capitulo quatro: dia de cão
CAPÍTULO 4. DIA DE CÃO.
Eu estava no escritório de Roberta, ela havia me chamado para uma pequena reunião e eu estava relutante quanto a sua posição em relação aos ar-condicionado do escritório.
— Eu entendo sua preocupação, Anna, mas precisamos ser racionais com os gastos — Roberta disse, cruzando os braços e se recostando na cadeira.
Respirei fundo, contando mentalmente até três antes de responder.
— Não é só um gasto, Roberta. É investimento no bem-estar dos funcionários. Como você espera que eles tenham um bom desempenho se estão suando dentro do escritório?
— O ar-condicionado está funcionando, só não está tão forte como antes. Estamos passando por uma crise climática — Roberta rebateu, mantendo o tom calmo.
— Ele não está dando vazão! — Gesticulei, já perdendo a paciência. — Você já viu o estado da equipe depois do almoço? Parece que saíram de uma sauna! Isso afeta a produtividade, a disposição... Sem contar que é desumano deixar as pessoas trabalhando assim. Não ficaria bem para a Florence-Baldez levar um processo trabalhista.
Roberta suspirou, esfregando a testa.
— Eu entendo, de verdade. Mas mandar trocar todos os aparelhos agora... Você sabe quanto isso custa?
Cerrei os dentes. Claro que sabia. A empresa de climatização já havia me passado o orçamento, eu havia calculado os custos e até pensado em formas de pagamento.
— Você quer que eu aprove uma despesa desse tamanho de imediato? — Roberta insistiu.
— Quero que você pare de ver tudo só pelo lado financeiro e comece a pensar nas pessoas.
O silêncio que se seguiu foi carregado. Roberta não gostava de ser contrariada. E eu... Bom, eu era Anna. Não gostava de perder discussões.
— Vou analisar novamente os custos — Roberta disse, enfim.
Bufei. Frustrada. Isso significava que esse assunto ia ficar na gaveta por tempo indeterminado. É uma das desvantagens de trabalhar com Roberta.
— Ótimo. Enquanto isso, vou providenciar ventiladores para que pelo menos eles não passem mal.
Saí da sala antes que pudesse dizer algo que fosse me arrepender. É difícil ser a número 2.
Quando saio da sala de Roberta, sinto Adriana me observar. Eu estava com a expressão fechada e meus ombros bem tensos. O irônico é que hoje cedo eu havia malhado superiores. Eu conhecia bem aquela cara de hesitação.
— Anna... — começou, cuidadosa.
— O que foi agora? — Suspirei, massageando minhas têmporas.
Ela pigarreou, hesitante, mas por fim começou a falar:
— Os meninos que estavam entocados foram presos em flagrante. Estão te esperando na delegacia.
Fechei os olhos por um segundo, já sentindo a dor de cabeça aumentar. Delegacia. Horário de almoço. Horas esperando.
— Claro que foram... O que mais?
— Um cliente seu arrumou confusão no presídio e foi parar na solitária. Você precisa ir lá. Anotei, mas não me recordo qual deles é agora.
— Ótimo. Só melhora.
— E... — Adriana fez uma pausa dramática — o estelionatário te ligou.
Abri um sorriso irônico.
— E o que ele quer agora? Um novo golpe?
— Ele está sendo ameaçado por um agiota.
Incrédula, solto uma risada.
— O poste mijando no cachorro. Isso é inédito.
Adriana deu de ombros.
— O dia vai ser longo, doutora.
Suspirei. Santa paciência... Olhei para o relógio, a pilha de trabalho na minha mesa e depois para a porta. Posso fugir pra bem longe daqui?
Porém, fugas não eram pra pessoas como eu.
— Vamos logo, antes que eu desista da advocacia e vá vender Hinode.
Organizei o dia, segui para a delegacia e garanti que os meninos respondessem em liberdade. Depois, fui ao presídio visitar o cliente que estava todo arrebentado na solitária e ainda tive uma conversa séria com o diretor. No meio disso tudo, ainda precisei ligar para o agiota que o estelionatário estava devendo e pedi para soltá-lo no meu melhor tom ameaçador – funcionou, como sempre.
No carro, já exausta, meu celular tocou. Era Cecília. Assim que atendi, veio o apelo:
— Mamãe, você pode vir logo? A gente precisa ensaiar pro dia de quem trabalha!
Suspirei, apoiando a cabeça no banco.
Que dia de merd*.
Eu tinha tomado umas 3 xícaras de café hoje, meu nível de cafeína estava baixíssimo. No caminho de volta pra casa, vim reflexiva sobre o meu dia. Precisava do meu porto seguro, eu só queria chegar em casa e ver o meu amor. Porém, eu queria muito fugir da minha filha. Eu tive um dia difícil e ensaiar para amanhã era algo que eu não estava nem um pouco a fim de fazer.
Liguei para Fernanda, mas o seu telefone estava chamando e ninguém atendia. Ela deveria estar ocupada. Eram 19h30 da noite, ela deveria estar no escritório e eu decidi passar lá para pegá-la.
No caminho, meu celular vibra com uma mensagem da Dra. Baldez:
“Anna, pensei melhor sobre nossa conversa e você tem razão. Os funcionários merecem um ambiente confortável e acolhedor para trabalharem bem. Aprovei o projeto dos ar-condicionados e já encaminhei para execução. Obrigada por insistir nisso, às vezes sou teimosa demais. Me desculpe por isso.”
Um sorriso satisfeito brincava em meus lábios: “eu sempre venço”, mas é óbvio que não respondi isso. Entrei numa onda de provoca-la, eu sabia que estava brincando com fogo, mas não me importei.
“É claro, me preocupo com os funcionários pq, ao contrário de ‘certas pessoas’, eu não tenho uma pedra no lugar do coração.”
Em seguida, ela respondeu:
“Raquel do RH quer falar com você amanhã às 7h.”
Eu sorri. Ser sócia de Roberta era bom, a gente tinha nossas discrepâncias, mas no final, nos entendíamos. Confiávamos uma na outra e sabíamos que nunca iríamos passar por uma guerra de poder entre nós, pois estamos exatamente onde deveríamos estar.
Quando cheguei no escritório de Fernanda, encontrei a recepção vazia. Estranhei, mas logo vi a porta da sala dela entreaberta. Quando entrei, encontrei minha ruiva mergulhada em pilhas de papéis, digitando freneticamente no notebook.
Cruzei os braços, observando-a. Como minha esposa é linda, quando está toda concentrada então... a beleza triplica. Seus cabelos ruivos cresceram ao longo dos anos, agora estavam batendo na metade das costas. A forma como ela segura a caneta para fazer as anotações no bloco é diferente, ela tampa e destampa de ansiedade, isso é tão Fernanda.
Em sua mesa, uma foto da nossa família: nós três – juntas. Sorri com aquilo, vou colocar na minha também.
— Amor, você perdeu a noção do tempo? — Sorri, ainda de braços cruzados com a chave do carro na mão.
Fernanda ergueu os olhos, piscando como se só agora percebesse que já passava da hora de ir para casa.
— Merda... Perdi mesmo. — Ela passou as mãos no rosto, exausta.
Me aproximei, depositando um beijo suave em sua testa. Ela fechou os olhos, suspirando. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela me puxou para o seu colo, me envolvendo em um abraço apertado.
— Eu tive um dia de merd* — Fernanda murmurou contra o ombro da esposa.
Sorri, passando a mão pelos seus cabelos.
— Então somos duas.
Ficamos ali um pouquinho em silêncio, como se nossa presença pudesse de alguma forma, nos confortar. Por alguns minutos, nada mais importava.
— Eu estava tão ansiosa pra te ver, Anna. — Ela cola sua testa na minha
— Aconteceu alguma coisa? — Olho diretamente pra ela, preocupada
— Tenho um prazo apertado, tenho que terminar essa ação para protocolar amanhã — Resmungou
Me afastei um pouco e arqueei uma sobrancelha.
— Quer ajuda? Faz tempo que não trabalhamos juntas...
Fernanda sorriu cansada.
— Vem cá, loira. Mostra para mim se ainda manda bem.
Eu ri e puxei uma cadeira para me sentar ao lado da minha esposa. Agora ela ia ver como eu mandava bem. Como nos velhos tempos, nós nos concentramos, discutimos algumas estratégias da ação e, juntas, resolvemos uma ação de reintegração de posse com liminar. Trocamos um olhar satisfeito quando terminamos.
— Mandamos bem, doutora Florence. — Fernanda piscou.
— Sempre, doutora Alencar.
Demos um beijo rápido e nos levantamos para pegar nossas coisas. Fernanda deixou o carro no estacionamento, amanhã eu a deixaria no trabalho. Agora, a jornada da dupla maternidade nos aguardava e com certeza Cecília não aceitaria menos do que total dedicação ao ensaio do dia das profissões.
Quando eu e Fê chegamos em casa, por volta das 22h, encontramos a casa em silêncio. Cecília já estava dormindo.
Fernanda pegou sua bolsa e foi direto até Dira, que assistia TV na sala.
— Dira, muito obrigada por ficar até agora — minha esposa disse, tirando algumas notas da carteira. — Aqui está pelo tempo extra.
Dira tentou recusar, mas Fernanda insistiu.
— Aceita, vai. Você sabe que a gente valoriza seu trabalho.
Ela finalmente pegou o dinheiro, mas ainda parecia hesitante.
— Se quiser, pode dormir aqui hoje — completei. — Já está tarde, e ir para Curicica a essa hora não é seguro.
Dira sorriu, aliviada.
— Aceito sim, doutora. Obrigada.
— Dorme no quartinho da Ceci, tá? Puxa a cama auxiliar. Nada de dormir desconfortável no sofá da sala, entendido? — Fui incisiva
Ela assentiu e, antes de ir para o nosso quarto, passei no da Cecília. A luz do abajur estava acesa, iluminando seu rostinho sereno. Ela dormia abraçada com seu ursinho favorito, os cabelos espalhados pelo travesseiro.
Meu coração apertou.
Amanhã seria um dia importante para ela. Ela queria mostrar para todos o que a mãe dela fazia. Eu me abaixei ao lado da cama e passei a mão suavemente pela sua testa, afastando alguns fios do rosto.
Eu só queria ser uma mãe que ela pudesse admirar.
Senti um calor familiar atrás de mim. Fernanda envolveu minha cintura com os braços e apoiou o queixo no meu ombro.
— Você vai arrasar amanhã — ela sussurrou.
— Espero que sim... — Respondi, sem tirar os olhos de Cecília. — Eu só não quero decepcioná-la.
Fernanda apertou um pouco mais o abraço.
— Impossível. Você é a melhor mãe do mundo pra ela.
Fechei os olhos por um momento, absorvendo suas palavras.
— Vamos dormir? — Fê sugeriu, deixando um beijo no meu ombro.
Me levantei devagar, dando mais uma olhada em nossa filha.
— Vamos. Amanhã é um grande dia.
Fechamos a porta do quarto de Cecília com cuidado e seguimos para o nosso.
⚖👧🏼
No dia seguinte, acordei com o cheiro de café vindo da cozinha e vozes baixas. Ainda com minha roupa de dormir, que como sempre consistia em camisa de banda e cueca feminina, fui até lá e parei na porta ao ouvir sobre o que Dira e Fernanda falavam.
— (...) Acordou agitada e perguntando pela Doutora — Dira dizia — Essa menina é apaixonada por essa mãe.
— Eu sei... — Fernanda sorriu nesse momento — Anna me surpreendeu muito. Sempre foi meu sonho ser mãe e quando embarcamos nisso juntas, achei que ela fazia por mim. Mas me enganei. Ela é mãe porque se apaixonou por Cecília desde o momento que ela estava na minha barriga. A Anna foi uma super mãe do início ao fim da minha gravidez e continua sendo até hoje.
Fiquei imóvel por alguns segundos, sentindo o impacto daquelas palavras. Meu peito se encheu de emoção. Quando dou por mim, Cecília aparece correndo e pulou no meu colo.
— Mamãe!
— Bom dia, minha princesa. — Digo, pegando minha cria com dificuldade no colo. Estava pesada.
— Mamãe... Sonhei que você era a melhor advogada do mundo! — Eu sorri, sentindo meus olhos marejarem.
— Você, minha princesa, que é o meu sonho mais lindo. — A aperto em meus braços
Vou com Cecília no colo em direção à cozinha, Fernanda olha a cena e sorri, dou bom dia para ela e Dira e ponho meu grudezinho na cadeira ao meu lado.
— Mainha, cadê meu pãozinho? — Ela pergunta à Fernanda
— Aqui, amor. Come tudo e bebe a vitamina.
Cecília faz cara feia para a vitamina, a repreendo com o olhar e ela toma tudo quietinha.
Depois do café da manhã, começamos a nos arrumar para o evento do Dia das Profissões. Cecília estava radiante em sua roupinha de pequena advogada, um blazer preto sobre um vestido branco e uma gravatinha vermelha, uma versão em miniatura da minha roupa de trabalho. Ela ficava absolutamente adorável. Fernanda fez questão de arrumar seu cabelo em um rabo de cavalo elegante, enquanto eu ajudava com os sapatinhos.
— Mamãe, você acha que as pessoas vão gostar da minha apresentação? — Cecília perguntou, ajeitando o blazer.
Me abaixei na sua altura, segurando seu rostinho entre as mãos. — Eu tenho certeza, meu amor. Você vai brilhar.
Fernanda sorriu ao meu lado, me abraçando pelos ombros. — Vamos, nossa pequena advogada? A advogada-chefe já está pronta?
Assenti sorrindo e seguimos para a escola, prontas para o grande dia de Cecília.
A escola de Cecília era um lugar aconchegante, cheia de cores vibrantes e desenhos feitos pelas próprias crianças espalhadas em murais. O evento do Dia das Profissões aconteceria dentro da sala de aula das crianças, onde pequenos tapetes coloridos estavam dispostos no chão para os alunos se sentarem.
Conforme os pais iam chegando, começavam as apresentações. Cada profissional explicava um pouco sobre sua rotina, e as crianças tinham liberdade para fazer perguntas. O primeiro foi um bombeiro, que encantou a turma ao contar sobre resgates e apagar incêndios. Depois, um professor explicou sobre seu trabalho na educação. Tivemos também um mecânico, um engenheiro e até um açougueiro, que despertou uma curiosidade imensa nas crianças.
— Mas você mata os bichos? — perguntou um menininho de olhos arregalados.
— Não, eu apenas corto a carne que já vem do frigorífico! — explicou o açougueiro, rindo da reação das crianças.
A turma caiu na risada, e então chegou a nossa vez.
Fernanda e eu nos levantamos juntas e fomos para a frente da sala. Cecília estufou o peito de orgulho e sorriu para nós.
— Bom dia, pessoal! — comecei. — Nós somos as mães da Cecília e somos advogadas. Só que trabalhamos em lugares diferentes.
— Eu sou a Dra. Fernanda Alencar, sou advogada cível e trabalho com contratos e processos de família — Fernanda explicou.
— E eu sou a Dra. Anna Florence. Sou advogada criminal e sou chefe de uma firma de advocacia.
As crianças nos olharam curiosas, até que um garotinho levantou a mão.
— Você defende gente má? — perguntou ele, franzindo a testa.
Sorri, já esperando esse tipo de pergunta. Não estava mais nervosa, minha filha estava ali sorrindo pra mim.
— Nem toda pessoa que precisa de um advogado criminal é má. Às vezes, alguém é acusado de algo que não fez e precisa de ajuda para provar que é inocente. Outras vezes, a gente garante que mesmo quem errou tenha um julgamento justo. Porque a justiça tem regras que precisam ser seguidas, que nem na nossa casa. Senão qualquer um poderia ser punido sem motivo, e isso não seria certo, né?
As crianças pareceram refletir. Outra menina ergueu a mão.
— E se a pessoa for mesmo ruim, tia? Você ainda ajuda?
Fernanda interveio com um sorriso:
— O advogado não está lá para decidir quem é bom ou ruim. Isso é trabalho do juiz. A nossa missão é garantir que todo mundo tenha alguém para explicar seu lado e ser tratado de forma justa.
As crianças assentiram, parecendo entender. Logo em seguida, quando nossa apresentação acabou, um homem de postura rígida, vestindo uniforme de policial, se aproximou e estendeu a mão para mim.
— Doutora, gostei da explicação. Parabéns pelo trabalho. — Ele disse com um aperto de mão firme.
Reconheci o homem de imediato. Era o pai do menino com quem Cecília tinha brigado recentemente. Sorri educadamente e agradeci, enquanto ao meu lado, Cecília e o filho dele se encaravam.
— Feiosa — o menino sussurrou.
— Narigudo — Cecília rebateu de volta, cruzando os braços.
E antes que a guerra infantil começasse, Fernanda segurou nossa filha pela mão e cochichou algo para acalmá-la. Eu apenas balancei a cabeça, rindo baixinho. Essa menina definitivamente puxou a mim.
Depois de lancharmos com Ceci na cantina da escola, seguimos para os nossos empregos. Antes de Fernanda descer do carro, me deu um beijo carinhoso e acariciou meu rosto.
— Estou muito orgulhosa de você. Apesar do seu trabalho ser bem difícil de explicar, você fez isso muito bem para as crianças. Sabe, Anna... Eu não poderia ter escolhido alguém melhor para dividir a vida comigo e ser mãe da minha filha. — A voz dela embarga — Eu não me arrependo de nada, quando eu entrei naquele escritório e bati o olho em você, eu disse: “eu quero ela pra mim”. Me apaixonei e continuo apaixonada. Obrigada por essa vida ao seu lado, amor. Obrigada por ter aberto o seu coração e ter se permitido viver isso com a gente. Você é a melhor mãe do mundo pra Cecília. Nós te amamos muito.
Fiquei em silêncio por algum momento, tentando processar as palavras de Fernanda. Meu coração estava grato, cheio de amor e felicidade. Eu não gosto de demonstrar sentimentos, mas isso caía por terra quando se tratava da minha esposa e da minha filha. Eram as duas pessoas mais importantes pra mim no mundo.
— Eu amo você porque você me deu tudo o que eu jamais imaginei que poderia ter. Quando você entrou na minha vida, trouxe luz, carinho e uma visão diferente sobre tudo. Obrigada você por tudo, eu amo a família que construímos juntas.
Peguei a mão de Fernanda, entrelaçando nossos dedos com força.
— Não sou a melhor mãe do mundo, Fernanda. Mas tento ser a melhor versão de mim mesma por você e pela Ceci todos os dias. E, quando vejo o sorriso dela, eu sei que estou no caminho certo. E você... você me faz querer ser uma pessoa ainda melhor. Uma mãe melhor. Uma esposa melhor.
— Te amo — Ela diz, selando nossos lábios
— Também te amo.
Depois, Fê desceu do carro e eu segui para o escritório. Um dia cheio me aguardava, mas eu estava começando meu dia muito leve. Minha família era o meu maior trunfo.
Assim que cheguei ao escritório, respirei fundo. O dia começava leve, o que era uma coisa rara, algo que eu queria preservar pelo máximo de tempo possível. Liguei o computador, organizei mentalmente as tarefas e estava prestes a revisar um contrato de um fornecedor quando o celular vibrou sobre a mesa.
Atendi sem olhar quem era.
— Anna… — A voz do outro lado era arrastada, desesperada. Reconheci de imediato. Amanda.
Fiquei gélida.
— O que aconteceu? — Minha voz saiu firme, profissional, como um reflexo.
— Eu tô na delegacia… eu… — A voz dela estava pastosa, e um ruído de fundo indicava que ela não estava sozinha. — Eu fui pega dirigindo... Mas eu só dei uma voltinha… eu juro.
Me recostei na cadeira, pressionando a ponte do nariz.
— Você está bêbada? — perguntei, mesmo já sabendo a resposta.
O silêncio dela confirmou.
— Não fale com ninguém, diga que vai aguardar sua advogada.
Desliguei sem mais perguntas. Peguei minha bolsa, as chaves do carro e saí do escritório sem dizer nada a ninguém. Não contei para Adriana. Esse era um problema que eu precisava resolver antes.
Cheguei na delegacia que tinha um ar pesado, cheiro de café velho, misturado com papel desgastado. Como Amanda foi irresponsável a ponto de se meter num lugar desses?
Ao entrar, mantive a postura rígida e profissional. Minha expressão era neutra, meus passos firmes, mas tinha o peso de defender minha afilhada nesse momento. O delegado me reconheceu de imediato e fez um sinal para que eu o acompanhasse.
— A garota se meteu em uma enrascada.
Assenti, sem demonstrar reação.
— Me conte exatamente o que aconteceu.
Ele consultou algumas anotações e começou:
— Foi pega dirigindo um carro que não era dela. O veículo pertence ao pai de uma garota que estava com ela, aparentemente uma “amiga”. — Ele fez aspas no ar, mas eu ignorei o tom implícito. — Testemunhas disseram que Amanda e essa jovem estavam em um bar antes de saírem. Pelo estado dela, ficou claro que havia ingerido bastante álcool. Não tem habilitação, e o dono do carro não sabia que ela o estava usando. Ele não quis prestar queixa, mas há o agravante do dirigir embriagada e sem carteira.
Mantive o olhar fixo nele, processando cada palavra.
— Onde ela está?
Ele indicou uma cela pequena, nos fundos.
Respirei fundo antes de entrar.
Amanda estava sentada no chão frio, encostada na parede, com as pernas esticadas e os braços largados ao lado do corpo. O cabelo desgrenhado, a maquiagem borrada e o cheiro forte de álcool se misturavam à sujeira do lugar. Sua roupa estava rasgada no ombro, e sua voz saiu baixa quando me viu:
— Anna…
Meus olhos encontraram os dela, mas não havia ternura. Apenas um olhar gélido, profissional.
— Levanta.
Ela hesitou, talvez esperando outra reação minha, mas minha expressão permaneceu impassível. Sem outra opção, ela obedeceu.
— Vamos resolver isso.
E assim, sem uma palavra a mais, comecei os procedimentos para tirá-la dali.
Já no carro, Amanda seguia em silêncio. O único som que poderia ouvir era o som do motor da BMW. Amanda mantinha a cabeça encostada no vidro da janela. O cheiro de bebida estava impregnando o meu carro, misturado ao leve aroma de perfume já desgastado, decidi abrir os vidros para tirar aquele cheiro ruim.
Troquei a marcha, e foi nesse momento que senti o toque dela. Sua mão pousou sobre a minha, quente e hesitante. Meus músculos enrijeceram imediatamente.
— Anna… — Amanda murmurou, sua voz rouca e carregada de emoção.
Retirei minha mão com rapidez, segurando firme no volante.
— O que foi? — perguntei, sem desviar os olhos da estrada.
— Obrigada — disse, baixinho. — Obrigada por ter ido me buscar… por não ter me deixado lá.
Não respondi.
— Não conta pra mãe — pediu, sua voz trêmula.
Suspirei, sentindo a tensão crescer entre nós.
— Eu vou contar, Amanda.
Ela se virou para mim, visivelmente irritada.
— Você não precisa! Foi só um erro, eu…
— Não é sobre precisar ou não — interrompi, minha voz firme. — É sobre respeito. Sobre lealdade. Adriana merece saber.
Ela bufou e jogou o corpo contra o banco, cruzando os braços como uma criança contrariada.
— Você só quer me ferrar…
Fiz uma breve curva e parei na frente da minha casa. Destranquei a porta do carro.
— Desce.
Amanda hesitou, mas obedeceu. Assim que colocou os pés no chão, quase caiu. Segurei seu braço antes que ela desabasse.
— Pelo amor de Deus… — murmurei, a irritação e a frustração crescendo dentro de mim.
Amanda riu, completamente alheia à gravidade da situação.
— Acho que bebi demais…
— Acha? — retruquei, rangendo os dentes.
Ela apoiou o peso em mim enquanto eu a guiava para dentro.
Depois do banho, Amanda vestiu uma roupa limpa que deixei para ela e caiu na cama do quarto de hóspedes.
— Anna… — chamou, baixinho.
— Dorme, Amanda.
— Fica aqui comigo?
— Estou aqui.
Ela me puxou pelo braço, fazendo com que eu me sentasse ao seu lado.
— Mais perto — insistiu.
Suspirei, mas cedi.
Ela apoiou a cabeça no meu peito, e, instintivamente, comecei a fazer cafuné.
— Você é tão cheirosa… — murmurou.
Não respondi.
Minha mente estava longe. Pensava no que fazer, em como ajudá-la, em como impedir que isso acontecesse de novo.
Pensava no quanto Amanda precisava de limites antes que essa situação saísse completamente do controle.
E, acima de tudo, pensava na conversa difícil que precisávamos ter. E que, dessa vez, não poderia mais ser adiada.
Assim que Amanda dormiu, peguei o carro e segui para o escritório. Já era quase hora do almoço, e minha mente ainda estava presa nos acontecimentos do dia.
No caminho, mandei uma mensagem para Adriana.
"Segura as pontas no escritório um pouco. Preciso resolver uma emergência familiar. Avise à Roberta também."
Enviei outra para Fernanda, explicando o que aconteceu. Em poucos minutos, ela respondeu demonstrando preocupação com Amanda. Isso me tranquilizou. Nosso relacionamento sempre foi baseado na confiança, e saber que ela não ficaria brava ou incomodada com a situação me dava um alívio necessário naquele momento.
Assim que entrei no escritório, segui direto para recepção. Ela levantou o olhar do computador, surpresa ao me ver ali.
— Vamos almoçar fora hoje — anunciei, sem dar espaço para questionamentos.
Ela franziu a testa.
— Algum motivo específico?
— Sim, mas te conto no caminho.
Antes de sairmos, fui até a sala de Roberta. Ela me recebeu com um olhar preocupado, já sabendo que algo estava acontecendo.
— Adriana me disse que você teve uma emergência — comentou, fechando o notebook.
Assenti.
— Sim, mas já está resolvido… mais ou menos. Vou precisar ficar um pouco longe do trabalho hoje.
Roberta cruzou os braços.
— O que aconteceu?
Suspirei. Nunca fui de compartilhar problemas pessoais, mas Roberta era minha amiga antes de ser minha sócia, mais do que isso: ela era família. E, naquele momento, senti que poderia confiar nela.
— Amanda foi presa dirigindo bêbada e sem habilitação.
Ela arregalou os olhos.
— Meu Deus… bem que Lucca disse que ela estava problemática.
— Passei o dia resolvendo isso. Tirei ela da delegacia sob fiança e levei para casa, mas ela precisa de ajuda, Roberta.
Minha amiga suspirou, balançando a cabeça.
— Isso é sério, Anna. Você já pensou no que fazer?
— Vou conversar com Adriana agora. Mas sim, estou pensando em buscar uma psicóloga para Amanda.
Roberta assentiu.
— Se precisar de alguma coisa, me avise.
Agradeci com um olhar e saí em direção ao elevador, onde Adriana já me esperava.
Já no restaurante, escolhi um lugar mais reservado. Se Adriana surtasse, poucas pessoas veriam.
Assim que fizemos nossos pedidos, respirei fundo e fui direta.
— Adriana, eu preciso te contar o que aconteceu.
Ela franziu a testa, claramente apreensiva.
— Amanda foi presa hoje cedo. Estava dirigindo bêbada, sem habilitação, com a roupa rasgada e… com um carro que não era dela.
A expressão de Adriana se desfez.
— O quê?! — Sua voz saiu num sussurro chocado.
— Eu fui até a delegacia e tirei ela de lá. Não contei antes porque queria ter certeza de que ela estava segura. Ela está lá em casa, dormindo.
Os olhos de Adriana se encheram de lágrimas. Ela levou as mãos ao rosto, respirando fundo algumas vezes antes de conseguir falar.
— Meu Deus… O que eu fiz de errado? Como eu não vi isso acontecendo?
— Não é culpa sua — respondi com firmeza. — Mas ela precisa de ajuda.
Ela assentiu, enxugando os olhos rapidamente.
— Eu não sei o que fazer, Anna.
— Eu vou te ajudar. Vamos procurar uma psicóloga para ela.
Adriana segurou minha mão sobre a mesa, apertando-a com força.
— Obrigada. Obrigada por ter ido buscá-la. Eu não sei o que seria de Amanda sem você.
Suspirei, sentindo o peso da responsabilidade em seus olhos marejados.
— Eu também não sei, Adriana. Mas não podemos deixar isso continuar. Eu vou conversar com Paola, ela precisa dar uma trava em Amanda também.
Segui para a galeria de arte de Paola logo após o almoço. O prédio no Centro do Rio era sofisticado, assim como tudo que envolvia a dona do lugar. Respirei fundo antes de entrar. Não nos dávamos bem, e aquilo não seria uma conversa fácil, mas eu precisava fazer aquilo por Amanda.
Paola me recebeu com cordialidade forçada, como sempre. Seu sorriso era polido, quase mecânico.
— Anna. Que surpresa — disse, gesticulando para que eu entrasse.
— Precisamos conversar — fui direta.
— Café? — ela ofereceu, já se dirigindo à máquina.
Nunca que eu recusaria café.
— Aceito.
Ela preparou duas xícaras e me entregou uma. Sentamos à mesa de vidro no centro da sala, com enormes telas coloridas ao nosso redor.
— O que foi agora?
Segurei a xícara com firmeza.
— Amanda foi presa ontem à noite.
Os olhos dela se estreitaram, e ela inclinou levemente a cabeça, esperando que eu continuasse.
— Estava dirigindo bêbada e sem habilitação. A roupa dela estava rasgada, o cheiro de álcool era insuportável. Pegou o carro do pai de uma garota com quem estava e saiu por aí como se nada pudesse acontecer.
Paola fechou os olhos por um segundo, inspirando profundamente antes de balançar a cabeça em negação.
— Que garota burra… — murmurou, tomando um gole do café.
Meu corpo enrijeceu na hora.
— Não fale assim dela.
Ela arqueou a sobrancelha.
— Ah, me poupe, Anna. Quantas vezes eu conversei com aquela menina sobre esses comportamentos impulsivos? Quantas vezes eu disse que isso ia acabar dando merd*?
— Isso não significa que você pode chamá-la de burra.
— E o que você quer que eu faça? Que passe a mão na cabeça dela como você sempre fez?
Soltei um riso seco, irritado.
— Você acha que eu passo a mão na cabeça dela?
Paola me olhou com aquele ar superior que me tirava do sério.
— Isso que está acontecendo tem um motivo.
Senti um nó se formar no meu estômago.
— Então você já sabe?
Ela me analisou por um momento antes de soltar:
— Que ela está apaixonada por você? Há anos.
Meu coração bateu forte no peito.
— Ela me contou — continuou, dando de ombros. — Eu disse que era loucura, mas Amanda quer continuar sofrendo e insistindo nisso. São escolhas. Agora ela está colhendo as consequências.
Engoli seco.
— Ela te contou?
— Sim. E você? Ela te contou?
Neguei com a cabeça.
— Fernanda me fez enxergar.
Paola soltou uma risada baixa, debochada.
— A ruiva é esperta. Sentiu que tinha uma ameaça no caminho.
Cruzei os braços, mantendo meu tom firme.
— Amanda não é uma ameaça para o meu relacionamento. Eu a vejo como minha afilhada. Jamais a veria de outra forma. Nunca dei motivo para que ela se iludisse.
Ela me lançou um olhar irônico, como se eu fosse ingênua.
— Você acha que não deu motivo? Anna, os mimos que você deu para essa menina a vida inteira a deixaram cheia de ilusão e admiração pela poderosa Anna. Isso se converteu em amor. A culpa é sua.
Minhas mãos se fecharam em punhos.
— A culpa é minha? — minha voz saiu afiada. — Você tem noção da merd* que está dizendo?
— Tenho. E sei que estou certa.
Respirei fundo, me forçando a manter o controle.
— Você nunca foi presente na vida dela. Talvez seja por isso que Amanda está tão perdida.
Paola riu, balançando a cabeça.
— Ah, claro. Agora a culpa é minha.
— Sim! Você deveria ajudar e não atrapalhar, colocando minhoca na cabeça dela, que já está confusa o suficiente!
— Ela não é mais uma criança, Anna.
— Ela acabou de fazer 18 anos, Paola. Jovem demais para saber o que está fazendo. As pessoas não amadurecem por idade, e sim com o tempo.
— Você e Adriana a tratam como se ela fosse uma garotinha indefesa.
Soltei um suspiro frustrado.
— Porque ela é inexperiente e está vulnerável! E sabe o que não ajuda em nada? Você agir como se ela já devesse ter o mundo sob controle, como se não precisasse de suporte.
Paola cruzou os braços.
— Eu já tentei ajudar.
— Não, você tentou fugir. E agora acha que simplesmente deixá-la ir para São Paulo, sozinha e com a mente fodida, é a solução.
Ela revirou os olhos.
— E o que você quer que eu faça?
Minha paciência chegou ao limite.
— Quero que pare de ser uma imbecil e comece a agir como mãe de verdade.
O silêncio que se instalou foi pesado. Paola me encarou, os olhos brilhando de raiva.
— Eu sou uma imbecil que não serve para ser mãe?
Segurei seu olhar sem recuar.
— Sim.
Ela riu, sarcástica.
— E você acha que sabe o que é melhor para ela?
— Eu sei que abandoná-la não é a resposta.
Ela pegou a xícara de café e a pousou na mesa com um barulho seco.
— Se você acha que pode salvá-la, fique à vontade. Mas não diga que não avisei.
E, com isso, ela se levantou e saiu da sala, me deixando ali, respirando fundo, tentando acalmar a fúria que borbulhava dentro de mim.
Filha da puta, como eu a odeio.
Agora, restava descobrir o que fazer com Amanda antes que fosse tarde demais.
Fim do capítulo
Capítulo quentinho saindo do forno!
O que vocês acham de Amanda, hein? Curiosa pra saber.
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Lea
Em: 19/04/2025
Procurar ajuda profissional, é o primeiro passo,para resgatar a Amanda. Do jeito que está,o fundo do poço é bem próximo.
nath.rodriguess
Em: 19/04/2025
Autora da história
Nunca li essa, vou colocar na minha lista. É bem interessante esse tema, bem doloroso quando não é correspondido. A Amanda é uma personagem muito complexa que eu tive que criar, essa nuance dela sair da adolescência pra vida adulta e assumir responsabilidades, não saber lidar com elas e com o que ela sente, e de quebra, o único apoio emocional que ela tem ser justamente a pessoa que ela ama e está sofrendo por isso, tornam as coisas mais difíceis.
Mas tenham paciência com ela, nada de jogar hate KKKKKKK pfvr
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Joanna
Em: 06/04/2025
Essa garota vai fazer tudo para desestabilizar o casamento da Anna, e haja confiança por parte da Fernanda, já que é ciumenta.
Abr
nath.rodriguess
Em: 11/04/2025
Autora da história
Estamos torcendo para que não aconteça isso!
Ciúme é a característica principal desse casal KKKKKKK
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Mmila
Em: 31/03/2025
Nossa, que situação!!!!!
nath.rodriguess
Em: 01/04/2025
Autora da história
Foram as vozes da minha cabeça que me pediram pra criar kkkkk
Se essa história não tivesse um dramalhão, não seria tão legal hahaha
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Lea Em: 19/04/2025
Esse amor de afilhada com madrinha,me fez lembrar de " My Sunshine - da Rose Sinclair".