O Peso do Azul por asuna
Capitulo 7
O cheiro a papel envelhecido e madeira encerada preenchia o espaço, misturando-se com a luz quente que atravessava as janelas. A sala era menor do que a anterior, mas igualmente acolhedora, um refúgio moldado por prateleiras baixas repletas de livros infantis e um tapete de leitura que suavizava o chão gasto pelo tempo. A Sra. Henderson seguiu à nossa frente, os passos confiantes ecoando levemente no piso de madeira.
— Apenas por hoje, vocês vão ficar com o grupo nesta sala — explicou a Sra. Henderson, cruzando os braços com um ar relaxado. — Os mais novos preferem sentar-se no chão, enquanto os mais velhos, às vezes, gostam do seu próprio espaço. Tudo depende do dia.
Assenti, tentando absorver cada detalhe, contudo as palavras dela entravam e saíam da minha mente sem se fixarem. O peso da presença ao meu lado tornava-se cada vez mais impossível de ignorar.
Chloe.
O silêncio dela não era casual. Não era despreocupado. Era controlado. Meticulosamente mantido dentro de limites invisíveis. E, de alguma forma, isso tornava a sala menor, mais sufocante, como se o ar entre nós tivesse ganho uma densidade nova. Mantive os olhos fixos nas estantes, nos livros coloridos dispostos numa ordem caótica, fingindo interesse nas lombadas. Mas não importava quantas vezes deslizasse o olhar por elas, nada parecia prender a minha atenção tanto quanto a sua presença do meu lado.
E talvez fosse isso o que mais me incomodava.
Não era apenas a proximidade. Era o facto de que, mesmo sem dizer nada, mesmo sem sequer me dirigir uma expressão direta, ela ainda conseguia destabilizar-me. Era estranho vê-la assim. Menos desafiadora. Mais presente.
A Sra. Henderson continuava a falar, todavia as palavras dela tornavam-se apenas ruído ao fundo. O meu coração batia num ritmo descompassado, e uma irritação surda começou a crescer dentro de mim. Respirei fundo, tentando dispersar o desconforto.
— Alguma dúvida até aqui? — perguntou esta, interrompendo o turbilhão na minha mente.
Balancei a cabeça depressa demais.
— Não, está tudo claro.
Foi então que Chloe finalmente falou. A sua voz cortou o espaço entre nós de forma certeira, e soube, naquela mesma situação, que aquele silêncio cuidadoso não tinha sido mero acaso.
— Qual será exatamente a nossa divisão?
O meu corpo reagiu antes da minha mente. Virei-me na sua direção sem pensar, impulsionada por um instinto que eu própria não compreendia. No entanto esta não olhou para mim. Os seus olhos estavam fixos na Sra. Henderson, a postura impecavelmente contida, a expressão neutra. Um controle absoluto sobre si mesma. E, ainda assim… algo ali parecia errado.
Pois aquilo não era apenas uma pergunta casual.
Não era apenas logística.
Havia um peso por trás daquela voz calma, algo que escapava à sua superfície impecável. Como se estivesse a tentar compreender mais do que apenas a dinâmica do voluntariado. Ou talvez fosse coisa da minha cabeça. Talvez eu estivesse a ver, a procurar por significados onde não existiam.
A Sra. Henderson por sua vez sorriu, satisfeita com a pergunta, porém a minha atenção manteve-se em Chloe.
— Nos primeiros dias, vocês vão trabalhar juntas com o grupo. Mas, eventualmente, podem dividir-se, caso necessário. O importante é que as crianças se sintam à vontade com as duas antes de qualquer mudança.
Chloe assentiu.
Calma. Medida. Precisa.
— Certo.
O tom era neutro. Quase frio. Contudo agora que eu estava atenta, percebi que não era desinteresse. Nem simples aceitação.
Ela estava a processar. Não apenas a informação.
Mas a mim.
E isso não deveria incomodar-me. Mas incomodava.
A Sra. Henderson lançou-nos um último sinal de aprovação antes de verificar o relógio, enquanto eu permanecia ali, presa num nó invisível, sem saber se era Chloe que se tornava mais difícil de compreender ou se era eu que, começava a perceber que havia mais nela do que eu imaginara.
— Bem, temos algum tempo antes da chegada das crianças. Que tal pegarem alguns livros para conhecer melhor o acervo? Podem escolher algo que gostariam de ler para o grupo durante as próximas sessões.
— Boa ideia — sussurrei, grata pela desculpa para criar alguma distancia entre mim e ela.
Todavia, enquanto me afastava, senti novamente o peso da sua atenção a acompanhar-me. Por um instante fugaz, perguntei-me se esta também precisava daquele espaço tanto quanto eu.
E então percebi. Não importava. Porque ela também estava ali.
Perto o suficiente para que as nossas presenças fossem obrigatórias.
De repente, a sala silenciosa pareceu novamente pequena demais. Ajoelhei-me ao lado da estante, deslizando os dedos pelas lombadas coloridas dos livros infantis. A madeira estava gasta pelo tempo, os títulos impressos em fontes vibrantes, convidativas. Toquei-os sem realmente os ver, focando-me no gesto mecânico, na tentativa falha de me desligar do que me rodeava. Ela abaixou-se do meu lado.
Perto demais para ser ignorada.
Longe o suficiente para que soubéssemos que não era coincidência. Apenas inevitável.
Foquei-me nos livros. Clássicos infantis. Contos ilustrados. Mundos seguros, mágicos, onde tudo fazia sentido. Os meus olhos pousaram num exemplar de O Jardim Secreto. Passei os dedos pela capa macia, a memória distante da infância emergiu. Sempre gostei da ideia de um lugar escondido. Um refúgio que só alguns podiam encontrar.
Contudo, ao segurá-lo, compreendi algo novo.
Não era apenas sobre um esconderijo. Era sobre alguém que se sentia presa. Isolada. Até encontrar uma porta secreta para um lugar que a transformava.
Presa.
Exalei lentamente, sem completar o pensamento.
— Gostas desse? — A voz familiar interrompeu os meus devaneios.
O meu corpo enrijeceu por um momento. Era a primeira vez que falava diretamente comigo desde que chegámos ali.
Sem sarcasmo. Sem provocação. Apenas uma pergunta simples.
Assenti, ainda sem olhá-la.
— Sim. Li há muito tempo.
Ela não respondeu de imediato. Quando a mirei de relance, vi que também segurava um livro, no entanto não parecia realmente focada nele. Os seus olhos percorriam as páginas, mas algo no jeito como os seus dedos seguravam a capa, na forma distraída como virava as folhas, fez-me perceber que a sua mente estava noutro lugar.
— Frances Hodgson Burnett.
A sua voz soou baixa, quase como se falasse mais para si mesma do que para mim.
— Ela escrevia sobre crianças que encontravam cura e crescimento em lugares improváveis. — Os seus olhos pousaram no livro em minhas mãos. — O Jardim Secreto, A Princesinha… sempre a mesma essência. O isolamento antes da descoberta.
O jeito como disse aquilo fez-me encará-la de verdade desde que chegámos ali. Não era só um comentário aleatório sobre literatura. Havia algo mais. Algo na escolha das palavras. Algo no jeito como olhava para o livro sem realmente vê-lo.
— Gostas dela? Dessa escritora? — perguntei, sem pensar muito.
Deu de ombros, folheando um outro livro qualquer que havia puxado da estante.
— Não sei se gostar é a palavra certa.
O seu tom não era indiferente. Era contemplativo. Passou os dedos pela lateral das páginas, a voz ligeiramente mais baixa quando continuou.
— Mas ela entendia como os lugares moldam as pessoas. Como certos espaços podem ser tanto prisões quanto refúgios.
A minha mente girou por um momento, e então veio a lembrança. Aquele dia no café. Piper e eu encontrámo-la completamente imersa num livro sobre mitologia grega, desligada do mundo ao redor. Não como alguém que lia por hábito, mas como quem procurava algo dentro das palavras, uma verdade escondida, uma forma de questionar as narrativas que lhe foram contadas. Ou talvez um refúgio. Agora, esta falava de literatura do mesmo jeito. Como se histórias não fossem apenas histórias, mas sim um terreno a ser explorado. E, então, perguntei-me se Chloe também sentia que estava presa em algum lugar. Se os livros eram o seu esconderijo ou a sua porta de saída.
Pisquei, surpresa com o rumo dos meus próprios pensamentos.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela puxou outro livro da prateleira e ergueu ligeiramente a sobrancelha.
— Matilda. Clássico.
Desta vez, havia um traço de provocação na sua expressão. No entanto era diferente. Mais leve. Mais cuidadosa. Como se, por um momento, tivéssemos pisado num território desconhecido. E Chloe estivesse a decidir se queria ou não me deixar entrar.
— Então levas mesmo isso a sério.
Finalmente olhou na minha direção. Um lampejo de diversão surgiu no canto dos seus olhos, todavia acompanhando por algo mais profundo, algo não inteiramente revelado.
— E tu não?
O jeito como ela fez a pergunta fez-me vacilar. Porque, para mim, os livros sempre foram um refúgio seguro, um espaço de certezas. Porém para ela, talvez fossem exatamente o oposto. Enquanto eu buscava conforto nas histórias, ela procurava falhas nas entrelinhas. Eu queria acreditar nas narrativas. Ela queria questioná-las. Eu gostava de ler. Contudo não pensava nos livros como esta pensava. Para ela, não eram apenas histórias. Eram estruturas. Reflexos da vida real escondidos em metáforas e simbolismos. A forma como um autor escolhia construir uma personagem ou definir um final não era um detalhe insignificante, era uma decisão que revelava algo maior, algo que nem sempre estava à vista. E perceber isso desconcertou-me mais do que deveria.
Porque, naquele momento, a examinei sem o verniz da provocação, sem as respostas afiadas e os sorrisos de canto. Vi alguém que lia o mundo da mesma forma que lia os livros, com olhos atentos, sempre à procura do que não era dito, do que se escondia por trás das palavras.
Antes que eu pudesse formular uma resposta, a voz da Sra. Henderson ecoou pelo corredor.
— É melhor começarem a preparar a sala para que as crianças fiquem à vontade.
Aproveitei a deixa para me levantar, rápido demais, sentindo a necessidade de quebrar aquele silêncio estranho entre nós e recuperar o equilíbrio.
— Vou organizar as almofadas.
As palavras saíram apressadas, quase instintivas. O movimento foi automático, uma fuga disfarçada de eficiência. Contudo, enquanto me afastava, senti o peso do olhar azul turquesa sobre mim. Apenas como se estivesse a tentar entender. Peguei algumas almofadas e comecei a distribuí-las pelo tapete colorido.
O silêncio entre nós persistiu.
Denso.
Presente.
Quase incômodo.
Quis afastá-lo. Dissipá-lo. E buscando afastar a estranheza, perguntei sem pensar muito.
— Esse grupo costuma ter quantas crianças?
Chloe parou o que estava a fazer por um momento, como se ponderasse a pergunta.
— Depende do dia. Alguns vêm sempre, outros aparecem quando podem. — Empilhou mais alguns livros antes de completar: — Mas há aqueles que nunca faltam.
Assenti, absorvendo a informação.
— Há alguma criança que precise de mais atenção?
— Não exatamente, mas... — Apontou para os livros ao nosso redor, um leve sorriso no canto dos lábios. — Jack adora histórias de aventura, sempre escolhe os mesmos dois livros. Lily gosta de inventar finais diferentes para os contos de fadas. E o Chris… bem, o Chris finge que não gosta de histórias, mas, se prestares atenção, vais perceber que sempre fica absorvido pela narrativa.
A forma como esta falava sobre eles fez-me parar por um momento. Não estava apenas a listar nomes. Ela conhecia estas crianças. Sabia os pequenos detalhes, as suas preferências, os hábitos discretos que passariam despercebidos a quem não estivesse realmente a prestar atenção.
— Parece que já os decifraste a todos. — Murmurei, pegando um dos livros.
Ela deu um meio sorriso.
— Não é difícil. Os livros fazem as pessoas falarem, mesmo quando elas não percebem.
Por algum motivo, essa frase ficou na minha mente por mais tempo do que deveria. Estudei-a com mais atenção, como se, de repente, ela estivesse a revelar mais do que pretendia. E então, antes que pudesse filtrar o pensamento, as palavras escaparam, quase como uma confissão.
— Nunca imaginei que te encontraria a fazer voluntariado.
Assim que a frase saiu, soube que estava a dar a Chloe uma oportunidade perfeita. Ela parou o que estava a fazer por um instante e então virou levemente a cabeça na minha direção. O canto da boca ergueu-se num sorriso quase preguiçoso, os olhos refletindo aquele brilho que eu já conhecia.
— E o que te fez pensar que, com algumas interações que tivemos, já deverias saber tudo sobre mim?
A casualidade na sua voz apanhou-me desprevenida. Abri a boca para responder, mas fechei-a logo de seguida. Ela tinha um ponto. Franzi o cenho, tentando encontrar uma resposta que não me fizesse parecer tola.
— Não foi isso que eu quis dizer. — Cruzei os braços, desviando a atenção por um segundo antes de encará-la de novo. — Só… achei curioso.
Ela ergueu uma sobrancelha, fingindo ponderar.
— Curioso porque não combina comigo ou porque não combina com a ideia que tu tens de mim?
Desta vez, o seu tom não foi apenas provocador. Havia algo mais. Algo ligeiramente cortante. Uma ponta de desafio, talvez até um traço de frustração velada. Não era apenas uma pergunta. Era um questionamento mais profundo, como se estivesse a tentar entender até que ponto eu realmente a via para além da imagem que ela projetava.
Aquilo fez-me vacilar. Não porque a pergunta era difícil, mas porque eu mesma não sabia como responder.
Não combinava com a versão de Chloe que eu tinha construído?
Ou não combinava com a versão de Chloe que ela mesma deixava que os outros vissem?
Esta continuou a observar-me, como se estivesse à espera de algo que eu não sabia se conseguia dar-lhe. Porém antes que eu pudesse formular uma resposta, a voz da Sra. Henderson ecoou novamente pelo corredor.
— As crianças já estão a chegar!
Os seus olhos permaneceram fixos em mim por um segundo a mais, antes de o desviar, como se tivesse decidido deixar a questão sem resposta.
Contudo a pergunta ficou ali.
A pairar entre nós.
A sala ganhou vida. Os risos infantis encheram o espaço, pequenos passos apressados ecoando pelo chão, cadeiras sendo arrastadas, vozes animadas sobrepondo-se umas às outras. A energia transformou completamente o ambiente, dissipando o peso da conversa anterior.
Ou, pelo menos, deveria.
Mesmo enquanto tentava desviar a minha atenção para qualquer outra coisa, ainda a sentia ali.
Invisível.
Persistente.
Era apenas uma conversa trivial. Ou pelo menos deveria ter sido.
Ajustei uma pilha de almofadas no canto da sala, mantendo-me ocupada enquanto as crianças se espalhavam pelo espaço, algumas pegando livros, outras sentando-se no tapete colorido. O burburinho crescia, repleto da impaciência típica da infância.
E então, uma menina loira, de tranças meio desfeitas, parou bem na frente de Chloe.
Sem hesitação, esticou os braços, esperando.
Chloe nem precisou de pensar.
Abaixou-se de imediato, os joelhos dobrando com naturalidade, e puxou-a para um abraço seguro, envolvente, como se aquele gesto já fosse parte de uma rotina silenciosa entre as duas.
— Hey, Mia, tiveste um bom dia? — A sua voz saiu num tom baixo e reconfortante, sem a menor pressa, como se estivesse realmente disposta a ouvir a resposta.
A menina assentiu contra o seu ombro, os pequenos dedos segurando o tecido da camisola de Chloe como se não quisesse soltá-la tão cedo.
Esta não a apressou.
Apenas manteve o abraço, balançando ligeiramente para um lado e para o outro, como se aquele momento fosse algo apenas delas. Por fim, a menina afastou-se um pouco, mas sem largar completamente a sua camisola, como se quisesse prolongar o toque só mais um pouco. Chloe passou os dedos pelas tranças desalinhadas da criança, ajeitando uma mecha solta atrás da orelha num gesto quase distraído, mas cheio de familiaridade.
— Sabes que dia é hoje? — cochichou, afastando-se apenas o suficiente para encontrar os olhos da menina.
Mia franziu a testa por um segundo, ponderando, antes de sorrir, os pequenos ombros agitando-se de entusiasmo contido.
— Dia de história!
Chloe assentiu, e algo no seu rosto amenizou, um brilho diferente surgiu nos seus olhos dela. Algo mais suave. Mais íntimo.
— Exatamente. E vamos fazer um jogo…
Mia endireitou-se de imediato, os olhos brilhando com expectativa, como se já soubesse que ia gostar do que vinha a seguir. Chloe inclinou-se ligeiramente, baixando a voz para um tom conspirador, o que só fez Mia aproximar-se ainda mais, completamente imersa no momento.
— Se conseguires adivinhar o livro que vamos ler hoje… — fez uma pausa dramática, estreitando os olhos como se aquilo fosse uma aposta de alto risco. — Ganhas um chocolate.
A menina abriu a boca num “O” perfeito, levando as mãos pequeninas à boca, os olhos arregalados num espanto exagerado que me fez prender a respiração.
— A sério?
— A sério. Mas só tens uma tentativa.
Mia mordeu o lábio, os pés inquietos batendo no chão num ritmo ansioso. Olhou para a estante, como se as lombadas coloridas fossem sussurrar-lhe a resposta.
Chloe esperou.
Sem pressa.
Sem impaciência.
E então, depois de um segundo carregado de incerteza, Mia voltou-se na sua direção, mordendo o interior da bochecha, claramente dividida entre a escolha certa e o desejo pelo prémio prometido. Enquanto eu as observava de canto, senti um aperto estranho no peito. Não era apenas a interação em si. Era a forma como Chloe se inseria naquele momento.
Sem esforço.
Sem incerteza.
Eu deveria ter disfarçado a minha atenção.
No entanto não consegui.
Porque, naquele momento, foi como se mais uma vez eu estivesse a vê-la pela primeira vez.
Sem a camada de desafio.
Sem as provocações afiadas.
Apenas ela.
Alguém que sabia exatamente como falar com aquela criança, que entendia o tempo certo de esperar, que reconhecia o brilho da expectativa nos olhos pequenos e sabia exatamente como torná-lo ainda mais mágico.
E foi isso que me desarmou.
Enquanto eu tentava processar essa Chloe que ainda não tinha conhecido, um pensamento inquietante atravessou a minha mente.
Eu já não era a mesma pessoa que tinha entrado nesta sala minutos atrás.
— O Urso e a Lua! — exclamou Mia, arrancando-me bruscamente dos meus pensamentos.
Por um instante, Chloe manteve-se séria. Criando um suspense desnecessário. O sorriso dela desapareceu, contudo não porque quisesse enganar Mia, havia algo diferente na sua expressão agora. Então, inclinou ligeiramente a cabeça para o lado e soltou um suspiro teatral.
E foi nesse ápice que aconteceu.
As nossas atenções colidiram.
Foi rápido.
Quase impercetível.
Mas eu senti.
Como se, por um breve momento, ela soubesse exatamente o que eu estava a pensar. Como se tivesse percebido que eu estava finalmente a vê-la de outra perspetiva.
E o pior?
O pior foi perceber que, pela primeira vez, eu não queria quebrar aquele momento. Foi um momento breve demais para ser real, mas intenso o suficiente para deixar algo no ar. Algo que me fez prender a respiração.
Então, como se nada tivesse acontecido, esta virou-se novamente na direção de Mia, um sorriso brincando nos lábios.
— Mia, Mia, Mia… — murmurou, apertando-lhe suavemente a ponta do nariz de leve. — Como é que adivinhas sempre?
A pequena soltou um gritinho de vitória, batendo palmas freneticamente.
— Eu sabia!
— Sim, sim, és um pequeno génio. — Chloe fingiu um ar derrotado, porém o sorriso que curvou os seus lábios era genuíno. Com um gesto fluido, enfiou a mão no bolso da camisola e retirou um pequeno chocolate embrulhado, colocando-o na palma da mão de Mia.
A menina apertou o doce contra o peito como se tivesse acabado de receber um tesouro.
— Mas nada de comer antes do jantar.
— Prometo! — Mia respondeu, já correndo para o tapete, apertando o chocolate nos dedos pequenos.
Eu continuei ali.
A observar.
A absorver.
A tentar ignorar o peso daquela intensidade fugaz, o rastro silencioso que deixou dentro de mim. Mas era impossível. Porque, de alguma forma, aquilo ficou.
Uma presença invisível entre nós, pairando no ar como um eco não dissipado.
O barulho das crianças a acomodarem-se no tapete trouxe-me de volta. O burburinho de vozes animadas, os risos soltos, a forma como algumas seguravam os livros enquanto outras se encostavam preguiçosamente às almofadas espalhadas pelo chão. O espaço que antes me parecia pequeno agora fervilhava de vida.
Vi-a sentar-se no centro, de forma natural, como se aquele fosse o seu lugar.
Como se tivesse sido sempre o seu lugar.
— Antes de começarmos… — a sua voz cortou o burburinho com facilidade, porém sem esforço. — Temos uma convidada especial hoje.
Por instinto, as cabeças viraram-se na minha direção, e senti o calor da atenção coletiva pousar sobre mim como um peso inesperado.
— Esta é a Maya.
O meu nome soou estranho nos seus lábios. Diferente. Esta inclinou-se ligeiramente para a frente, apoiando os antebraços nos joelhos, com um sorriso descontraído a desenhar-se nos lábios.
— E como é a sua primeira vez, espero que se portem bem e não a assustem logo no primeiro dia.
O comentário arrancou risadas, algumas crianças lançaram-me olhares curiosos e divertidos.
— Agora… — Chloe pegou no livro escolhido e exibiu a capa. — Acho que alguns já adivinharam qual é a história de hoje.
Finalizou piscando na direção de Mia, que lhe respondeu com um sorriso satisfeito, como se partilhassem um segredo silencioso.
Uma excitação contida percorreu a sala. Pequenos corpos agitaram-se no tapete, como se tentassem conter uma energia que ameaçava transbordar. Os sorrisos ampliaram-se a cada segundo, os olhos ansiosos fixos no livro que esta segurava.
No entanto o que mais me prendeu não foi a impaciência infantil ou o entusiasmo evidente. Foi o modo como Chloe os mantinha ali, suspensos num momento que ainda nem tinha começado.
Ela não teve de pedir silêncio.
Não precisou de levantar a voz ou chamar a atenção.
Não precisou de nada.
Apenas estar ali.
A expectativa era quase palpável, vibrando no ar como um relâmpago antes da tempestade. Vi as mãos pequenas apertarem-se em punhos de entusiasmo. Algumas crianças inclinaram-se ligeiramente para a frente, como se isso as aproximasse mais da história que ainda não tinha começado.
E eu?
Eu olhei ao redor e senti algo apertar-me o peito.
Todos esperavam por ela.
Não apenas pelo livro.
Mas por ela.
Chloe segurava aquelas crianças sem precisar de esforço, sem precisar de exigir atenção, era algo natural, instintivo, como se as palavras que estava prestes a dizer já pertencessem àquele espaço, como se fosse a única pessoa capaz de lhes dar vida.
E, sem perceber, eu também me encontrava ali.
À espera.
Expectante.
Não apenas pela história.
Mas por ela. Por entender o que a tornava tão magnética.
Ela abriu o livro e começou a ler. Contudo aquilo não era apenas leitura. Era algo mais. A sua voz deslizava pelas palavras, moldava-as no ar, ora suave, ora carregada de emoção, transformando cada frase numa ponte para um mundo que só ela parecia saber como alcançar. As crianças estavam presas.
Hipnotizadas.
Os olhinhos brilhavam a cada pausa calculada. Pequenos sorrisos surgiam quando a sua entonação sugeria que algo mágico estava prestes a acontecer. De relance vi Mia encostando-se levemente ao ombro de outra menina, suspirando baixinho enquanto Chloe narrava um momento de tristeza na história, como se sentisse a emoção ecoar dentro de si. A sala estava mergulhada numa atenção absoluta. Não havia distrações, não havia inquietação, apenas um silêncio encantado, como se todos estivessem presos dentro daquele mundo que Chloe construía com as palavras.
E eu?
Eu apenas observava. Tentava compreender o que estava a acontecer diante de mim. Porque, ali, naquele momento, Chloe era uma âncora para aquelas crianças.
Para aquela história. E para algo dentro de mim que eu não conseguia nomear.
A última página foi virada. Esta fechou o livro com um movimento tranquilo e fluido, como se soubesse que não precisava de dizer nada para prolongar o encanto. As crianças ainda estavam absorvidas naquela história, naquela narrativa, como se o mundo real demorasse um pouco a regressar. Mas então, aos poucos, começaram a aplaudir, algumas rindo baixinho, outras comentando o que mais gostaram. Mia foi a primeira a abraçá-la. Chloe soltou uma risada baixa, passando os dedos pelo cabelo da menina.
O grupo começou a dispersar, algumas crianças correram para escolher mais livros, outras continuaram a falar animadamente entre si. A magia daquela ocasião dissolvia-se aos poucos, contudo eu ainda estava ali, presa na forma como ela os fazia sentir seguros, na naturalidade com que se encaixava naquele espaço, como se fosse parte dele desde sempre. Comecei a levantar-me, ainda a tentar organizar os pensamentos, quando esta passou por mim, já caminhando em direção à saída. Mas então, antes de me virar as costas, parou.
O seu olhar encontrou o meu por um segundo a mais do que o necessário. E então, com aquele tom despreocupado, mas carregado de subtexto perguntou.
— Ainda achas curioso?
O silêncio instalou-se entre nós de forma imediata. Eu soube, sem margem para dúvidas, ao que ela se referia. Porém, antes que eu pudesse sequer formular uma resposta, Chloe deu um passo na minha direção.
Aproximou-se com aquela segurança desconcertante.
Sem pressa.
Sem hesitação.
Cada passo carregava uma intenção precisa, como se soubesse exatamente o efeito que provocava em mim. Diminuindo o espaço entre nós com uma calma quase cruel, aproximando-se até o ar entre nós se tornar mais denso, quase irrespirável.
O calor do seu corpo tocou-me antes mesmo de qualquer contacto. O seu perfume, inconfundível, misturava-se ao cheiro de papel e ao eco morno da infância que ainda pairava na sala, como se aquilo existisse fora do tempo.
E então, inclinou-se, os seus lábios roçando perigosamente o contorno do meu ouvido, deixando um arrepio percorrer-me a espinha. A voz veio baixa, arrastada, carregada de algo que me fez prender a respiração.
— Curioso porque não combina comigo… ou porque não combina com a ideia que tu tens de mim?
A sua respiração roçou a minha pele, quente, traiçoeira, íntima, deixando um rasto onde antes só existiam certezas frágeis. Antes que eu pudesse reagir, antes que pudesse sequer absorver o momento, afastou-se ligeiramente, apenas o suficiente para que os nossos olhares se cruzassem.
E foi aí que aconteceu.
O canto da sua boca ergueu-se lentamente, num sorriso que era pura certeza.
Ela sabia.
Sabia exatamente o efeito que causava.
E, com uma piscadela, atrevida, confiante, perigosa, virou-se e saiu.
Deixando-me ali. Com o coração a bater demasiado rápido. Com a pergunta a queimar dentro de mim. Com a respiração presa entre o que senti… e o que ainda não conseguia admitir.
***
Há palavras que só revelam o seu verdadeiro peso quando o silêncio se instala. E há perguntas que, uma vez feitas, recusam-se a desaparecer.
Aquela ficou.
Ficou comigo nos dias que se seguiram.
Depois nas semanas.
Tentei ignorá-la. Tentei convencer-me e convencer a parte de mim que não parava de a repetir de que era apenas um devaneio.
Que não significava nada.
Mas talvez tenha sido ali, naquela sala, naquele instante suspenso no tempo… que tudo começou a mudar. Não de forma visível. Não com promessas ou certezas. Talvez com uma intensidade que ficou tempo demais. Com uma pergunta que feriu como verdade.
Ou talvez eu apenas não estivesse pronta para ver.
Porque o que realmente nos assombra, às vezes, não é a pergunta.
É a resposta.
Aquela que carregamos em silêncio.
Aquela que sabemos…, mas não dizemos.
No entanto, de alguma forma, algo entre nós ficou preso naquele momento. Algo que já não podíamos desfazer. Mesmo sem o saber, mesmo sem o nomear, a nossa história mudou de direção naquele dia.
Dez anos depois, ainda carrego o eco daquela pergunta.
E agora, relembrando esse momento a pergunta que me tinha assombrado tantas vezes voltou a surgir.
E se eu tivesse ficado?
A resposta nunca veio. E é por isso que hoje estou aqui.
Não por nostalgia.
Não por arrependimento.
Mas porque há encontros que nunca se fecham.
E talvez, só talvez... eu esteja à espera.
Não de respostas.
Mas da próxima pergunta que nos faça começar de verdade.
Fim do capítulo
Até agora, Chloe era um enigma.
Uma presença magnética, provocadora, que parecia dominar cada sala onde entrava. Mas Maya começa a observar para além da superfície, a perceber que Chloe é mais do que apenas carisma e desafio. Que, por trás da postura irreverente, existe uma garota inesperadamente complexa e… talvez ainda mais imprevisível do que parecia.
Este capítulo abre espaço para novas perceções, para silêncios que começam, lentamente, a ganhar voz.
E vocês?
Acreditam que certos encontros nos mudam para sempre?
Quero muito saber o que sentiram ao ler!
Espero que tenham gostado tanto deste capítulo quanto eu gostei de o escrever.
Vemo-nos no próximo! :)
Comentar este capítulo:
thays_
Em: 21/03/2025
Não só Maya sentiu-se surpresa com essa versão de Chloe. Mais um capítulo excelente, autora!
Adorei a parte em que ela diz que "o que realmente nos assombra, às vezes, não é a pergunta, é a resposta, aquela que carregamos em silêncio, aquela que sabemos, mas não dizemos". Adorei também a parte em que Maya percebe que Chloe sabia exatamente o efeito que causava nela.
Eu realmente acredito que certos encontros e certas pessoas nos mudam pra sempre. Às vezes é só um empurraozinho que faltava e aparece a pessoa certa no lugar certo.
Já ansiosa para o próximo! :D
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asuna Em: 22/03/2025 Autora da história
Fico tão feliz por saber que sentiste essa viragem junto com a Maya!
E também por saber que essas partes te tocaram, há coisas que carregamos em silêncio durante muito tempo, não é?
Eu pessoalmente também acredito que às vezes basta mesmo uma pessoa certa no momento especifico para abalar tudo aquilo que julgávamos certo.
Obrigada por estares aqui, a acompanhar com tanto carinho, isso dá ainda mais vida à história!
Mal posso esperar para partilhar o próximo! :D