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O Peso do Azul por asuna

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Palavras: 4903
Acessos: 333   |  Postado em: 30/03/2025

Capítulo 10

 

Nos dias que se seguiram, a dúvida não desapareceu. Cresceu. Silenciosa, serpenteando entre os meus gestos mais simples, no modo como abria um livro, no tempo que demorava a responder a alguém, no olhar que deixava escapar pela janela. Onde antes havia apenas culpa, agora havia outra coisa, desejo.

Depois daquela primeira manhã na congregação, depois da quebra inesperada que me atravessou como uma fissura antiga a abrir-se devagar, eu não me transformei. Não houve renascimento. Nem coragem, nem clareza. Havia apenas algo diferente. Algo mais real.

Pela primeira vez, permiti-me sentir.

Sem fugir. Sem castigar o corpo com rezas, nem calar a mente com versículos decorados para afastar pensamentos que me queimavam por dentro.

Sentir.

Só isso.

E talvez tenha sido por isso que voltei à mesma igreja. Vezes sem conta. Como se os passos soubessem o caminho antes de mim. Amanda sorria sempre que se oferecia para me levar. Sem nunca perguntar o porquê. E eu agradecia esse silêncio.

A pastora não falava sobre castigos. Falava de compaixão. Da carne como parte da existência, não como erro. E essa ideia, ainda que assustadora, repousava sobre mim como uma manta sobre um corpo exausto. Comecei a acreditar que talvez, só talvez eu não fosse um erro.

O que não consegui evitar foi o cansaço que se instalava em mim sempre que o meu pai telefonava. As conversas, antes reconfortantes, tornaram-se cansativas. Previsíveis. Sempre que sentia que a sua voz se encaminhava para as mesmas perguntas, as mesmas fórmulas de fé, "Já estás firme na Palavra? Já procuraste uma congregação com doutrina sólida? Sentes a presença de Deus no teu dia a dia?" eu desviava. Usava as táticas que aprendera desde pequena para contornar assuntos, como quem muda de faixa numa estrada perigosa, evitando os buracos já conhecidos.

Eventualmente, deixei escapar que sim, encontrara uma congregação. Mas omiti tudo o resto. A forma como me sentia. O tipo de palavras que me tocavam. O silêncio que às vezes era mais espiritual que qualquer pregação. Falei apenas o suficiente para o tranquilizar, deixando subentendido que era algo tradicional. E ele acreditou. Ou quis acreditar. Talvez ambos.

Nas tardes de domingo, depois do culto, voltava para o quarto com o coração apertado e os olhos baixos, contudo pela primeira vez sem querer arrancar o que sentia. Havia algo naquela nova fé que não me pedia que me desfizesse de mim.

Foi nessa fase que os sonhos começaram.

No início, vagos. Nebulosos. Chloe surgia apenas como uma sombra, observando-me do outro lado de uma sala. Porém depois, tornaram-se mais nítidos. Ela aproximava-se. Tocava-me. Os seus dedos deslizavam pelos meus braços como se procurassem algo. A sua boca encontrava a minha com uma fome lenta, o tipo de desejo que não grita, porém que arde. Acordava com o corpo em brasas e o nome dela colado aos meus lábios. Envergonhada, rezava. Todavia já não pedia para esquecer. Apenas para entender.

Sonhava com os seus olhos presos nos meus, com o modo como os seus dedos passeavam pela minha pele, como se a conhecessem de cor. Eram sonhos cravados de provocação e entrega, imagens que me deixavam a tremer por dentro. Às vezes, acordava com a respiração descompassada, os lençóis colados ao corpo, como se tivesse vivido tudo aquilo de verdade. E, talvez, tivesse. Porque no sonho, não havia recuos. Não havia culpa.

Nas aulas de fotografia, permanecia do seu lado, contida. Observando. Deixando que os olhares falassem aquilo que ainda não me atrevia a nomear. Reparava na forma como os seus dedos dançavam sobre os botões da câmera, precisos, quase sensuais. A forma como inclinava levemente a cabeça quando explicava algo que a cativava, deixando que o cabelo loiro lhe caísse distraidamente sobre os olhos, intensificando aquela aura quase hipnótica. De fronteiras e escolhas. De tudo o que se pode revelar ou esconder com um simples ajuste de perspetiva. Os meus dedos formigavam com a vontade de lhe desviar o cabelo, de o colocar por trás da orelha.

— Vês esta diferença? — perguntou um dia, pousando duas fotografias lado a lado. A sua expressão brilhava, não de vaidade, mas de quem compreende algo que o mundo ainda não viu. — A luz não mudou. O ângulo também não. Só mudei o tempo de exposição.

Fez uma pausa.

Depois baixou a voz.

— Às vezes, a diferença entre o que vemos e o que sentimos está num segundo de espera.

Essa frase ficou presa em mim. Como se tivesse sido deixada ali de propósito, discreta, todavia impossível de ignorar. E quanto mais tempo passava, mais se entranhava no meu pensamento, como um eco teimoso que se repetia no fundo. Foi nesse instante ou talvez nesse segundo de espera que comecei a reparar ainda mais, com mais atenção. A notar para além do óbvio.

Notei o modo como Chloe desviava ligeiramente o olhar sempre que Piper comentava, entre sarcasmos e sorrisos fingidos, sobre o projeto de leitura para crianças. As provocações de Piper vinham embrulhadas em piadas, lançadas como se fossem meras brincadeiras. Mas Chloe permanecia em silêncio. O rosto imóvel, sereno até demais. Só que, por vezes, quando achava que ninguém notava, lançava-me olhares rápidos, quase impercetíveis, como pequenas ondas a tocar a margem sem fazer alarde.

Olhares que me diziam tudo sem uma única palavra.

Ela sabia. Sabia que eu ainda não havia contado. Que ninguém, nem sequer Piper, sabia que também ela participava naquele projeto. Havia ali um segredo partilhado em silêncio, que a cada dia, essa omissão pesava mais do que qualquer revelação.

Mas por quê?

Por que razão esconder algo assim?

Por que razão omitir, até de Piper, algo tão genuíno? Tão nobre?

Durante o voluntariado. Com as crianças, esta tornava-se mais silenciosa. Mais presente. Sentava-se no chão com elas, como se o mundo não precisasse de mais nada. Não enchia silêncios. Não interrompia histórias mal contadas. Só ouvia.

Lembro-me de Will, um menino com olhos escuros e cabelos cacheados, que lhe estendeu um caderno com desenhos tortos. Chloe pegou nele com delicadeza. Com um sorriso disse-lhe que era incrível. E esperou. Até que Will começou a falar. Hesitante, tímido. Contudo falou. E ela o escutou, com reverência e atenção.

Naquele dia, depois de arrumarmos os livros infantis, arrisquei.

— Aquilo que fizeste pelo Will, foi encantador.

Esta virou-se na minha direção, os olhos azuis, estudaram-me por um segundo, e depois encolheu os ombros, como se não tivesse feito nada de extraordinário.

— Às vezes, só precisamos que alguém esteja disposto a escutar. Mesmo que o que tenhamos para dizer venha em rabiscos.

Assenti. No entanto o que não disse, o que não consegui dizer, foi que eu também queria ser escutada. Queria ser lida. Decifrada. Não como um livro aberto, mas como aqueles que se abrem devagar, que exigem tempo, paciência, e olhos atentos. E que ela tinha esse tipo de olhar.

No voluntariado, os dias seguiam um ritmo calmo. As crianças pareciam florescer lentamente, como se soubessem, instintivamente, que ali podiam respirar. Durante uma dessas tardes enquanto organizava uma pilha de livros infantis, ouvi o som seco de algo a partir. Um estalo breve, cortante. O tipo de som que interrompe todas as conversas.

Virei-me de imediato.

Jules, pequena, de olhos enormes e expressão atenta estava imóvel no meio da sala, os dedos seguravam metade de um boneco de plástico partido. A outra metade jazia no chão. O seu rosto estava vermelho, contudo não pelo esforço. Era o medo. O medo de ter estragado algo. De ser repreendida. De ser “má”.

A sua expressão encontrou a minha.

Os seus lábios tremiam, porém não havia lágrimas. Ainda não. Vi nos seus olhos o momento em que decidiu segurar o choro. Como se acreditasse que demonstrar tristeza fosse pior do que o erro em si. Ela abanou a cabeça com força, os olhos agora fixos no boneco, como se desejasse que este se recompusesse sozinho.

Aproximei-me devagar, sem pressa, tentando transmitir tranquilidade, como se cada passo fosse uma promessa de que não havia perigo.

— Jules — sussurrei, ajoelhando-me do seu lado. — Está tudo bem, querida.

— Eu não queria — cochichou. — Ele só caiu.

— Eu sei. — Sorri-lhe com ternura, pousando a mão no chão entre nós, sem a tocar. Só presença. Só espaço seguro. — Às vezes, as coisas partem-se mesmo quando não queremos. Mas sabes? Quase tudo tem conserto.

Ela não respondeu, contudo, a sua expressão encontrou novamente a minha, dessa vez sem transmitir tanto medo. Peguei o boneco com cuidado. As duas partes ainda encaixavam, embora uma delas tivesse uma fissura. Procurei a caixa dos materiais, encontrei cola branca e um pequeno pedaço de fita adesiva.

— Vamos ver se conseguimos dar-lhe uma segunda chance, sim?

Jules assentiu em silêncio, sentando-se do meu lado com as pernas cruzadas, os olhos agora cheios de concentração.

Com mãos cuidadosas, juntei as peças. A fita escondia parte da quebra. Jules segurava uma metade, eu, a outra.

— Ele vai ficar marcado. — Murmurou, como se falasse para ela própria. Sem tristeza apenas com reconhecimento.

O seu olhar demorou-se no boneco com mais atenção do que o necessário. E, sem aviso, num gesto brusco e desajeitado, levantou-se num salto. Por um instante, temi que fosse fugir. Mas não. Começou a enrolar devagar a manga da camisola, hesitante. Os olhos iam dos seus dedos ao chão, como se aquilo que estivesse prestes a fazer exigisse mais coragem do que qualquer outra coisa naquele dia.

Deu um passo na minha direção. Depois outro.

Parou mesmo à minha frente.

— Aqui — disse, num sussurro quase inaudível, estendendo o bracinho.

Uma cicatriz, fina, no entanto visível, cortava-lhe a pele abaixo do cotovelo. Clara. Solitária. Cuidada. Ainda assim, um sinal permanente.

Os meus olhos pousaram ali. Depois nos seus olhos.

Senti o meu peito apertar com uma força inesperada. Era mais do que empatia. Era identificação. Era como ver uma versão antiga de mim naquela pele frágil. Algo que eu sempre ocultei, ela mostrara.

E mesmo com o coração a bater de forma errada, mesmo com o nó na garganta a ameaçar subir, eu sorri-lhe. Um sorriso inteiro. Sem pressa. Sem medo.

Olhei-a fixamente com a profundidade de quem vê para além da dor.

— Algumas cicatrizes não são defeitos. São recordações de que algo foi cuidado.

Por um segundo, achei que ela fosse responder. Porém em vez disso, limitou-se a encostar a cabeça no meu ombro com um alívio tímido, como quem, finalmente, é compreendida. E ali, por breves segundos, deixei cair todas as minhas defesas.

Porque naquele instante, algo dentro de mim cedeu.

Ainda com Jules encostada ao meu ombro, deixei-me ficar ali, imóvel. O boneco agora recomposto repousava no chão à nossa frente, com a fita adesiva a atravessá-lo como uma cicatriz visível. A menina respirava devagar, os dedos pequenos agarrados à barra da minha manga como se tentasse prologar ainda mais aquele momento impedido com que este desaparecesse.

Foi então que o senti. De novo.

O olhar. Como um sussurro sem som, a atravessar-me a pele.

Ergui o rosto lentamente, quase como num reflexo, sem saber bem o que procurava. Contudo, soube logo que era ela.

Como se fosse inevitável. Como se aquele momento a tivesse chamado sem que ninguém ousasse pronunciar o seu nome.

Chloe.

Encostada ao vão da porta, meio na sombra, meio à vista, como se a própria hesitação entre entrar e observar fizesse parte do ritual. Não disse nada. Não se moveu.

A sua expressão estava cravada em mim.

Não demonstravam surpresa. Nem julgamento.

Havia algo mais fundo. Mais denso. Uma presença que me trespassava como se me lesse por dentro, desfiando cada camada, camada essa que eu ainda tentava manter intacta.

Fiquei sem saber onde pousar os olhos, os pensamentos, a respiração. Cada movimento dentro de mim parecia demasiado ruidoso naquele silêncio suspenso. Por um momento, desejei que ela fosse embora. Que quebrasse o feitiço. Que voltasse a ser a provocadora incansável que sabia dominar qualquer sala. No entanto não o fez.

Apenas ficou.

Inteira. Presente. Silenciosa.

Não desviei o olhar. Ela também não. Simplesmente permaneceu ali por mais alguns segundos, como se estivesse a absorver algo que ainda não sabia bem onde guardar. E então, com a sua calma habitual, moveu-se pela sala. Os passos lentos, seguros, como se não quisesse perturbar o ritmo invisível que se instalara entre nós. Como se soubesse que qualquer som mais abrupto partiria tudo.

Quando chegou perto, estendeu um livro na minha direção. Sem cerimónia. Sem explicações.

Franzi o cenho, vacilante.

— Acho que estás pronta para ler para eles.

A sua voz era baixa, quase neutra. Mas por baixo das palavras morava uma vibração subtil, uma nota trémula, quase impercetível, que fez estremecer algo dentro de mim.

Assenti devagar, aceitando o livro. Os nossos dedos tocaram-se por um breve instante, curto, quase casual. Contudo suficiente para alterar a temperatura do momento. O suficiente para incendiar uma corrente subterrânea que não sabíamos bem como conter.

Quando levantei os olhos, os seus estavam à minha espera.

Azuis-turquesa. No entanto naquela luz, pareciam mais escuros. Como o mar antes da tempestade.

O modo como me olhava não parecia o mesmo.

Já não era apenas curiosidade. Nem simples provocação.

Era reconhecimento.

Era como se, ali, tivesse visto alguma coisa em mim que a deteve. Que a fez vacilar por dentro, mesmo sem mostrar. Algo que não esperava. Que a obrigou a parar. A reconsiderar tudo o que pensava saber.

Não disse nada. Apenas me ofereceu um leve aceno de cabeça, antes de se afastar com a mesma tranquilidade com que chegou.

Mas ficou.

Ficou nela.

Ficou em mim.

Talvez por isso, durante a aula de fotografia, enquanto permanecíamos sentadas juntas, tudo me tenha parecido mais próximo. Mais exposto.

Sentei-me no lugar habitual, tentando manter o foco nos ajustes técnicos da câmera. O professor falava sobre luz natural e contraste, entretanto a minha atenção oscilava, demasiado consciente da sua presença do meu lado, da sua respiração lenta, do som dos seus dedos a manipularem os botões com familiaridade. Eu fingia concentração, mas o meu corpo já reagia à proximidade antes mesmo de perceber o porquê.

— Certo — murmurei, ajustando a lente como ela indicara, mantendo os olhos no visor. Porém sentia o seu olhar sobre mim. Não no que eu fazia, mas sobre quem eu era naquele instante.

— Tens mãos delicadas — comentou de repente, a voz tão próxima que senti o calor das palavras na pele do pescoço. — Mas quando seguras a câmera, há uma firmeza diferente. Como se estivesses a tentar conter algo. Manter tudo sob controlo.

O comentário atingiu-me com uma precisão desconfortável. Desviei a minha atenção do visor, os dedos ainda em torno da máquina, como se esta fosse minha proteção. Encontrei os seus olhos, intensos, calmos. Estes não olhavam para a lente. Eles encaravam-me.

— Isso pode ser bom — continuou inclinando-se ligeiramente, encurtando a distância entre nós. O seu tom suavizou, tornando-se quase íntimo. — Mas a fotografia não se trata apenas de controlo. Às vezes, é sobre deixar as coisas acontecerem.

As palavras assentaram em mim como uma provocação disfarçada. Ou talvez nem tanto.

— Eu não sou entusiasta de deixar as coisas ao acaso — rebati, transparecendo na voz mais firmeza do que pretendia, como se tentasse convencer-me tanto quanto a ela. Apertei os dedos com mais força, como se isso bastasse para manter o equilíbrio.

Vi-a sorrir. Porém não foi um sorriso de provocação ou desafio. Foi um daqueles sorrisos raros, que parecem ver através da armadura. De quem compreende mais do que devia. De quem sabe que algumas defesas, por mais bem construídas, são feitas de vidro.

Sem pedir licença, estendeu a mão.

Os seus dedos deslizaram sobre os meus com uma leveza que me roubou o ar. Calor. Elétrico. Vivo. Não foi um gesto técnico. Foi íntimo. Preciso. Como se tocasse não apenas a minha mão, mas algo mais fundo, mais escondido, como se a sua pele reconhecesse a minha antes de qualquer lógica. Os seus dedos entrelaçaram-se momentaneamente com os meus para corrigir a posição. Foi breve, mas deixou raízes. Como uma combustão contida.

E nesse instante, tudo o que era externo a sala, o ruído baixo da aula, a existência do mundo evaporou-se.

Fiquei imóvel. O corpo inteiro em estado de suspensão. A minha respiração falhou, presa algures entre a garganta e o peito. O sangue rugia-me nos ouvidos, e a palma da minha mão latej*v* no exato lugar onde os seus dedos tinham repousado. Como se aquela memória física tivesse sido marcada a ferro.

O silêncio entre nós encheu-se de algo que não se dizia. Algo denso. Incandescente. A energia pairava no ar como estática antes de uma tempestade. A sua expressão encontrou a minha e nesse breve segundo, havia ali qualquer coisa de irreversível.

Não era só técnica. Nunca fora.

Era um toque que dizia: "eu vejo-te".

Era um toque que perguntava: "vais continuar a fugir?"

E então, num impulso que não soube controlar, afastei-me. Afastar-me foi mais reflexo do que escolha. Como se o meu corpo tentasse proteger-se da vertigem que aquele toque me provocara, o calor espalhou-se com violência silenciosa, como se a pele ainda a tocasse mesmo depois de os dedos dela se afastarem.

— Acho que já entendi — Expus rapidamente, a voz mais trémula do que queria admitir, recuando com a cadeira, precisando de espaço para respirar ou sobreviver.

Ela não respondeu de imediato.

Deixou que o silêncio se estendesse, apenas o suficiente para que o desconforto se transformasse num desejo mal contido. A sua mão permaneceu sobre a mesa por mais um segundo, os dedos marcando o ponto exato onde antes tocara os meus, como se gravasse o gesto ou me desafiasse a esquecê-lo.

Depois, lentamente, ergueu o olhar.

E, pela primeira vez, não sorriu logo.

Os seus olhos prenderam-se nos meus, intensos, expectantes. Por um breve instante, notei-a passar os dedos pelos próprios lábios, num gesto quase distraído, todavia não era. Era como se reprimisse uma resposta de última hora, como quem engole uma provocação antes que esta lhe escape. Como se, naquele segundo suspenso, tivesse escolhido o silêncio em vez do jogo.

O esboço nos lábios que veio depois foi mais contido. Ainda havia calor, ainda havia intensidade, no entanto estava domado. Quase cuidadoso.

— Claro que entendeste. — Afirmou num murmúrio baixo, quase rouco.

Os seus olhos desceram lentamente, quase em câmera lenta, até à minha mão que ainda permanecia envolta do metal frio da máquina. Os meus dedos estavam tensos, visivelmente trémulos, uma confissão silenciosa que ela leu com precisão. Depois, encarou-me de novo. Mantendo o contato visual colado com uma calma que me desarmou. Que queimava sem pressa.

A tensão entre nós não era apenas presença era vibração.

Ela sabia.

Sabia do arrepio que me percorreu a espinha. Sabia da respiração falhada, do jeito como eu engolia em seco, do esforço quase patético em parecer indiferente. Sabia até do calor que naquele momento subia ao meu rosto, traindo-me com uma honestidade que eu não conseguia controlar.

E naquela expressão, não havia apenas certeza.

Havia prazer.

Prazer em saber. Em contemplar. Em tocar algo em mim que eu própria tentava manter enterrado. Ela saboreava cada segundo com um charme tão natural quanto venenoso. O tipo de charme que não precisa de esforço, só de presença.

Chloe inclinou-se ligeiramente na minha direção, cruzando os braços sobre a mesa com uma elegância displicente, o rosto perigosamente próximo do meu.

— Sabes — disse, como quem inicia uma confidência. — Há formas muito mais eficazes de aprender a usar as mãos. Se estiveres disposta a praticar com intenção.

O seu queixo curvou-se num leve gesto, os olhos semicerrados, avaliando a reação que causava com a calma de quem já sabia o resultado antes sequer de lançar os dados.

Fingi afinar o foco. Os botões eram só disfarce. Qualquer coisa para escapar à evidência de que o meu corpo já tinha perdido aquela batalha.

No entanto era tarde.

O meu coração batia num ritmo alucinado. A pele queimava no exato lugar onde os dedos dela tinham roçado os meus. E mesmo sem a encarar, sentia-a ali, como se estivesse colada a mim. Um campo magnético. Um risco. Uma tentação.

A loira permaneceu em silêncio durante alguns segundos, deixando o peso da sugestão assentar entre nós.

— A propósito — murmurou, de forma leve, quase neutra inclinando-se novamente sobre a mesa com uma expressão quase estudiosa — o teu enquadramento melhorou. Estás a conseguir segurar a profundidade sem perder o foco principal. — Finalizou, como se recuasse um passo no jogo.

Os seus olhos encontraram os meus uma última vez, ainda com aquele brilho de provocação domesticada, desviando-se lentamente. Como se tudo aquilo, o calor, o toque, o turbilhão, tivesse sido apenas uma lição técnica.

Como se nada tivesse acontecido.

Ou como se tudo tivesse acontecido precisamente como ela queria.

Continuei ali, com os dedos ainda a tremer sobre os botões, tentando, em vão, distinguir onde acabava a aula e começava o incêndio que esta me deixara dentro.

Já perto do fim, enquanto o professor explicava os detalhes do projeto final, senti-a inclinar-se novamente. O seu perfume invadiu o meu espaço antes da voz.

— E então, quando vamos começar o projeto?

As palavras vieram num sussurro morno. Uma pergunta simples, dita como quem propõe algo indecente num confessionário.

Mordi o lábio, mantendo os olhos fixos em frente.

— Podemos discutir isso depois.

— Depois quando? — A provocação era suave, mas cortante.

— Depois. — Respondi seca, mais defensiva do que pretendia, como alguém que constrói um muro à pressa com paus e desculpas.

Ela soltou um riso baixo, pelo nariz, recostando-se com aquele ar de quem já ganhou o jogo, mas ainda prefere assistir ao desenrolar da partida.

— Gosto dessa tua filosofia do “depois”. Tão misteriosa, tão conveniente. É quase como um eclipse, sabes que vai acontecer, mas nunca sabes exatamente quando e às vezes nem sequer aparece.

A minha boca quase se abriu num sorriso. Quase. O riso quis subir-me à garganta, porém prendi-o a tempo, recusando dar-lhe razão, mesmo quando o sarcasmo acerta em cheio. Fiquei ali, imóvel, a disfarçar o leve aperto nos cantos dos lábios, como se a sua ironia não me tivesse arrancado, por dentro, um breve calor de divertimento.

No entanto ela sabia. Sabia que eu tinha vacilado por um segundo.

Notei o ligeiro arquear de sobrancelha. O brilho, aquele que eu já começava a reconhecer, estava lá, na sua expressão expectante. Ela esperava que eu risse.

Estreitei os olhos, fingindo irritação, tentando recuperar o controlo. Todavia ela lia tudo. Ela adorava aquilo. O jogo. A tensão. A dança de provocações onde cada frase era uma peça bem posicionada.

— Não estou a fugir.

— Não? — O seu tom tornou-se mais doce. Mais perigoso. — Então é o quê? Uma tese em tempo real sobre evasão emocional?

Suspirei, sentindo o calor a subir pelas faces.

— Ainda não tive tempo de organizar um horário.

— Compreensível — assentiu com falsa compreensão, os lábios a esconderem um sorriso enviesado. — Afinal, organizar uma sessão fotográfica exige uma mente brilhante e estratégia. Quase como um jogo, só que com câmeras. E tensão sexual.

Encarei-a num sobressalto.

Ela não piscou. Só sorriu. Lenta. Indecente. A expressão de quem sabia perfeitamente o que estava a fazer.

— Exige, no mínimo, um plano. — Atirei, tentando recuperar o controlo da conversa.

Chloe puxou do celular com a descontração de uma deusa entediada.

— Então vamos planear. Agora. Amanhã à tarde?

— Estou ocupada.

— Sábado?

— Tenho coisas para fazer.

— Domingo?

Engoli em seco. O cerco estava a apertar.

— Não sei.

A curva dos seus lábios surgiu como um feitiço. Lenta. Saboreada. Quase indulgente.

— Maya, detesto ser eu a dizer isto, mas há uma enorme possibilidade de que este projeto funcione melhor se, imagina só, nós realmente trabalharmos nele. Juntas. De preferência sem cronogramas imaginários.

Suspirei fundo, fixei na câmera, como se esta ainda fosse o meu ponto de fuga. Contudo até isso já era mentira. Eu estava encurralada e ela sabia. Sabia e não recuava. Pelo contrário, permanecia ali, sólida, presente, como um desafio em forma de mulher.

— Então é assim? — A sua voz agora era baixa, afiada, como uma lâmina embainhada. — Cada sugestão minha é recebida com um novo compromisso fantasma? Cada passo em frente, um recuo teu?

— Não são desculpas — sussurrei, mas até eu soava pouco convincente.

— Claro que não — atirou, num tom mais seco do que o habitual, um vestígio de impaciência a romper pela primeira vez por entre o verniz polido da sua voz. O tamborilar dos dedos na madeira já não soava despreocupado, era preciso, ritmado, quase uma tentativa de se conter. O seu olhar cravou-se em mim com menos jogo e mais verdade.

Depois inclinou-se levemente, baixando o tom, como quem decide deixar cair a última peça com um floreio elegante.

— Mas não te preocupes. Eu tenho paciência. Até gosto de esperar. — Fez uma pausa, estudada, quase silenciosa, deixando que o olhar deslizasse até aos meus lábios, detendo-se ali por um segundo demasiado longo. — Só não prometo manter as mãos quietas se continuares a adiar.

E então calou-se.

No entanto o que ficou no ar não era apenas desejo. Era um aviso. Um prenúncio. Um convite disfarçado de provocação.

O toque do sinal soou alto demais, cortando o momento como uma lâmina, abrupto, quase violento. Como se me arrancasse de uma vertigem onde eu não sabia se queria cair ou resistir. Peguei nas minhas coisas num gesto apressado, instintivo, com vontade de sair dali antes que algo em mim cedesse. Porém parei.

Ainda de costas, algo em mim vacilou. Fiquei ali, a respirar fundo, a tentar encontrar coragem no meio do caos miúdo que me preenchia. Atrás de mim, ouvia os sons dispersos da sala, cadeiras a arrastar-se, vozes a esbaterem-se em murmúrios, passos a desaparecerem no corredor. E, no meio disso tudo, o ruído suave dela a arrumar os seus materiais. Preciso. Calmo. Inalterado.

Quando a sala ficou vazia, ainda ali estava. Chloe.

Virei-me devagar, num gesto contido, e encontrei-a como esperava, de braços cruzados, encostada à mesa, como se aquele momento lhe pertencesse. Como se estivesse simplesmente à espera.

Da minha pergunta.

— Por que é que não contaste à Piper sobre o voluntariado?

Um vestígio de surpresa cruzou-lhe o rosto, rápido, contudo não tentou negá-lo. Apenas permaneceu ali, imóvel, os braços ainda cruzados, como se ponderasse se valeria a pena dizer a verdade, ou se eu estava pronta para ouvi-la.

Esperei.

Não com impaciência, mas com firmeza. Tentando demonstrar que não me contaria com meias respostas.

Quando finalmente falou, não havia hesitação. Nem floreados. Só a sua voz, baixa, limpa, como quem diz aquilo que sabe que precisa de ser dito.

— Ao contrário do que tu possas pensar sobre mim, eu não preciso de aplausos para fazer aquilo que acredito ser certo.

As palavras assentaram com peso. Não como uma defesa, mas como uma revelação.

Na simplicidade da resposta, havia mais do que orgulho. Havia vulnerabilidade. A de alguém que já se acostumou a ser mal interpretada, mas que, por uma vez, escolhia ser transparente. Ou quase.

O silêncio que se seguiu não era desconfortável. Era tenso, sim, todavia de outra forma. Como um espaço em branco entre duas frases importantes. Um momento que podia, se eu quisesse, mudar alguma coisa.

Ela manteve-se ali. Presente. E eu soube que aquela verdade, pequena, crua, sem ornamentos, tinha sido um presente raro.

Quando percebeu que eu não diria mais nada, que as palavras me prendiam por dentro, começou a caminhar na minha direção. Sem pressa. Passo a passo. Como se testasse os limites do espaço que ainda existia entre nós e soubesse exatamente onde cada limite terminava.

Parou à minha frente.

O meu coração acelerou numa batida desordenada, selvagem, que me encheu os ouvidos como um tambor. A tensão entre nós tornou-se quase tangível, como uma corrente invisível a prender-nos no mesmo ponto, no mesmo tempo suspenso.

Os seus olhos deslizaram dos meus novamente para os meus lábios, com uma lentidão que me deixou sem ar. O ambiente à minha volta pareceu rarefazer-se. Senti o corpo inclinar-se, impercetivelmente, como se a minha própria vontade se adiantasse à razão.

Esta aproximou-se.

Suavemente. Sem pressa. Como se quisesse que eu sentisse cada segundo daquela aproximação. Como se esperasse uma permissão silenciosa. O espaço entre nós desapareceu, reduzido ao quase. Ao que nunca se diz, mas se sente.

Fechei os olhos.

Por um instante, breve, eterno, acreditei que tudo o que tinha imaginado, tudo o que o meu corpo silenciosamente desejava, iria finalmente acontecer. A respiração dela roçou-me a pele, quente e próxima, e o mundo pareceu suspender-se à espera.

Mas no último instante, os lábios desviaram-se. Procuraram o meu ouvido, não a minha boca. O sussurro veio baixo. Quase uma carícia.

— Quando tiveres um horário disponível, avisa.

Ficou ali por mais um breve momento, tão perto que o calor da sua presença parecia escrever algo novo sobre a minha pele.

Depois afastou-se. Sem pressa. Sem olhar para trás.

Fiquei ali, imóvel, com o coração preso à ideia do que quase foi, com a certeza incômoda de que, naquele jogo silencioso que ela dirigia com maestria, eu tinha perdido mais uma vez.

 

Fim do capítulo

Notas finais:

O cerco está a apertar, e Chloe sabe exatamente o terreno que pisa. Cada passo, cada silêncio, cada toque medido, tudo é calculado com a precisão de quem não precisa de pressa, apenas de timing.

E Maya, Maya ainda tenta convencer-se de que consegue resistir. Recuando, hesitando, inventando desculpas como quem levanta muros com as mãos trémulas.

Mas até quando?

Até quando conseguirá manter-se inteira sem que algo, ou tudo dentro dela ceda, rache, imploda?

Porque o desejo não espera eternamente. Uma hora, ele deixa de bater à porta e entra. Sem permissão. Sem cerimónias.

E Maya, mais cedo ou mais tarde, vai ter de escolher: continuar a fugir ou render-se ao incêndio que já começou a consumi-la.

Mesmo que isso signifique perder o controlo.

Os dados já foram lançados. E no próximo capítulo... achas mesmo que ela vai aguentar por muito mais tempo?

 

P.S - Esqueci de avisar, este mês de Abril eu vou entrar de férias e irei viajar por mais de uma semana, por essa razão eu irei postar um capítulo semanalmente para manter a consistência. Provavelmente o próximo capítulo será postado entre sábado e domingo!

Até ao próximo capítulo!! Obrigada a quem tem acompanhado :D


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Comentários para 11 - Capítulo 10:
thays_
thays_

Em: 02/04/2025

Querida autora,

Quer nos matar do coração com essa última cena? rsrs

Não sei como Chloe consegue se manter tão controlada! Será que ela está esperando a iniciativa de Maya? Será que ela, apesar de ter consciência do efeito que causa na outra, quer que Maya tenha certeza absoluta do que está fazendo? Será que ela consegue sentir a luta interna que a outra está travando contra ela mesmo, seus desejos, suas convicções e está ali apenas observando e esperando o momento certo, tal como se observasse sua presa, sem pressa, apenas estudando as reações?

Estou adorando essa tensão entre elas!

Até o próximo capítulo!

Aproveite as férias!

Bjs!


asuna

asuna Em: 05/04/2025 Autora da história
Hahaha prometo não matar ninguém do coração ;)

Há mesmo várias formas de interpretar a forma como a Chloe lida com a Maya, e adoro que estejas atenta a cada detalhe! Mas posso garantir que, aos poucos, tudo vai começar a ficar mais claro.

Obrigada pelo carinho e por continuares a acompanhar com tanta entrega!
Vou aproveitar as férias sim e quem sabe esse descanso não traga boas ideias :)

Bjs e até já!


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