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O Peso do Azul por asuna

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Palavras: 4781
Acessos: 650   |  Postado em: 18/03/2025

Capitulo 6

A sala de estar estava mergulhada num silêncio apenas quebrado pelo som suave do vento a bater contra as janelas. Sentada no sofá, com um livro aberto sobre as pernas cruzadas, os meus dedos repousavam distraidamente sobre a página. Contudo, não a lia. As palavras desfocavam-se diante dos meus olhos, dissolvendo-se numa névoa de pensamentos que insistiam em puxar-me para longe.

Pele e Sensação.

O tema pairava na minha mente como uma sombra persistente. Quanto mais tentava afastá-lo, mais ele se enraizava nos meus pensamentos, trazendo consigo a lembrança da conversa na aula de fotografia. A forma como Chloe falou sobre a pele, como algo que guarda memórias, um registo silencioso da vida, um espaço onde o mundo nos toca e nos marca, despertava algo dentro de mim. Algo incómodo. Passei a mão pelo rosto, soltando um suspiro frustrado.

Não deveria ser tão difícil concentrar-me num simples livro.

Mas ali estava eu, incapaz de afastar o calor difuso que se espalhava pelo peito sempre que me lembrava do seu olhar intenso, da forma como inclinou ligeiramente a cabeça, estudando-me, como se esperasse por uma resposta que nem eu mesma sabia formular.

"E será que fotografar é suficiente para isso?"

As palavras ecoaram, baixas, quase num sussurro. Fechei os olhos por um instante, como se pudesse apagar aquele momento. Mas não adiantava. O desconforto permanecia, instalado entre as batidas do meu coração. Precisava de uma distração. Algo que me tirasse daquele estado. Porém, antes que pudesse tentar novamente focar-me no livro, o toque do celular cortou o silêncio abruptamente, fazendo-me sobressaltar.

O nome no visor fez o meu estômago revirar.

Pai.

Respirei fundo antes de atender, tentando controlar a respiração para que a minha voz não denunciasse o aperto no peito.

— Olá, pai.

— Maya, minha filha! — A voz dele soou calorosa, contudo havia um peso subjacente. — Como foi o primeiro dia de aulas?

As palavras dançavam na minha garganta, todavia nenhuma parecia suficiente para descrever a confusão do dia. Como poderia explicar tudo o que senti sem abrir portas ao que eu mesma temia atravessar?

— Correu bem. A escola é… diferente do que estou acostumada, mas acho que vai ser uma boa experiência.

Ouvi o seu riso abafado do outro lado.

— Diferente? Sabes, quando eu tinha a tua idade, também achava que sair da nossa cidade seria emocionante. Porém, o mundo nem sempre é como esperamos.

Havia um subtexto naquelas palavras, algo subtil, mas inegável. Um aviso. Um lembrete.

— Espero que estejas a lembrar-te dos teus valores, Maya. É fácil perder-se num ambiente novo, especialmente num lugar onde nem todos partilham a mesma fé. Lembra-te do que conversámos antes de ires.

O peito apertou-se. As palavras ecoaram na minha mente, tão familiares quanto as paredes da casa onde cresci.

"Guardai-vos para que não sejais contaminados pelo mundo."

Os meus dedos deslizaram pelo livro aberto sobre as pernas.

— Eu sei, pai. — murmurei, fixando o olhar no título do capítulo, como se isso bastasse para conter a turbulência dentro de mim.

— Já encontraste uma congregação para frequentar?

A pergunta veio como uma lâmina afiada, cortando qualquer tentativa de fuga.

Vacilei.

Durante todo o dia, nem sequer pensara nisso.

— Ainda não tive tempo.

A resposta saiu rápida demais. Uma desculpa mal formulada. O silêncio que se seguiu foi longo. Denso. Cheio de significados que não precisavam de ser ditos.

Depois, o suspiro.

— Maya... já falámos sobre isso antes. — O tom dele era sereno, no entanto carregava um desapontamento velado. — Já se passaram algumas semanas e ainda não procuraste uma congregação?

O desconforto cresceu, enrolando-se à volta dos meus ombros como um peso invisível.

— Eu sei, pai, mas os dias foram corridos. Ainda estou a adaptar-me.

— Eu entendo.

Mas não era compreensão o que a sua voz carregava, e sim resignação. Como se estivesse a aceitar algo que não queria. Apertei os dedos contra o tecido da calça, tentando ancorar-me ao momento. Procurei uma saída. Algo para desviar a conversa. Agarrei-me à única coisa que poderia soar como algo positivo.

— Ah… inscrevi-me num programa de voluntário.

O silêncio do outro lado foi quase impercetível, no entanto longo o suficiente para me fazer prender a respiração.

— Um programa de voluntário?

O tom não era de entusiasmo. Mordi o interior da bochecha, resistindo à vontade de me justificar antes mesmo que ele dissesse qualquer coisa.

— Sim. — Forcei um sorriso, como se ele pudesse percebê-lo através do telefone. — Leitura para Crianças em Situação de Vulnerabilidade.

Outra pausa. Mais longa. Mais densa.

— Maya… há muito trabalho voluntário dentro da congregação. Muito serviço que glorifica o nome de Deus.

O meu sorriso tremeu. Os meus dedos apertaram involuntariamente a lateral do sofá.

— Eu sei, pai, mas… é um bom projeto. — A minha voz saiu mais baixa do que eu desejava. — Eles ajudam crianças que estão a passar por dificuldades, e a leitura pode ser um conforto para elas.

— E quem melhor para dar conforto do que a palavra de Deus? — A voz dele veio mais firme agora. — Acautelai-vos para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas. — O fervor nas suas palavras fez-me prender o fôlego. — Não te esqueças de onde está o verdadeiro propósito.

Endireitei-me no sofá, como se isso pudesse conter a pressão crescente dentro de mim. Eu não queria discutir. Não queria que ele achasse que me estava a afastar do que ele me ensinou.

— Pai, eu só… achei que poderia ser uma forma de ajudar.

— E é. — O suspiro dele atravessou a linha. — Mas lembra-te de que há muitas formas de ajudar que também fortalecem a tua fé. Sem que percas o foco.

Foco.

Foi então que algo dentro de mim se deslocou. Um lampejo de memória, um fragmento do passado emergindo com força, trazendo consigo um calor há muito esquecido. Eu tinha dez anos. A igreja estava mergulhada na penumbra de uma noite silenciosa, iluminada apenas pela luz bruxuleante das velas. O meu pai pregava naquela noite, e eu estava sentada no banco da frente, sentindo cada palavra como um chamado. O sermão falava sobre propósito, sobre como Deus nunca nos abandonava, mesmo nos momentos de incerteza. Lembro-me da forma como a minha pele se arrepiou quando ele citou Isaías:

"Ainda que as águas transbordem, eu estarei contigo."

Aquelas palavras tinham sido um farol para mim. Naquela época, tudo fazia sentido.

Eu pertencia àquilo. A fé preenchia-me, aquecia-me como um cobertor em noites frias. Naquele momento, eu soube, com uma certeza que agora parecia distante, que nunca estaria sozinha.

Mas agora?

Agora, sentada num sofá estranho, a quilómetros de tudo o que conhecia, essa certeza parecia apenas uma lembrança esbatida, um eco de algo que um dia fora inabalável. A fé que antes me envolvia como um escudo agora parecia uma sombra do que já tinha sido. Respirei fundo. Contando mentalmente até três.

— Vou procurar uma congregação no fim de semana.

A promessa saiu num tom mais baixo do que eu pretendia. O silêncio do outro lado arrastou-se por mais um segundo antes da resposta.

— Espero que sim.

Simples. Curto. Sem a aprovação que eu esperava. Por mais que não quisesse admitir, aquilo doeu mais do que qualquer reprimenda. A despedida foi breve. Quando desliguei, o silêncio da casa pareceu expandir-se, tornando-se quase ensurdecedor. O livro ainda estava aberto sobre as minhas pernas, contudo as palavras eram apenas borrões sem significado. Fechei-o. Os meus ombros estavam mais pesados. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de lidar com tudo isto. Porém, por agora, apenas me recostei no sofá, encarando o teto, tentando ignorar o peso crescente dentro de mim. E, perguntei-me se conseguiria equilibrar-me entre dois mundos que pareciam puxar-me em direções opostas. O pensamento persistiu, como um peso invisível sobre o meu peito. O barulho da casa parecia distante, o vento contra as janelas, o leve ranger da madeira sob os meus pés quando me movia no sofá. Tudo parecia longe demais, abafado pelo turbilhão na minha mente. O meu olhar vagueava pelo teto, mas não via nada.

Igreja.

O som da palavra ecoava na minha mente, carregado de expectativa. Não do meu pai, desta vez. Mas minha. Deveria procurar uma congregação, como tinha prometido. Deveria fazer algo para aliviar aquele nó no estômago, para provar a mim mesma que ainda sabia quem eu era. Antes que pudesse continuar a alimentar esse ciclo de pensamentos, uma batida suave na porta trouxe-me de volta à realidade.

— Maya?

Pisquei, levando um segundo para perceber que Amanda estava ali, encostada ao batente da porta da sala, um sorriso suave no rosto.

— O jantar está pronto.

Assenti, fechando o livro que nem tinha lido, e levantei-me.

— Já vou.

Os passos até à cozinha pareceram mais longos do que deviam. Como se algo ainda me puxasse para trás, impedindo-me de estar completamente presente no momento. O cheiro de comida quente preencheu o ar quando me sentei à mesa. Amanda já se servia, enquanto Piper estava ao seu lado, o cotovelo apoiado na mesa, deslizando distraidamente o garfo pelo prato. As vozes delas misturavam-se numa conversa sobre algo que acontecera na escola, mas as palavras pareciam distantes, como se eu estivesse a assistir de fora. O peso na minha mente não tinha desaparecido. A pergunta martelava dentro de mim, crescendo no fundo da minha consciência. E então, sem pensar, como se as palavras tivessem escapado por conta própria, ouvi-me dizer:

— Amanda, conheces alguma igreja por aqui?

O silêncio que se seguiu foi imediato. Amanda parou por um instante, os talheres suspensos no ar, como se estivesse a processar a pergunta. Piper também ficou imóvel. Não olhei diretamente para ela, contudo senti o seu olhar de soslaio cravar-se em mim. Não foi um olhar de julgamento. Foi algo diferente. Amanda piscou, como se voltasse a si.

— Hum… há algumas na cidade. Depende do que procuras.

Ela tentou manter a voz neutra, mas havia uma hesitação ali. Como se estivesse a escolher as palavras antes de responder. Piper ergueu uma sobrancelha levemente, deixando escapar um olhar curioso na minha direção.

— Já te vi algumas vezes com a Bíblia na mão, lendo cada página com tanta atenção. No início achei que fosse só curiosidade.

A sua voz saiu calma, sem ironia, apenas genuinamente intrigada. Amanda lançou-lhe um olhar suave, acolhedor.

— Maya cresceu com certas tradições. Faz sentido querer manter algumas delas por perto.

Piper assentiu lentamente, porém notei um brilho questionador surgir nos seus olhos.

— Certo, mas pensei que a ideia de um intercâmbio fosse abrir horizontes. Já estamos no século 21, achas que ainda precisas dessas tradições aqui?

A sua frase saiu com uma leve curiosidade, no entanto antes que pudesse refletir ou ate mesmo responder a sua pergunta, Amanda interveio com delicadeza.

— Às vezes é importante manter algumas raízes do passado quando estamos num ambiente tão diferente. É normal que a Maya procure algo que lhe dê algum conforto e familiaridade.

As palavras de Amanda soaram compreensivas e reconfortantes, livres de qualquer julgamento, intensificando ainda mais o conflito dentro de mim. O ambiente parecia ganhar peso à minha volta, com o olhar atento e genuinamente curioso de Piper pousado sobre mim. Uma parte minha queria dizer algo convincente, explicar de uma forma lógica e clara por que eu ainda sentia a necessidade dessas tradições. Mas como poderia explicar algo que nem eu própria compreendia totalmente? Respirei fundo, procurando dentro de mim algo que pudesse justificar a minha necessidade de manter essas tradições. Mas quanto mais buscava, menos clara era a resposta. E ali, diante do olhar compreensivo de Amanda e da curiosidade paciente de Piper, percebi que talvez não precisasse de ter todas as respostas agora. Talvez bastasse ser sincera sobre o que sentia.

Por fim, sem responder diretamente a Piper, deixei escapar num tom mais baixo do que pretendia, quase defensivo, mas com a vulnerabilidade clara nas minhas palavras:

— Só… algo mais tradicional. — A minha voz soou contida, sem força para contrariá-la, mas autêntica na sua simplicidade.

Amanda assentiu lentamente, mantendo o sorriso acolhedor.

— Vou perguntar a alguns colegas.

— Sim.

Assenti, todavia, a minha mente já estava longe, perdida num emaranhado de pensamentos que eu não conseguia organizar. O silêncio de Piper pesava mais do que qualquer resposta que eu pudesse receber. Ela não disse mais nada, no entanto o jeito como girava distraidamente o garfo sobre o prato, sem realmente comer, sugeria que ainda havia algo por dizer, algo que optou por guardar para si. A forma como ela permanecia calada era denso, carregado de uma inquietação subtil que parecia envolver toda a mesa. Eu sentia, sem entender exatamente porquê, que havia mais ali, algo importante que Piper talvez estivesse a considerar ou a decidir se deveria partilhar comigo. Essa incerteza silenciosa incomodava-me profundamente. De alguma forma, aquilo importava mais do que qualquer palavra dita.

 

***

 

A manhã chegou envolta numa tranquilidade estranha, quase ensaiada. O murmúrio abafado da casa, o som distante da chaleira na cozinha… tudo parecia deslocado, como se o dia ainda hesitasse em começar.

Terceiro dia.

Desde a aula de fotografia, eu evitava Chloe cuidadosamente, mantendo uma distância segura, desviando o olhar sempre que percebia que ela poderia notar-me. Não trocámos uma única palavra, e era intencional da minha parte. A cada movimento seu, eu sentia-me obrigada a recuar um passo. Esta ainda circulava pela casa dos Walsh com a mesma naturalidade de sempre, movendo-se como se pertencesse àquele espaço tanto quanto Piper ou os seus pais.

Mas, à medida que eu me afastava, percebi que Chloe parecia ajustar cuidadosamente o tom das suas provocações. Já não eram tão descaradas, tão diretas. Em vez disso, havia uma suavidade estratégica nos seus comentários, como se estivesse a medir cada um deles, a experimentar até onde podia ir sem que eu recuasse completamente.

Os seus olhares continuavam demorados, os sorrisos ligeiramente enviesados. Era como se esperasse por algo, uma reação, um dilema, um deslize da minha parte que lhe desse qualquer pista.

E talvez, exatamente por isso, eu me sentisse ainda mais inquieta.

Desci as escadas devagar, os passos preguiçosos contra a madeira, tentando convencer-me de que estava apenas cansada. Apenas distraída. Mas, no instante em que virei o corredor, Chloe apareceu. Ela cruzava a entrada acompanhada por Piper, segurando um copo térmico nas mãos, distraída com qualquer coisa que Piper dizia. O choque de movimento foi rápido, súbito, e por um instante quase esbarrámos uma na outra. Chloe ergueu os olhos na minha direção, um sorriso leve a brincar-lhe nos lábios enquanto recuava ligeiramente, protegendo o copo térmico com uma das mãos.

— Cuidado, novata. Não vais querer começar o dia a derramar café quente por aí. — Sussurrou, a voz baixa o suficiente para Piper não captar, mas carregada daquele tom que sempre me desarmava.

Os seus olhos encontraram os meus por um segundo longo demais. Não havia pressa em afastar-se, nenhuma intenção real de apenas seguir caminho. Engoli em seco, sentindo o impacto da sua proximidade antes de conseguir reagir.

— Vou ter mais atenção — murmurei por fim, num tom baixo que não consegui disfarçar.

Chloe inclinou ligeiramente a cabeça, como se estivesse a avaliar se acreditava em mim. Depois, com um sorriso quase pensativo, afastou-se devagar, tomando um gole do café. Piper por sua vez soltou um riso curto, inclinando-se ligeiramente para me observar com diversão mal disfarçada, os olhos oscilando entre mim e Chloe antes de morder a própria maçã.

— Bem, olha só quem resolveu juntar-se ao mundo dos acordados. — disse, cruzando os braços com um sorriso carregado de malícia. — Já que estás funcional, vamos? O Jayden já está lá fora, e se eu acabar no banco de trás novamente por tua culpa, exijo compensação em forma de café.

Suspirei e apenas assenti, ajustando a mochila no ombro antes de as seguir para fora.

Assim que Jayden estacionou o carro, despedi-me brevemente de Piper e saí rapidamente, dirigindo-me ao prédio com a intenção de fazer um desvio até ao meu armário antes da aula. Os passos apressados dos alunos ecoavam pelo chão de linóleo, misturando-se ao som de armários a serem abertos e fechados, um vai-e-vem contínuo de metal a chocar-se. O cheiro de papel recém-impresso pairava no ar, mesclado com um traço sutil de café derramado e o perfume barato de desodorizantes exageradamente aplicados. Grupos de estudantes espalhavam-se ao longo dos corredores, alguns recostados nos armários, outros sentados em bancadas improvisadas nos parapeitos das janelas, rindo baixinho de algo visto nas telas dos celulares.

Quando cheguei ao meu armário, destravei o cadeado e, por um breve instante, os meus olhos percorreram o corredor de forma quase involuntária.

Dessa vez, nada.

Sem plateia.

A constatação veio e passou depressa, um pensamento solto, despretensioso, mas que deixou um gosto estranho na minha mente. Como se eu estivesse à espera de que ela estivesse ali. Respirei fundo e concentrei-me no que realmente importava: os livros. Fiz uma rápida revisão mental do horário enquanto deslizava os dedos pelas lombadas gastas.

Literatura. Primeira aula.

Peguei o livro de capa dura e segurei-o firme entre os dedos por um momento, sentindo o peso familiar.  A manhã seguiu o seu curso entre discussões literárias e anotações dispersas. Passei pelas aulas sem muito esforço, imersa num ritmo que já começava a parecer rotina. Entre o burburinho dos corredores e o som intermitente dos professores a escrever no quadro, o meu foco oscilava, contudo, mantinha-se suficientemente alinhado para chegar ao final do dia sem distrações desnecessárias. Antes que me desse conta, o toque final da última aula ecoou pelos altifalantes, libertando os alunos para a tarde. O som de cadeiras a arrastar-se e mochilas a serem fechadas encheu a sala, e, em minutos, já estava do lado de fora do prédio, sentindo o calor do sol a filtrar-se por entre as folhas das árvores.

O voluntariado.

Parei por um instante, puxando o celular do bolso para verificar o horário. Ainda tinha tempo suficiente para respirar antes de me apresentar no centro comunitário. Olhei ao redor, localizando o ponto de ônibus que Piper tinha mencionado na noite anterior.

"Não tem erro, é o segundo depois da escola. Se acabares no terminal, parabéns, oficialmente perdeste-te."

Revirei os olhos com a lembrança da forma exagerada com que ela explicara, mas, no fundo, estava grata pela dica. Não queria parecer completamente desorientada logo no primeiro dia do programa. Caminhei até ao local, ajustando a mochila no ombro enquanto esperava. O vento morno da tarde soprava suavemente, enquanto o veículo se aproximava, respirei fundo, sentindo uma pontada de ansiedade misturar-se à antecipação.

Leitura para Crianças em Situação de Vulnerabilidade.

Inscrevera-me no programa sem pensar demasiado, como uma forma de ocupar o tempo, de tentar fazer algo significativo fora do ambiente escolar. Porém agora, com a tarde a estender-se à minha frente e o compromisso a tornar-se real, uma inquietação subtil instalou-se no fundo da minha mente. Ainda assim, quando o veículo parou, subi os degraus sem hesitar. A viatura seguiu o seu trajeto, atravessando ruas que eu ainda não conhecia. A cidade parecia diferente vista daquele ângulo. Fora do caminho habitual entre casa e escola, as construções ganhavam novas formas, os rostos desconhecidos nas calçadas traziam uma sensação de deslocamento que eu ainda tentava aceitar. Enquanto observava a paisagem passar pela janela, fui revisando mentalmente as instruções que tinha recebido sobre o programa. O e-mail dizia que eu deveria apresentar-me na receção e que, naquele primeiro dia, apenas conheceria a dinâmica do espaço antes de começar oficialmente com as crianças. Quando o veículo parou no ponto certo, desci com um fôlego contido.

O edifício à minha frente era simples, mas acolhedor. A fachada, num azul-claro desgastado pelo tempo, trazia um ar familiar, com algumas janelas abertas, deixando escapar o som abafado de vozes infantis e risadas. Sobre a porta, um letreiro exibia o nome do centro comunitário, acompanhado por uma frase que parecia capturar a sua essência:

"Pequenos gestos, grandes mudanças."

Apertei os dedos contra a alça da mochila antes de atravessar a porta de vidro. Lá dentro, o ambiente era ainda mais aconchegante do que eu imaginara. Murais coloridos e desenhos infantis cobriam as paredes, entre cartazes motivacionais rabiscados em caligrafias apressadas. O cheiro de papel e giz de cera misturava-se ao leve aroma de café que vinha de uma sala próxima. Do outro lado do balcão improvisado, uma senhora de cabelos grisalhos levantou os olhos de uma pilha de papéis, avaliando-me com curiosidade antes de abrir um sorriso caloroso.

— Deves ser a Maya, certo?

Endireitei a postura, surpresa por ela já saber o meu nome.

— Sim, sou eu.

Assentiu e ajustou os óculos.

— Ah, ótimo. Estávamos à tua espera. Sou a Sra. Henderson, coordenadora do programa de leitura.

O seu olhar transparecia uma mistura de experiência e entusiasmo, como alguém habituado a receber novos voluntários, mas que ainda encontrava prazer naquilo.

— Espero que tenhas encontrado o caminho sem dificuldades.

— Sim… — comecei lembrando-me da explicação detalhada (e um tanto exagerada) de Piper. — Recebi boas instruções.

A Sra. Henderson riu baixo.

— Isso é bom. Alguns voluntários acabam no local errado e chegam atrasados no primeiro dia. Porém, vejo que és pontual.

Ela pegou uma pasta e fez um gesto para que eu a acompanhasse pelo corredor estreito. Enquanto caminhávamos, os meus olhos absorviam cada detalhe ao redor. As estantes transbordavam de livros infantis e juvenis, pequenas mesas estavam espalhadas pelo ambiente, e um tapete colorido ocupava o centro da sala de atividades. Tudo ali parecia meticulosamente pensado para acolher. A Sra. Henderson parou diante de uma porta entreaberta, acenando para que eu entrasse. Era uma sala bem iluminada, com almofadas dispostas em círculo no chão e mais uma vez estantes repletas de histórias à espera de serem lidas.

— Este é o espaço onde passarás a maior parte do tempo — explicou, deslizando os dedos pelos livros organizados. — Aqui, a leitura é mais do que aprendizado. Queremos que seja um momento de refúgio.

Pegou um dos livros, folheando algumas páginas antes de continuar:

— A maioria das crianças que atendemos vem de contextos difíceis. Algumas estão em lares temporários, outras enfrentam dificuldades financeiras severas, e há aquelas que passaram por experiências traumáticas. Para elas, este espaço representa algo além das palavras escritas.

Engoli em seco. Sabia que o programa era voltado para crianças em situação de vulnerabilidade, no entanto ouvir aquilo de forma tão direta tornou tudo ainda mais real.

— Não queremos que vejam a leitura como uma obrigação — continuou devolvendo o livro à prateleira. — O nosso objetivo é que encontrem aqui um escape, um mundo onde possam ver-se representadas e perder-se, nem que seja por alguns minutos.

Assenti lentamente. O voluntariado, que antes parecia apenas uma forma de ocupar o meu tempo, começava agora a ganhar um novo significado. A Sra. Henderson observou-me por um instante, como se analisasse a minha reação, antes de abrir um pequeno sorriso.

— Nas primeiras semanas, estarás acompanhada por uma voluntária mais experiente. Isso ajuda não só na adaptação à rotina, mas também para que as crianças se sintam mais confortáveis. Algumas criam laços rapidamente, outras precisam de tempo.

— Faz sentido — murmurei, cruzando os braços.

Ela assentiu.

— O teu grupo chega no período da tarde, depois da escola. Algumas correm para escolher os livros e adoram contar sobre o dia. Outras… demoram a abrir-se. — Seu tom suavizou. — Algumas passaram por situações que nós jamais poderíamos imaginar. Mas paciência faz toda a diferença.

O peso daquelas palavras pousou sobre mim. Uma responsabilidade que eu ainda não sabia exatamente como carregar. A Sra. Henderson recuou ligeiramente, gesticulando na direção da porta.

— Não te preocupes demasiado. Hoje é só uma introdução. Quero que conheças o espaço, vejas como tudo funciona e te familiarizes com o ambiente.

Soltei um suspiro leve, tentando afastar a ansiedade crescente.

— Certo.

Ela sorriu.

— Ótimo. Acho que a outra voluntária já chegou. Vou apresentar-vos e mostrar o restante do centro.

Respirei fundo enquanto a seguia para fora da sala, tentando ignorar a leve tensão que crescia no fundo da minha mente. O peso daquela responsabilidade parecia ter dobrado nos últimos minutos. Caminhámos pelo corredor até uma área mais ampla, onde uma mesa de madeira ocupava o centro do espaço, cercada por algumas cadeiras.

Foi ali que a vi.

Encostada na beirada da mesa, segurando um livro entre os dedos longos e finos, estava Chloe. O choque foi instantâneo. A loira ergueu o olhar no mesmo momento em que a Sra. Henderson abriu a boca para falar e, assim que os nossos olhos se cruzaram, vi a surpresa atravessar-lhe o rosto. Foi um instante breve, mas nítido o suficiente para perceber que ela também não esperava encontrar-me ali.

Ótimo.

Porque, claro, tinha de ser assim.

Porque, de todos os anúncios de voluntariado afixados na secretaria da escola, de todas as opções que eu poderia ter escolhido, de todas as possibilidades existentes, eu acabaria precisamente nesta.

Porque, de todas as pessoas possíveis, de todas as combinações que o universo poderia ter escolhido, o destino resolveria colocar-me no mesmo espaço que ela.

A cada escolha que faço, a cada novo passo que dou, lá está ela. Como se o universo estivesse empenhado em garantir que nunca pudéssemos evitar-nos completamente.

— Maya, esta é a Chloe — disse a Sra. Henderson, sem notar a tensão que pairava no ar. — Ela já faz parte do programa há um tempo e vai ajudar-te nas primeiras semanas.

Chloe piscou, como se precisasse de um segundo extra para processar as palavras da coordenadora. Mas, ao contrário do que eu esperava, a sua expressão não se fechou num sorriso provocador, nem surgiu a habitual réplica cortante.

Ela apenas assentiu.

— Claro — sussurrou, a voz saindo calma, ponderada.

A forma como as suas sobrancelhas se arquearam ligeiramente, como se estivesse a avaliar o momento, não me passou despercebida.

— Acho que posso fazer isso.

A minha respiração vacilou por um segundo. Não pelo que ela disse. Mas pelo tom que utilizou. Sem a provocação de sempre. Sem o sarcasmo afiado a que eu já estava habituada.

Era estranho.

Desconcertante.

E talvez fosse isso o que mais me incomodava. Não soube o que responder. Por um instante, considerei pedir aos céus alguma explicação razoável para aquela ironia. Mas decidi que seria um pedido desperdiçado. Soltei um suspiro contido e forcei um aceno.

— Certo.

A Sra. Henderson, satisfeita, bateu levemente as mãos uma na outra.

— Perfeito! Tenho a certeza de que vocês duas vão entender-se bem. Agora, venham, vou mostrar-vos o restante do centro antes da chegada das crianças.

Segui os seus passos, tentando manter a compostura, mas a sensação de que Chloe ainda me observava permaneceu.

Como se tentasse decifrar algo.

E, sinceramente, eu também tentava.

Caminhámos pelo corredor atrás da Sra. Henderson, e aquela presença ao meu lado tornou-se impossível de ignorar. Aquela pessoa, que antes parecia sempre pronta para um comentário carregado de provocações veladas, agora se mantinha em silêncio, acompanhando o percurso com um foco incomum. Fiz um esforço consciente para não olhar na sua direção, para não reparar na forma como caminhava com as mãos nos bolsos, no modo como os seus olhos percorriam as prateleiras de livros infantis, como se reconhecesse cada um, no jeito distraído com que analisava os espaços ao redor, como se realmente se importasse com aquele lugar.

E, apesar de tudo, reparei. Porque aquela Chloe, sem os jogos verbais cuidadosamente ensaiados, sem o escudo do sarcasmo, parecia diferente. E essa diferença fazia com que eu quisesse continuar a observá-la.

— Como mencionei antes, este é um espaço seguro para as crianças — continuou a Sra. Henderson, desacelerando o passo para nos permitir absorver o ambiente. — A leitura é a nossa principal ferramenta, mas também incentivamos atividades criativas.

Ela apontou para um mural próximo, onde folhas de papel coloridas estavam presas com prendedores de madeira. Em cada uma, pequenos desenhos e frases estavam rabiscados em diferentes caligrafias infantis.

"O meu lugar favorito no mundo é aqui."

"Os livros levam-me para onde eu quiser."

"Aqui ninguém grita."

"Alguém sempre me ouve."

Os meus olhos pousaram na última frase, e um peso estranho acomodou-se dentro do meu peito.

"Alguém sempre me ouve."

Engoli em seco, desviando o olhar rapidamente. A frase era simples. No entanto, por alguma razão, ficou presa na minha mente. Talvez porque, por tanto tempo, falar e ser ouvida pareceram coisas completamente diferentes.

 

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Nem sempre estamos preparados para os encontros que o destino nos reserva.

Maya queria ocupar a mente, encontrar algo que lhe desse propósito longe de casa. Mas, por mais que tente evitar certas conexões, o universo parece ter outros planos. E Chloe… bem, Chloe continua a ser um mistério difícil de ignorar.

Spoiler: algumas respostas não vêm em palavras, mas nos pequenos gestos e talvez Maya esteja prestes a perceber isso.

O que acham? Quero saber as vossas teorias! 

Vemo-nos no próximo capítulo!


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Comentários para 7 - Capitulo 6:
thays_
thays_

Em: 20/03/2025

Acho que Maya ainda terá um longo caminho pela frente até conseguir descobrir quem ela realmente é.


asuna

asuna Em: 21/03/2025 Autora da história
Sem dúvida! A jornada da Maya ainda agora começou. Vamos ver como será o seu crescimento ao longo deste processo de descoberta.
Estou curiosa para saber a tua opinião sobre o próximo capítulo!


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Lilian Santos
Lilian Santos

Em: 19/03/2025

Muito bom, interessante e intenso,  parabéns autora!  Estou curiosa para saber como está a Chloe atualmente. Religiões foram feitas para nos prender e ficarmos ignorantes em todos os aspectos. Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Simples assim. 


asuna

asuna Em: 19/03/2025 Autora da história
Fico tão feliz que estejas a gostar!
Ainda há muito mais por vir, e mal posso esperar para mostrar mais sobre a Chloe e começar a introduzir a narrativa no presente.

Obrigada pelo carinho e por estares a acompanhar!


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