Nesse capítulo dois,
irei expor algumas cenas e pular outras tudo bem? como é um capítulo um pouco longo.
Capitulo 2
Nesse mar, os segundos
Insistem em naufragar
Esse mar me seduz
Mas é só pra me afogar
Sou errada, sou errante
Sempre na estrada
Sempre distante
Vou errando enquanto o tempo me deixar
Errando enquanto o tempo me deixar
Nada Sei | Kid Abelha
Tudo começa em 2007, eu, ainda, iria completar meus dezesseis anos. Nessa época as coisas eram um pouco... tá legal, bem diferentes do mundo digital que você está acostumado. A vida era feita dos Nokias e Motorolas, conhecidos por “tijolões”, com teclados físicos, quadrados, telas minúsculas monocromáticas verdes ou azuis e claro, quem podia comprar os flip, famosos por seu “abrir e fechar” com visores coloridos.
Nessa época tínhamos o velho e bom Orkut, centro de toda a comunicação e interação. Podíamos ser quem quiséssemos, tínhamos um pé nesse universo quase paralelo e outro no mundo real.
Os produtos que faziam sucesso, eram os batons em formato de fruta, fazíamos coleções do geloucos e alguns deles até brilhavam no escuro, uma grande sensação com os adolescentes da época.
Era um tempo em que segredos eram guardados a setes chaves, a palavra “LGBT” já circulava, mas com um peso do medo e do julgamento. Algumas pessoas chamavam de GLS que significava gays, lésbicas e simpatizantes, tudo um prelúdio do que iria se tornar anos mais à frente. As bandas de rock alternativo e pop definiam aquela época com batidas que gritavam tudo aquilo que nós adolescentes ainda não conseguíamos exprimir.
Mas ainda estávamos em 2007 e o mundo não era nada acolhedor.
Eu estudava desde novinha em um colégio de tradições holandesas chamado de Colégio Van der Meer[1]. Caminhava com minha mochila nas costas, usando um pouco do uniforme escolar, que consistia no blazer azul marinho, camisa social branca, mas ao invés de usar a saia preta como todo mundo, usava uma calça social preta que minha mãe havia comprado. Precisariam me matar para usar aquela saia preta ridícula.
Continuava andando, ouvindo um dos hits no meu mp3 de Kid Abelha. Aos poucos a fachada do colégio era vista, os tijolos expostos, vermelho-escuro, janelas enormes, com uma lateral coberta por uma vegetação que invadia o prédio com trepadeiras escalando as paredes.
Era um visual muito lindo, minha parte preferida era quando o sol no fim da tarde refletia nas vidraças, criando um efeito dourado no prédio. Meus pensamentos foram interrompidos quando uma garota mais baixa do que eu, com seus 1,60 de altura, magra, passou na frente do meu rosto. Era a minha melhor amiga, Leonor Berg.
A gente se conhecia desde a infancia, fizemos amizade logo de cara. Me lançou um sorriso animado, seus olhos claros e enigmáticos.
- Sevi, você não me ouviu chamar? Gritei seu nome umas mil vezes. – Ela estava usando o uniforme do colégio, a única diferença é que Lô usava a saia preta, com meia calça de mesmo tom. Seu cabelo louro ondulado caía como cascata até a altura da cintura.
Afastei meus fones e abri o maior sorriso que pude, derretendo aquela carranca que eu mantinha como fachada para as pessoas ficarem longe.
- Lô, eu não te escutei! – a puxei para um abraço. Ela era não só minha melhor amiga, mas parte da família. Fomos juntas desbravando aquele corredor com inúmeros alunos jogando conversa fora e todo engarrafamento de pessoas que se formavam para chegarmos até a nossa sala.
A nossa primeira aula seria do professor baixinho que por pura ironia se chamava de Maximiliano. Ele tinha um vocabulário pretensioso e um olhar superior.
- Cadê a saia desse uniforme, Oviedo? – bronqueou assim que entrei na sala. – Já deixei a secretaria avisada que não tolerarei suas más condutas de vestimenta para com a minha aula!
- Professor, minha mãe já falou com a secretaria e eles flexibilizaram. – argumentei, ainda na porta, enquanto Leonor passava para sentar no seu lugar de sempre – e não acredito que usar ou não uma saia irá influenciar ou denegrir sua qualidade de aula. Uma coisa não está vinculada a outra, certo?
- Sinceramente? você é uma garota, deveria se portar como uma e isso inclui os modos. Vá sentar no seu lugar e todos abram na página 20, vamos continuar de onde paramos.
Sentei ao lado de Leonor abrindo meu material, quando um grupo de estudantes bateram na porta pedindo para entrar, pois tinham um aviso coletivo. Foi quando a vi, com seus 1,73 de pura confiança de que nada a abalava, com os mais lindos olhos cor de avelã que chamavam atenção de qualquer um. Seu jeito despreocupado como passava as informações junto de seus colegas de turma. Transbordava uma energia que não pedia licença para ocupar espaço, muito menos não fazia esforço para impressionar, ela era simplesmente assim. Impressionante.
Seus cabelos eram longos e sedosos em tom caramelo, dava para sentir o frescor cítrico deles. A pele dourada e aveludada, corpo esbelto, boca carnuda, com um sorriso alinhado e gracioso. Não me dei conta de qual era a natureza do aviso, pois só conseguia focar na garota de 1,73, cujos olhos cruzaram com os meus de imediato, aqueles segundos pareciam minutos.
Nenhuma de nós ousou quebrar aquele contato visual, foi forte, como uma faísca inesperada. Parecia aquele momento clichê em que tudo parece ter ficado em câmera lenta. Quando ela saiu junto de seus colegas, Lô que estava ao meu lado, deu seu típico sorriso malicioso, notando todo o meu fascínio para uma das garotas que havia dado o aviso.
- Gostou do que viu? – provocou ela – sua baba pingou até na mesa.
- Cala a boca, não pingou nada. – falei, enquanto limpava a minha boca por puro reflexo.
- Qual é Sevi, acho que todo mundo percebeu que você não parava de olhar para ela com essa cara de cachorro que caiu do caminhão de mudança! – Leonor dizia com seu olhar sabichão.
O rubor em minhas bochechas entregaram o impacto daquela troca intensa de olhares com a garota, o que fez Leonor rir imediatamente.
- Mas como uma boa amiga, deixa eu te dizer uma coisa, ela não é para você.
- Por que? – rapidamente franzi o cenho em confusão e ela continuou logo a seguir.
- O nome dela é Micaela Fields, a novata da escola. Está a dois anos na frente da nossa turma. É integrante do time de vôlei da escola e totalmente inacessível. É sério Sev, ela não é para você, as meninas do time comentaram que ela é hetero. Então minha amiga, Micaela Fields é como aquele produto caro que ficam protegidos por uma prateleira com vidro, sabe? É só para olhar, não para tocar!
Continuei ouvindo o que ela dizia e cochichei antes que o professor Max brigasse conosco.
- Mas como eu nunca a vi na escola? – perguntei confusa.
- Por que você é lesa e lenta, né Sev? – Leonor dizia como se fosse o óbvio.
- Eu escuto conversas paralelas, quero que foquem no quadro e escrevam o que está sendo colocado. – o professor bronqueou a turma toda. E escutamos uns cochichos de reclamações por termos conversado.
Revirei os olhos, porém aquela história que a Lô havia contado havia me deixado inquieta. Hetero ou não, aqueles olhos e aquele sorriso eram dificeis de esquecer.
X
A professora Carla, com sua expressão austera, era morena, olhos castanhos e corpo trabalhado devido aos treinos, deveria caminhar na casa dos quarenta ou quarenta e cinco anos. Ela chamou todas para o meio do campo e começou a organizar as duplas para o exercício de aquecimento. Para minha surpresa apontou para Micaela e depois para mim.
- Sevilla, como capitã do time de futebol, quero que mostre para a novata como funciona a rotina, ok?
- Eu? – disse sem entender.
- Sim, vamos, vamos? – ela bateu palma como um gesto que queria dizer “vamos agilizar isso?”. Engoli em seco, não estava nos meus planos fazer parceria com ela. Lô que estava do meu lado, me deu uma cotovelada e com seu típico sorriso malandro soltou:
- Parece que o universo gosta mesmo de você – ela riu.
- Claro, porque estou precisando de um expresso celestial com desembarque na parada da comédia romântica, cujo motorista é o destino!
Não sabia eu que seria bem assim.
- É você que está dizendo tudo isso e não eu! Agora vai lá e mostra para a novata como tudo funciona. – ela me deu um empurrãozinho que meu corpo foi para frente.
Respirei fundo e caminhei até Micaela de forma casual, tentando não cometer nenhuma atitude embaraçosa. Ensaiando como deveria me apresentar e repassando o “Oi, eu sou Sevilla e você Micaela.” Quando fiquei de frente para ela, forcei um sorriso.
- Oi, você deve ser Sevilla – me atrapalho ao me apresentar, condenando toda a minha introdução. – Quer dizer, eu sou Sevilla e você deve ser Micaela.
Ela me olhou com um sorriso, como se estivesse se divertindo com toda a situação e claro, com minha confusão na hora de me apresentar. Meu estômago começava a embrulhar e minhas mãos suavam frio. Levei a mão ao cabelo, habito que tinha quando ficava nervosa.
- Oi, eu sei quem você é – ela falou apertando minha mão. – é a capitã do time de futebol, todos comentam que você é mais de ficar no canto.
“Quem falou isso? Que canto?”, pensava.
Aquele comentário me pegou desprevenida, então resolvi ser honesta.
- Não é que eu goste de ficar no canto, só gosto de ficar mais na minha, sem chamar tanta atenção assim.
Ela arqueou uma sobrancelha e mais um sorriso divertido apareceu naqueles lábios carnudos que me forcei a parar de olhar para aquele local. Foco Sevilla, olha para os olhos dela.
- A capitã do time de futebol não gosta de chamar atenção? – ela sorriu. – engraçado, porque eu já te notei e mesmo que você queira, é impossível não te notar.
“Como é garota? Alguém volta e me explica o que ela está falando”, refletia com essa frase dela.
O apito da professora Carla me trouxe para a realidade de novo.
- Muito bem moças, quero que corram daqui até o final do campo e mantenham o ritmo, vocês precisam largar e voltar juntas, quem tiver dificuldade, a parceira ajuda, ok?
Ela dizia explicando a atividade.
Comecei a alongar meu corpo, dar algumas esticadas nos braços e da mesma forma Micaela executava.
- Então, vai me guiar no treino? Não pegue leve só porque sou chamada de “novata” – ela piscou para mim começando a ficar na posição para correr, fiz o mesmo quesito e a professora Carla mandou a gente correr.
Começamos em silêncio, o que só aumentava meu nervosismo e foi quando ela começou a puxar conversa com uma expressão tranquila, como se estivéssemos em um café.
- Você sempre morou em Nova Amsterdam?
- Sim, embora meus avós não tenham nascido aqui, eles são espanhóis. Mas e você? Não parece ser daqui.
Com um sorriso ela balançou afirmativamente.
- Acertou. Cheguei a poucos meses, somos de São Paulo. Meu pai é das forças armadas e sempre tivemos que nos mudar quando é preciso. – ela disse – eles acreditam que uma cidade pequena seria “benéfica” para mim.
- Você parece discordar e ter fortes opiniões já.
- Eu me acostumei a cidades grandes e cidades pequenas querem te colocar numa caixa, sabe? Tipo... todo mundo ser igual.
Os olhos dela eram intensos, as falas davam curiosidade para entender seus pensamentos mais ocultos.
- Compreendo, às vezes esperam que sejamos de um jeito, quando só queremos ser livres.
- Exatamente!
- Sinto que sempre esperam que eu seja de um jeito e eu só não quero incomodar nada nem ninguém.
- Mas por quê você quer se esconder? Não acredito que seja justo com você mesma. Dê mais essa chance a você.
Ela me olhava de forma intensa, não esperava escutar aquela fala dela. O jeito que ela dizia as coisas com uma mistura de desafio e curiosidade me intrigavam. Chegamos ao final da quadra para voltarmos e de forma estranha, a volta é sempre mais rápida do que a ida.
[1] Inspirado no físico neerlandês por ter contribuído com a descoberta das partículas
Fim do capítulo
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