o prato passando de mão em mão.
O som da sirene de uma ambulância ao longe fez a mesa toda ficar em silêncio. Todo mundo se alarmou. Eu não entendi nada. Se fosse me alarmar cada vez que uma sirene passasse pelas ruas do Rio… Mas ali era diferente. Não era comum. Se tinha uma ambulância, alguma coisa grave poderia ter acontecido com alguém que todos ali conheciam. O barulho aumentou, todos no bar pareceram congelar por um momento, até que o barulho foi ficando mais baixo, mais baixo, e desapareceu. E o momento de congelamento passou, todos voltaram a falar ao mesmo tempo:
— Ih, o que será?
— Era ambulância ou polícia?
— Deixa eu ver se alguém colocou alguma coisa no grupo.
E aos poucos a conversa foi voltando ao normal.
Quando eu já tinha até esquecido que uma ambulância tinha passado por ali, alguém anunciou:
— Foi um acidente na estrada, depois do sítio de Guido.
Quem é Guido?
— Carro?
— Alguém conhecido?
— O que aconteceu?
Até a pessoa informar de novo:
— Um carro saiu da pista e bateu no barranco. Parece que o motorista dormiu. Mas tá tudo bem, levaram pro hospital, nada grave.
E vida que segue. Assunto que muda. Como se nada tivesse acontecido.
Não vi a hora passar. Já era quase duas da manhã quando fechamos a conta. O que também me surpreendeu porque, pelo tempo que ficamos ali bebendo e comendo, achei que o valor seria bem mais alto. Outra coisa que aprendi com o tempo: o custo de vida era imensamente mais baixo.
Nos despedimos enquanto cada grupo se encaminhava para um carro. Alguém perguntou:
— Estão a pé, Érica?
Minha prima disse que sim.
Uma moça ofereceu:
— Querem carona?
Érica aceitou. Caminhei atrás dela até o carro, que a dona destravou no alarme. Érica entrou no carona. Eu entrei atrás. Ainda na mesa, eu tinha reconhecido a moça das caminhadas no parque. Passei por ela alguns dias. Reparei também que ela era a única que não estava bebendo cerveja.
— Agora esfriou, né? Ainda bem que você tá de carro… Marcela deve estar morrendo de frio, não tá acostumada…
Érica falou olhando para trás, para mim. Encontrei o olhar da motorista pelo retrovisor. As duas esperando eu falar alguma coisa:
— Pois é… de repente parece que virou inverno.
Outra coisa que eu demoraria um pouco a me acostumar. Exceto no verão, as noites eram sempre frescas, quase frias. Mesmo que durante o dia fizesse calor.
Com o silêncio que pairou, tentei ser simpática:
— Você não foi caminhar hoje…
Busquei de novo o olhar da moça pelo retrovisor. Ela pareceu meio surpresa com minha frase:
— É, eu não costumo ir sábado. A preguiça me vence.
Eu sorri. Acho que ela sorriu de volta. E chegamos. Ela parou em frente ao apartamento. Ninguém disse nada, ela apenas parou. Então já sabia que eu morava ali. Eu agradeci pela carona, minha prima fez o mesmo, também abrindo a porta.
— Quer que eu te deixe em casa, Érica?
— Não precisa… Vou dormir na minha mãe hoje. Valeu mesmo, Ciça.
Ciça. Estava tentando lembrar o nome dela, mas fui apresentada a tanta gente naquela noite…
— Boa noite!
Ela saiu com o carro. Minha prima também se despediu de mim e foi caminhando até a casa dos meus tios. Eu subi as escadas. Entrei em casa e, pela primeira vez desde que tinha ido morar ali, não me senti mal. Nenhum aperto no peito. Nenhum desespero. Nenhuma sensação de angústia. Troquei a roupa pelos pijamas. Deitei, verifiquei as notificações no meu celular. Virei para o lado e adormeci quase que instantaneamente.
Fim do capítulo
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MalluBlues
Em: 06/04/2025
Ai ai... queria que a Ciça tivesse deixado a Érica em casa e que a Marcela passasse pro banco da frente. ![]()
AlphaCancri
Em: 08/04/2025
Autora da história
Quem sabe em futuro próximo, hein? hahah
Ou será que Ciça ainda vai ter que remar muito pra conseguir alguma coisa com Marcela?
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AlphaCancri Em: 08/04/2025 Autora da história
Eu me lembro de você comentando as outras histórias, por isso agradeci por acompanhar mais essa :)
Nossa, fico muito feliz e honrada em estar no seu top5 do site, muito legal saber que curtiu as ideias da minha cabeça hahah
Obrigada, mesmo!
Ah e o nome que uso aqui é de uma estrela da constelação do meu signo rs