O Peso do Azul por asuna
Capítulo 5
O dia arrastava-se num ritmo estranho, oscilando entre momentos apressados e uma lentidão exasperante. Entre as apresentações das disciplinas, os professores a explicarem as diretrizes para o ano letivo e o burburinho constante dos alunos à minha volta, a sensação de deslocamento agarrava-se ao meu peito, pesada e persistente.
Piper deixara-me à porta da minha primeira aula com um gesto despreocupado e um “Tenta não parecer tão perdida.” Depois disso, fiquei por minha conta. Durante toda a manhã, esforcei-me para ser invisível. Movia-me pelos corredores como uma sombra, evitando chamar atenções enquanto tentava memorizar o caminho entre as salas. O sotaque australiano exigia mais concentração do que eu gostaria de admitir, e a inquietação dentro de mim só fazia crescer a cada minuto que passava.
Na hora do almoço, tinha combinado encontrar-me com Piper, contudo aproveitei a oportunidade para finalmente localizar o meu armário. Cruzei o corredor, desviando-me dos grupos de estudantes reunidos em conversas animadas, até parar diante do número 212.
Girei o cadeado. Nada.
Tentei novamente, desta vez ajustando os números com mais precisão. Ainda nada. Mordi o lábio, franzindo a testa. O que estava a fazer de errado? Percorri o papel que me fora entregue na secretaria, conferindo a combinação correta. Inspirei fundo, rodei os números mais uma vez, puxei a maçaneta...
Nada.
Soltei um suspiro frustrado. Tentei de novo. O cadeado permaneceu imóvel. O ar saiu-me devagar dos pulmões, a frustração crescendo dentro de mim. Ótimo. Primeira manhã e já estava a perder para um pedaço de metal.
Então, ouvi uma voz atrás de mim.
Familiar.
Demasiado familiar.
— Realmente, só os novatos têm dificuldade em abrir o armário. — A pausa foi breve. — Mas, quando a novata és tu… algo incrivelmente fascinante acontece.
A minha respiração vacilou por um instante, no entanto recuperei-me rapidamente. Fechei os olhos por um segundo antes de me virar. E lá estava ela. Encostada ao armário do lado, os braços cruzados, o meio sorriso nos lábios e aquele olhar azul-turquesa a brilhar sob a luz fria do corredor. Parecia completamente à vontade, como se o mundo se moldasse ao seu ritmo, e não o contrário.
Só agora percebia algo que antes me escapara. Sempre me concentrara na forma como Chloe deslizava pelo espaço sem esforço, como se as coisas simplesmente acontecessem à sua volta sem que precisasse de tentar. Porém, naquele momento, enquanto o meu olhar se demorava nela, uma sensação estranha crescia no meu peito, algo entre irritação e um fascínio inquietante.
Foi então que reparei nos detalhes.
O uniforme da escola, que em mim parecia um lembrete constante da minha tentativa de adaptação, nela assumia uma outra forma, mais descuidada, mas de um jeito que parecia propositado. A gravata ligeiramente frouxa, as mangas da camisa dobradas até aos cotovelos. A bainha da saia um pouco mais curta do que o padrão, contudo não o suficiente para parecer descuido.
Era intencional.
Uma pequena quebra nas regras que tornava a sua presença ainda mais marcante. Ela não precisava de desafiar abertamente as normas para dar a sensação de que as moldava ao seu favor. Havia algo na forma como vestia até mesmo a obrigatoriedade do uniforme, como se este lhe pertencesse e não o contrário. Sem hesitação. Sem a necessidade de provar nada a ninguém. Como se soubesse exatamente quem era e não visse qualquer sentido em disfarçar. E agora, ali diante de mim, Chloe parecia completamente alheia ao que quer que tivesse acontecido naquela manhã. Como se o drama no estacionamento tivesse evaporado assim que saíra de cena. Como se Alex nunca tivesse estado lá, como se as palavras ditas não tivessem deixado marcas.
Talvez essa fosse a maior prova do seu poder sobre o próprio mundo.
Ela não apagava as coisas. Não fugia delas. Apenas decidia quando e como a afetavam.
Cruzei os braços sem perceber, como se esse gesto fosse o único escudo que podia erguer contra aquela sensação de desalinhamento, contra a facilidade absurda com que ela parecia seguir em frente. Chloe manteve o olhar fixo em mim por um instante, avaliando-me como se visse algo que eu própria não conseguia identificar. Depois, ergueu ligeiramente o queixo, um meio sorriso ainda pendurado nos lábios.
— Então… vais continuar a lutar contra o armário ou queres ajuda?
Soltei um suspiro, desviando o olhar para o cadeado como se ele fosse, de facto, o verdadeiro problema ali.
— Consigo abrir sozinha.
— Oh, claro. Parece que está a correr lindamente. — A voz dela carregava aquela leveza provocadora que parecia acompanhá-la sempre, como se tudo fosse um jogo do qual apenas ela conhecia as regras.
Fiz um esforço para manter a compostura. A última coisa de que precisava era de plateia.
— Já disse que consigo abrir.
— Claro que consegues. — Inclinou-se ligeiramente para o lado, estudando-me com um brilho divertido nos olhos. — E, a qualquer momento, o armário vai abrir-se por puro medo da tua determinação.
O sarcasmo era subtil, contudo suficientemente afiado para me fazer apertar os lábios.
— Só preciso de mais uma tentativa.
Ela cruzou os braços, inclinando ligeiramente a cabeça, o brilho divertido nos olhos denunciando que já sabia o resultado antes mesmo de eu tentar.
— Se o dizes.
Desafiei o cadeado mais uma vez, ajustando os números, tentando ignorar o peso do seu olhar. Mas era impossível fingir que não estava ali, a observar-me com aquele ar de quem já viu esta cena antes e sabe exatamente como termina. Com um movimento fluido, Chloe afastou-se do armário onde estava encostada e posicionou-se ao meu lado. A proximidade fez o meu corpo ficar tenso, como se o espaço ao meu redor tivesse encolhido de repente.
— Sabes que estás a fazer errado, certo?
Revirei os olhos, sem me dar ao trabalho de encará-la.
— E tu sabes tudo sobre armários, imagino.
Ela deu de ombros.
— Não é complicado. O truque é girar o último número duas vezes antes de puxar.
Fiquei em silêncio por um segundo. Não queria dar-lhe razão, porém, dada a minha humilhante derrota, também não podia continuar a fingir que sabia o que estava a fazer. Apertei os lábios e fiz o que ela sugeriu. O cadeado abriu-se com um clique suave.
Chloe sorriu de lado, satisfeita.
— Vês? Nem todos os problemas se resolvem com pura teimosia.
Soltei um pequeno suspiro e empurrei a porta do armário, fingindo que aquele pequeno triunfo dela não me incomodava.
— Vou anotar isso na minha lista de ensinamentos valiosos do dia.
Esta inclinou-se ligeiramente para mim, a voz descendo para um tom mais baixo, quase íntimo.
— Ótimo. — Murmurou, e um pequeno sorriso puxou o canto dos seus lábios. — Se precisares de mais lições… estarei por aqui.
O calor da sua presença demorou-se por um instante antes de ela recuar, encostando-se novamente ao armário ao lado. Os braços cruzaram-se sobre o peito com uma naturalidade despreocupada, no entanto havia algo diferente no seu olhar agora, um traço de satisfação que não parecia ter pressa de desaparecer. Não havia urgência em ir embora. Mordi o interior da bochecha, sentindo um estranho calor subir pelo meu pescoço. Não pelo cadeado, nem pela sua provocação, mas pela forma como ela parecia tão à vontade ali, do meu lado. Como se nada entre nós tivesse mudado.
Mas tinha.
E, mesmo assim, ela permanecia, deixando-me descobrir por conta própria como lidar com isso. Ajeitei os livros dentro do armário, mais para me ocupar do que por necessidade.
— Não tens mais nada para fazer?
Chloe inclinou a cabeça ligeiramente, como se ponderasse a pergunta.
— Provavelmente.
Um silêncio estendeu-se por um segundo a mais do que deveria. Quando ergui o olhar, ela ainda estava ali, a analisar-me. Depois, como se tivesse tomado uma decisão silenciosa, afastou-se do armário.
— Até mais, novata.
Dessa vez, o tom foi quase preguiçoso, porém carregava aquela confiança irritante de quem sabe exatamente o efeito que deixa para trás. E então, deslizou pelo corredor como se nunca tivesse estado ali. Fiquei a observá-la desaparecer entre os alunos, o cadeado ainda frio na ponta dos meus dedos. Se havia algo que começava a entender sobre Chloe, era que ela nunca ficava tempo demais, mas também nunca parecia realmente ir embora. Afastei-me do armário e soltei um suspiro discreto, forçando-me a focar no que vinha a seguir.
Ao entrar no refeitório, o barulho foi a primeira coisa a atingir-me: vozes sobrepostas, cadeiras a arrastarem-se pelo chão e risadas que ecoavam pelo ar. O espaço estava cheio, repleto de estudantes dispersos por mesas abarrotadas de bandejas e grupos já formados, como se todos soubessem exatamente onde pertenciam, menos eu. Percorri o ambiente com o olhar até avistar Piper sentada junto à janela, inclinada casualmente para trás na cadeira, as botas apoiadas num canto da mesa enquanto gesticulava animadamente. Havia mais três pessoas com ela, e por um breve instante vacilei. Mas, claro, não era surpresa, aquilo simplesmente condizia com a sua personalidade. Ajustei a alça da mochila no ombro e caminhei até lá, tentando aparentar mais confiança do que realmente sentia.
Quando me aproximei, Piper ergueu o olhar e abriu um sorriso satisfeito, como se já estivesse à espera da minha chegada.
— Olha só, a novata sobreviveu. — Disse ela, batendo levemente na cadeira vazia ao seu lado. — Vais ficar aí a analisar a mesa ou vais sentar-te?
O tom era provocador, todavia sem a intenção real de me afastar. Respirei fundo antes de finalmente pousar a mochila no chão e sentar-me, sentindo por um instante os olhares dos desconhecidos voltarem-se para mim.
— Pessoal, esta é a Maya. — Anunciou a ruiva sem cerimónias, como se eu já fosse parte do grupo antes mesmo de abrir a boca.
Três pares de olhos voltaram-se na minha direção, cada um carregando uma energia distinta. O primeiro a falar foi um rapaz loiro, de feições afiadas e um sorriso fácil, natural demais, como se estivesse sempre prestes a fazer uma piada.
— Finalmente! Estávamos a começar a achar que a Pips te inventou só para parecer mais popular. Sou o Noah.
A garota ao seu lado, de pele morena e cabelo preso num coque impecável, revirou os olhos antes de beber um gole do copo que segurava.
— Não lhe dês muita confiança, senão ele não se cala.
Depois voltou-se para mim com um aceno de cabeça discreto.
— Amber. E sim, ele fala muito. Mas acabas por te habituar.
— Eu sou apenas um comunicador nato. — Rebateu Noah, num tom teatral. — E há quem diga que torno os almoços mais interessantes.
— Há quem diga que os tornas mais barulhentos. — Corrigiu Amber, contudo o brilho divertido nos seus olhos denunciava que aquilo era apenas parte da dinâmica deles.
Uma leve risada escapou-me antes que eu pudesse evitar. Por um momento, esqueci-me de que ainda havia outra pessoa ali. Só então reparei no último elemento do grupo. Diferente dos outros, não demonstrou nenhuma reação imediata à minha chegada. Os olhos castanhos ergueram-se do livro apenas por um instante, fixando-se em mim com a mesma atenção silenciosa que um leitor dá às palavras na página. Depois, sem pressa, virou outra folha, como se nada tivesse acontecido.
— Esse é o Ethan. — Piper acrescentou, seguindo o meu olhar. — Não te preocupes, ele gosta mais de livros do que de gente, mas és bem-vinda mesmo assim.
Ele não respondeu, apenas inclinou ligeiramente a cabeça, um gesto curto que indicava que ouvira, porém que não via necessidade de dizer nada.
— E pronto, agora já és oficialmente uma de nós. — Piper abriu os braços num gesto exagerado.
— Isso é um processo automático ou tenho que assinar um contrato? — murmurei, pegando a garrafa de água da mochila.
Noah sorriu de canto.
— Oh, vais ver. Uma vez no grupo, já não escapas.
Amber revirou os olhos, mas não discutiu.
Piper empurrou a bandeja dela para mais perto.
— Come alguma coisa antes que a cantina fique ainda mais caótica.
Olhei ao redor. Se aquilo ainda podia piorar, não queria imaginar como. Dei uma dentada no que parecia ser uma sanduíche de frango e mastiguei devagar, ouvindo a conversa ao redor da mesa continuar sem esforço, como se eu já estivesse ali há dias e não apenas algumas horas.
E, por um momento, limitei-me a ouvir. Ainda havia um certo estranhamento dentro de mim, no entanto algo naquela mesa, na descontração de Piper, na forma como Noah fazia piadas de tudo, no equilíbrio de Amber e na presença discreta de Ethan, trazia uma sensação diferente da que me consumira de manhã, quando o medo do que o meu pai poderia pensar sobre as minhas amizades me acompanhava como uma sombra.
Ali, naquele instante, existia apenas o presente.
E, pela primeira vez, senti que talvez não precisasse carregar aquele peso sozinha.
Uma sensação de normalidade.
E, de alguma forma, isso foi suficiente para que respirasse um pouco mais aliviada.
O som estridente do sinal rasgou o ar, interrompendo o fluxo dos meus pensamentos e arrastando-me de volta à realidade.
***
Fotografia nunca foi a minha primeira escolha. Na verdade, marquei essa opção apenas porque todas as alternativas pareciam piores.
Teatro? Exposição demais.
Música? O meu pai só aprovaria se fosse algo que eu pudesse fazer na igreja.
Futebol, basquetebol, ténis? Definitivamente, não estava interessada em competir.
Fotografia, por outro lado, parecia segura. Silenciosa. Uma forma de observar o mundo sem precisar fazer parte dele. Ou talvez a escolha tivesse mais a ver com a minha criação. Na igreja, sempre me ensinaram que o mundo lá fora era passageiro, que tudo nesta vida era temporário e que o nosso verdadeiro propósito estava para além do que podíamos ver. Contudo havia algo reconfortante na ideia de capturar momentos e transformá-los em algo permanente. Como se, segurando uma câmera, eu pudesse desafiar essa efemeridade. Como se pudesse provar que algumas coisas mereciam ser guardadas.
A sala de aula estava preenchida pelo som de conversas dispersas e pelo clique das câmeras, enquanto alguns alunos já exploravam os equipamentos. O professor, um homem de meia-idade, de cabelos grisalhos e óculos grossos, organizava alguns arquivos sobre a secretária, alheio à agitação ao seu redor. Eu estava sentada perto da janela, distraída, quando um som ecoou pela sala.
Três batidas na porta.
O professor ergueu o olhar e caminhou até à entrada sem pressa, sem demonstrar qualquer surpresa. A sala mergulhou num silêncio expectante, porém a energia mudou no instante em que a porta se abriu. O meu corpo ficou tenso antes mesmo de perceber o porquê. Desta vez, sem a pose encostada a armários, sem provocações diretas. Apenas ali, parada no batente da porta, a mochila pendendo de um ombro, os cabelos loiros ligeiramente desalinhados, como se tivesse chegado carregando o vento consigo. O meio sorriso ainda estava lá, contudo diferente, menos ensaiado, quase como se soubesse que estava atrasada, mas não se importasse o suficiente para parecer arrependida.
— Desculpe pelo atraso.
Ajustou a alça da mochila no ombro, os olhos a deslizarem pela sala com um tédio quase ensaiado, até pararem em mim. Por um instante, algo estranho aconteceu. Não foi apenas o facto de termos olhado uma para a outra ao mesmo tempo, mas a forma como, por um segundo, Chloe também pareceu surpreendida. Rápido demais para ser analisado. Porém real o suficiente para que o ar ao meu redor se tornasse mais espesso. A surpresa desfez-se tão depressa quanto surgiu, substituída pelo arquear subtil de uma sobrancelha e por um vestígio de diversão nos lábios. O professor, por outro lado, não demonstrou qualquer reação particular.
— Pontual como sempre, Harper. — Comentou com ironia, voltando-se para os papéis na secretária. — Todos os anos voltamos ao mesmo.
Chloe suspirou dramaticamente, recostando-se de leve no batente da porta antes de finalmente entrar.
— E eu a pensar que este ano seria diferente, professor. — Murmurou, um sorriso torto puxando-lhe o canto dos lábios. — Mas pelo menos sou consistente, não acha?
O professor apenas revirou os olhos, abanando a cabeça com exasperação. O restante da turma riu baixo, como se aquilo já fizesse parte de um guião ensaiado.
E então, a ficha caiu.
Ela já tinha feito esta atividade antes. Já conhecia o professor. Já conhecia a sala. Já fazia parte daquele mundo.
Fotografia.
Ela gosta de fotografia?
A ideia parecia tão desalinhada com a imagem que eu tinha de Chloe que demorei um instante a processá-la. No entanto Chloe não parecia minimamente preocupada com as minhas divagações. Murmurou um agradecimento e entrou na sala sem hesitação. E então, para minha total incredulidade, veio diretamente na minha direção. Não procurou outro lugar. Não vacilou. Apenas puxou a cadeira do meu lado e sentou-se, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Sem olhar para mim.
Sem dar qualquer explicação.
Como se aquilo não tivesse importância.
Como se, há poucas horas, não me tivesse provocado no corredor.
E talvez não tivesse. Para ela.
Mas para mim?
O ar na sala pareceu mudar. Não porque algo de extraordinário tivesse acontecido, mas porque eu sentia cada mínimo detalhe. A forma como a sua mochila deslizou pelo chão ao lado da mesa. O som abafado das páginas do seu caderno a serem folheadas.
O perfume.
Uma fragrância intensa, envolvente, carregada de especiarias orientais e baunilha. Algo quente, mas ao mesmo tempo marcante, exatamente como ela. Eu podia ouvir a minha própria pulsação nos ouvidos. O coração batia mais depressa do que deveria. E então, antes que conseguisse recuperar o fôlego, ouvi a sua voz.
Baixa. Casual.
Mas carregada daquele tom que fazia parecer que sabia mais do que demonstrava.
— Nunca pensei que fotografia fosse o teu tipo de coisa.
Virei o rosto na sua direção, surpreendida pela rapidez com que falou comigo. No entanto ela, ainda não me olhava. Os seus olhos permaneciam fixos no quadro branco à frente da sala, como se a minha presença fosse apenas um detalhe passageiro, algo secundário no seu campo de visão. Os seus dedos brincavam distraidamente com a tampa da caneta, girando-a com a mesma despreocupação com que lançara o comentário.
— E o que exatamente seria o meu tipo de coisa? — Perguntei, esforçando-me para manter o tom neutro, embora a curiosidade já pulsasse dentro de mim.
Chloe inclinou ligeiramente a cabeça, os lábios curvando-se num sorriso subtil.
— Ah, não sei. Algo mais… transcendental, talvez? — murmurou, girando a tampa da caneta mais uma vez. — Algo que se alinhe à tua conceção de espiritualidade. Estudos bíblicos, exegese teológica… ou quem sabe um grupo de reflexão ao nascer do sol, discutindo a impermanência da existência sob a ótica do divino.
O seu tom não era de escárnio. Todavia cada palavra carregava um peso calculado, deslizando pelo espaço entre nós com a precisão de quem sabia exatamente o que estava a fazer. Como se estivesse a testar limites. A sondar verdades. A avaliar até onde podia ir sem romper a superfície. O meu estômago revirou-se com a insinuação.
Ela estava a testar-me.
Outra vez.
Mas para quê?
Respirei fundo, desviando o olhar, tentando parecer indiferente.
— E quem disse que fotografia não pode ser algo espiritual? — Retorqui, mantendo a voz firme, mesmo que uma parte de mim estivesse alerta.
Ela soltou um riso baixo.
Breve.
— Então, para ti, a fotografia é uma forma de revelação? Uma tentativa de apreender o sagrado no efémero? — Inclinou ligeiramente a cabeça para o lado, os olhos presos aos meus. Observando. Aguardando. — Como se cada imagem fosse um vestígio do divino, uma forma de captar a luz que escapa ao olhar comum?
Senti a minha mandíbula contrair. Isto era o que ela fazia. Dizia algo com a voz arrastada e um meio sorriso no rosto, como se fosse apenas um pensamento solto no ar. Mas não era. Nunca era. Cada palavra escolhida com precisão, cada pausa calculada. Aguardando uma reação. A minha. Apertei os dedos contra a borda do caderno antes de responder.
— Ou talvez seja apenas uma forma de ver o mundo sem que o mundo me veja.
Dessa vez, foi ela quem ficou em silêncio por um segundo a mais do que deveria. O sorriso nos seus lábios não desapareceu completamente, mas algo na sua expressão mudou. Como se a minha resposta tivesse desviado do caminho que ela esperava. Como se, por um instante, eu tivesse virado o jogo sem querer.
— Interessante. — Murmurou, ainda girando a tampa da caneta entre os dedos, o olhar fixo nos meus. — Mas não é um pouco solitário? Assistir o mundo de fora em vez de fazer parte dele?
Cruzei os braços, sentindo uma tensão estranha no ar entre nós. Era como se ela estivesse a desmontar algo dentro de mim, peça por peça, sem precisar fazer esforço.
— Depende. Às vezes, observar diz mais do que agir.
Ela ergueu uma sobrancelha, como se ponderasse a resposta, contudo o sorriso nos seus lábios sugeria que já tinha uma réplica afiada pronta.
— Isso soa um pouco como uma desculpa para não te envolveres.
A minha mandíbula travou por um segundo.
— Ou como uma forma de compreender antes de simplesmente seguir.
As palavras saíram mais rápido do que eu esperava, carregadas de algo que nem eu mesma sabia explicar. Dessa vez, o seu sorriso alargou-se, carregado de algo afiado e imprevisível, enquanto um brilho instigante dançava no seu olhar.
— Então, é isso? Estás a tentar entender o mundo?
Desviei o olhar por um breve instante, fixando-o na câmera sobre a mesa do professor, como se, de repente, ela fosse uma âncora a impedir-me de afundar na intensidade daquele momento.
— Acho que toda a gente está.
Chloe inclinou-se na minha direção, devagar. Não apressada. Não invasiva. Apenas… presente. Como se saboreasse cada centímetro que reduzia entre nós, testando até onde podia ir. O suficiente para que o seu hálito quente roçasse contra a minha pele, enviando um arrepio pela minha espinha.
— E será que fotografar é suficiente para isso?
A sua voz saiu baixa, quase num sussurro, carregada de algo denso e intencional, como se estivesse à espera de ver até onde eu aguentava antes de ceder. A minha respiração vacilou. Era uma pergunta que eu nunca tinha feito para mim mesma.
Será que era?
Ela não se afastou. Ficou ali, perto demais, os olhos presos nos meus, a analisar cada pequena reação, o leve prender da minha respiração, a tensão nos meus ombros, a forma como os meus dedos apertaram involuntariamente o tecido da camisa. Era uma observação silenciosa, mas precisa. Como se tivesse puxado um fio solto, desnudando algo que eu tentava ignorar. O silêncio entre nós não era apenas incómodo.
Era perigoso.
O meu peito subia e descia mais depressa do que eu gostaria de admitir.
E o olhar dela…
Deus. Aquele olhar.
A intensidade nele não era puramente provocação.
Era como se Chloe estivesse a degustar cada segundo da minha inquietação, brincando com um fósforo perto de algo inflamável, à espera para ver quando pegaria fogo. Por um breve instante, os seus lábios entreabriram-se ligeiramente, como se estivesse prestes a dizer algo. Quando a voz do professor cortou o ar entre nós como uma lâmina afiada. Fiz um movimento involuntário, quase impercetível, porém suficiente para me fazer sobressaltar ligeiramente na cadeira.
— Chloe.
O tom impaciente do professor fez o burburinho na sala cessar. Senti os olhares curiosos de alguns colegas voltarem-se discretamente para nós. Rapidamente, desviei o olhar, fingindo um interesse repentino na mesa à minha frente, tentando desesperadamente recuperar o controlo da minha própria respiração.
Já Chloe?
Ela sequer pareceu abalada.
O professor suspirou, cruzando os braços antes de prosseguir.
— Gostarias de partilhar com a turma o que é tão interessante para desviar a tua atenção da aula?
Chloe virou-se lentamente na sua direção, como se a interrupção fosse apenas um contratempo irrelevante na sua tarde.
— Só estava a explicar o básico sobre fotografia.
A resposta veio sem pressa, acompanhada por um arquejar subtil de sobrancelha e um meio sorriso despreocupado, como se tivesse sido injustamente interrompida no meio de uma aula particular.
O professor não pareceu impressionado.
— Ah, que dedicação. E que tal deixares as explicações para quando eu terminar de falar?
O sorriso dela foi lento e deliberado enquanto levantava as mãos num gesto que dizia tudo, menos arrependimento.
— Claro, professor. Toda a sua atenção. Não quero privar ninguém do privilégio do seu conhecimento.
O docente revirou os olhos, soltando um suspiro exasperado antes de continuar.
— Como eu estava a dizer… para este semestre, vamos iniciar com um projeto em pares.
A sala encheu-se de murmúrios animados. Alguns alunos já começavam a trocar olhares, formando duplas entre si, tentando garantir os parceiros antes que este os escolhesse. Porém eu mal conseguia registar qualquer coisa além da tensão ainda suspensa no espaço entre mim e Chloe.
— A ideia é que criem uma série de fotografias baseadas num tema que irei sortear daqui a pouco. Como muitos de vocês já têm alguma experiência, quero ver algo criativo. Para quem está a começar…
Fez uma pausa. E antes mesmo que dissesse algo, o meu estômago já se revirava em antecipação. Então, os olhos dele pousaram em mim.
— Maya, já que ainda estás no processo de familiarização com a câmera, vais trabalhar em dupla com a Chloe. Os restantes podem formar as suas duplas. Irei anotá-las à medida que forem sorteando os temas.
Por um segundo, o meu cérebro parou de processar. Pisquei rapidamente, sentindo o meu corpo enrijecer na cadeira. Uma onda quente subiu pelo meu pescoço. Ao meu lado, senti Chloe sorrir antes mesmo de precisar olhar para ela. E quando finalmente o fiz, encontrei-a inclinada ligeiramente na minha direção, os lábios puxados num meio sorriso carregado de algo que me fez engolir em seco.
— Parece que vais ter muitas aulas sobre o básico, afinal.
A voz dela veio baixa, arrastada, carregada de uma diversão contida.
Não era apenas o que disse.
Era como disse.
A forma como me olhou ao dizer, como saboreou cada palavra, fez cada centímetro do meu corpo acender-se num alerta instintivo que eu não sabia explicar. O meu coração bateu forte contra as costelas. E, por um instante, tive a nítida sensação de que ela sabia exatamente o que estava a fazer. O professor continuava a explicar os detalhes do projeto, porém eu mal conseguia concentrar-me. As palavras pareciam um ruído distante, abafado pela única coisa que realmente importava naquele momento: o olhar dela, ainda cravado em mim, como se já antecipasse o que viria a seguir.
— Agora que já temos as duplas definidas, vamos ao sorteio dos temas. — anunciou o professor, caminhando até à secretária e pegando uma pequena caixa de madeira. — Cada dupla sorteará um tema e deverá explorá-lo da forma mais criativa possível. Quero ver interpretações únicas e expressivas.
A sala voltou a encher-se de murmúrios animados enquanto os alunos formavam uma fila para sortear os seus temas. O entusiasmo dos outros contrastava violentamente com a tensão que se acumulava dentro de mim. Movi-me desconfortavelmente na cadeira, tentando respirar fundo, tentando convencer-me de que aquilo era apenas um sorteio, apenas um projeto. No entanto algo dentro de mim sussurrava que nada parecia simples quando envolvia Chloe. Ela, por outro lado, parecia completamente tranquila. Ou talvez apenas estivesse a divertir-se à minha custa, a saborear cada segundo da minha inquietação.
— Vais querer tirar o papel ou preferes confiar essa escolha ao destino?
A pergunta veio repleta de uma tranquilidade que beirava à provocação, como se já soubesse a resposta antes mesmo de eu a dar. O tom era casual. Contudo, o seu olhar…
Engoli em seco.
Parte de mim queria assumir o controlo da situação, queria provar que aquilo não me afetava. Mas algo na forma como esta me observava, no jeito como parecia desafiar-me sem sequer precisar de palavras diretas, fez com que cruzasse os braços e desviasse o olhar.
— Vai em frente. — Murmurei, tentando soar indiferente.
O seu sorriso alargou-se, lento e calculado, como se tivesse acabado de ganhar algum jogo silencioso. Deu um passo em frente quando chegou a nossa vez. Fez tudo com uma calma exagerada, arrastando cada movimento como se estivesse a deleitar-se com momento. Chloe mergulhou a mão na caixa com uma tranquilidade irritante. Os seus dedos deslizaram entre os papéis dobrados como se tivessem todo o tempo do mundo. Quando finalmente retirou um pequeno pedaço de papel…
O meu peito apertou.
Então, depois de alguns segundos que pareceram estender-se por tempo demais, ela abriu-o. Os seus olhos percorreram as palavras. E foi nesse momento que o sorriso dela mudou. Algo brilhou no seu olhar, um brilho repleto de um tipo perigoso de diversão. Lentamente, virou-se na minha direção, segurando o papel entre os dedos com um gesto quase teatral, como se segurasse um segredo, algo que sabia que me faria perder o chão.
E, com um sorriso ligeiramente perverso, disse:
— Pele e Sensação.
O professor assentiu, sem notar o peso que aquelas palavras carregavam naquele momento.
— Ótimo. Esse tema exige sensibilidade e atenção aos detalhes. Quero que explorem texturas, contato e como a pele interage com os elementos ao redor.
Senti a minha garganta secar. O ar pareceu mudar ao meu redor, tornando-se demasiado denso. Ela soltou uma risada baixa, dobrando o papel com a mesma calma exasperante que parecia aplicar a tudo o que fazia. Com um gesto preguiçoso, colocou-o sobre a mesa dele, como se aquele sorteio não tivesse qualquer importância. Depois, virou-se com aquela tranquilidade desconcertante, como se já antecipasse o efeito que aquilo teria sobre mim.
Caminhou de volta, sem hesitação, sem pressa, sem nunca perder o controlo.
Como se já soubesse exatamente onde pertencia.
Sem dizer nada, retirou a câmera da mochila, passando os dedos suavemente pelo corpo metálico, deslizando sobre a superfície com uma familiaridade quase íntima. Como se já estivesse a imaginar como usá-la, como capturar algo que eu mesma ainda não conseguia vislumbrar.
E então, finalmente, sem pressa, ela proferiu:
— Interessante.
A palavra veio como um murmúrio, quase para si mesma, enquanto ajustava distraidamente a lente.
— A pele como um meio de perceção, de identidade, de história. Já pensaste no quanto o corpo humano guarda experiências sem jamais precisar de palavras? Como cada marca, cada arrepio, cada cicatriz pode contar uma narrativa sem que ninguém precise descrevê-la?
Engoli em seco.
Subitamente, senti-me exposta de uma forma que não sabia explicar, como se a sua pergunta fosse mais um espelho do que uma teoria.
— Nunca pensei nisso dessa forma… — admiti, a minha voz saindo mais baixa do que o esperado. — Sempre vi a pele como algo externo, uma barreira entre nós e o mundo.
Chloe sorriu de leve, como se já esperasse aquela resposta.
— Mas não é exatamente isso que a torna fascinante? — continuou girando a câmera entre os dedos. — Ela é, ao mesmo tempo, uma barreira e um registo. É onde o mundo nos toca, onde o tempo nos deixa vestígios. Se olhares atentamente, cada dobra, cada cicatriz, até mesmo a forma como a pele reage ao frio ou ao calor… tudo conta algo sobre nós.
Oscilei, absorvendo as suas palavras. Nunca tinha parado para pensar na pele dessa forma, como um mapa silencioso da nossa existência.
— Então, para ti, fotografar a pele não é apenas capturar a aparência — murmurei, testando a ideia em voz alta. — É capturar memória, sensação.
Ela inclinou ligeiramente a cabeça, os olhos brilhando com um vestígio de aprovação.
— Exatamente.
Fez uma pausa, estudando-me, como se estivesse a avaliar até onde eu estava disposta a ir com essa linha de pensamento.
— E se for além? Se, em vez de apenas registar, tentássemos transmitir o que a pele sente? Não apenas ver, mas quase tocar através da imagem.
O meu coração acelerou com a provocação implícita. Chloe não queria apenas uma fotografia. Ela queria capturar algo intangível, algo que não poderia ser explicado, apenas sentido.
— Parece impossível… — murmurei, ainda tentando acompanhar a sua lógica.
Ela riu baixinho, recostando-se na cadeira.
— Talvez seja. Mas as melhores fotos são justamente aquelas que fazem o impossível parecer real.
Nesse momento, os seus olhos encontraram os meus. E, por um instante, parecia que enxergava algo além do que eu própria compreendia. Um arrepio subiu pela minha pele. A sua voz não era apenas um comentário casual; era um convite ao desconhecido. Chloe não via apenas um tema, via um conceito, um campo de possibilidades, algo que poderia ser explorado muito além do que a maioria das pessoas se daria ao trabalho de perceber. Havia um fascínio no seu jeito de olhar o mundo, como se estivesse sempre a tentar capturar aquilo que ninguém via.
Engoli em seco, tentando encontrar uma resposta à altura do que ela sugeria.
Mas Chloe não esperava que eu dissesse algo.
Apenas sorriu.
Como se já soubesse que, mais cedo ou mais tarde, eu entenderia exatamente o que aquilo significava.
Fim do capítulo
Maya e Chloe foram colocadas juntas para um simples projeto, mas será que a fotografia pode capturar algo além da imagem? Entre provocações, desafios e um tema que mexe mais do que devia, talvez algumas fronteiras comecem a desvanecer…
Spoiler: às vezes, aquilo que evitamos enxergar é justamente o que mais nos atrai.
Quero saber o que acharam! Os vossos comentários são sempre bem-vindos!
Vemo-nos no próximo capítulo!
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thays_
Em: 16/03/2025
O título da sua história realmente diz muito sobre o peso do olhar da Chloe, ela é uma pessoa muito intensa. Imagino o quão apavorada Maya deve estar se sentindo com todas essas sensações e vivências novas que ela têm experienciado e olha que a história está apenas começando! Antes de ler o capítulo eu pensei, que maravilha que são mais de 5 mil palavras, porque adoro capítulos longos, mas chegando ao final queria que tivesse mais 5 mil rsrs
Já aguardando o próximo!
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asuna Em: 17/03/2025 Autora da história
A escolha do título foi um processo difícil, mas, de todas as opções, essa foi a que mais chamou a minha atenção. Confesso que a intensidade da Chloe e a construção da personagem são um verdadeiro desafio! Rsrs
Para que a Maya cresça, ela precisa de um pouco de caos na sua vida!
Engraçado tocares no número de palavras, pois eu estava em dúvida quanto a isso! Há quem prefira leituras mais rápidas, então fico aliviada em saber que capítulos longos não são um problema. Prometo que há muito mais por vir!
Obrigada!!