Capitulo 25 - Querida Agonia
Ana Beatriz tentou fazer a ressuscitação cardiopulmonar, mas sem efeito. O médico legista estimou a hora da morte por volta das três da manhã. Magdalena faleceu dormindo, vítima de uma parada cardiorrespiratória. Seu tratamento estava funcionando, mas exigia demais de seu sistema cardiovascular, até o ponto de não aguentar mais e desistir em silêncio.
Com a morte de sua mãe e Camélia em alguma UTI do outro lado do mundo, Ana Beatriz não aguentou a carga de estresse e desmaiou, e só recobrou a consciência dentro de um quarto de hospital, com um acesso aberto para receber soro e medicação.
- Hey... – Luiza estava ao seu lado, segurando sua mão. – Finalizaram o reconhecimento, é Camélia mesmo que está lá. A mãe já solicitou o transporte e o Lorenzo pediu um avião da Força Aérea para trazê-la.
- Sério? – Os olhos de Anabê lacrimejaram. – E... e a mamãe? Para onde levaram o.... – A cirurgiã não conseguia nem completar a frase.
- Estão preparando o corpo dela para o velório amanhã. – Luiza respondeu, com a voz falhada, esforçando-se para não chorar novamente. – Eu acho que a culpa é minha, eu não deveria ter procurado esse tratamento para a mamãe.
- Lu, a culpa não foi sua. Esse tratamento trouxe um final digno para a mamãe. Ela se foi sem se definhar.
Luiza não respondeu nada. Apenas tentava segurar o choro e lutar contra seus pensamentos automáticos de culpa.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Ainda no meio da madrugada, Luiza, que havia sumido no começo da noite, apareceu completamente bêbada, mais uma vez, no lobby de Daniela.
- Isso já está soando como um padrão... – Comentou Daniela.
- Você não... você não vai me convidar para subir?
- Erm... estou com gente em casa, Lu.
- Sua ficante?
- É... – Dani respondeu, sem graça.
- Entendo. Desculpa ter te incomodado.
Alguns segundos de silêncio, e Luiza resolveu apelar:
- Minha mãe morreu, Dani.
- Oi? Como assim? Ela não estava bem?
- Estava, quer dizer, não sei, parecia estar. Agora ela está no necrotério, logo todos vão saber. E a culpa é minha.
- Sua culpa por quê?
- Por causa do tratamento que ela fez, foi ideia minha! Aquilo com certeza tirou a vida dela, não importa o que a Anabê diga.
- Não diga isso... eu posso não entender muito dessa área, mas se fosse algo prejudicial, sua irmã nem teria aceitado. Vem cá para eu te abraçar. Esse momento é difícil, eu compreendo.
Dani então puxou Luiza para um abraço apertado. Ao final do gesto, como em um impulso, Luiza se inclinou para beijar Daniela, que se afastou rapidamente antes que o ato se concretizasse.
- Eu.... me desculpa, Dani, sério, não sei o que deu na minha cabeça...
- Hey, calma, tudo bem. Está tudo bem.
- Não, não está tudo bem. Eu preciso ir. Preciso ficar com a minha família. Desculpa por tudo, sério. – Sem nem ao menos encarar Daniela nos olhos, Luiza se retirou.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
No início do dia seguinte, o avião militar pousava em São Paulo, com Ana Beatriz - já recuperada - e Lorenzo aguardando no hangar, além de uma ambulância com dois paramédicos e um médico intensivista. Um médico militar desceu ao lado de Camélia, na maca. Ao lado dela, um respirador portátil.
- Paciente sob ventilação mecânica, Glasgow 6, setenta e sete batimentos cardíacos por minuto, pressão arterial de 110x75. No momento, administramos propofol e midazolam para a indução do coma. – Explicava o médico que acompanhou Camélia.
- Muito obrigado pelos seus serviços. Nós assumimos daqui. – O médico intensivista afirmou, enquanto os paramédicos levavam Camélia para a ambulância que funcionava como uma UTI móvel.
Ana Beatriz insistiu e conseguiu acompanha-los dentro da ambulância. Camélia tinha escoriações por todo corpo, e a cabeça enfaixada, além daquilo que a medicina chama de “sinal de guaxinim” nos olhos, ou bléfaro-hematoma, típico de quem sofreu um traumatismo craniano. Algumas partes de seu tronco pareciam ter sinais de queimadura, além de diversos cortes fechados por pontos malfeitos, que provavelmente Ana Beatriz iria refazer por puro perfeccionismo.
O balançar da ambulância não ajudava em nada seu estresse. Ana Beatriz pegou uma sacolinha fechada que serviria de lixo e acabou vomitando nela, pois esquecera de tomar seu anti emético para cinetose. Aquela viagem até o hospital parecia não acabar nunca. Por mais que estivesse acostumada a ver diversos casos complexos na mesa de cirurgia, ver sua amada ali completamente vulnerável mexeu com seu sub consciente.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Cecília e Luiza acompanharam o transporte do corpo de Magdalena para São Paulo, onde seria o velório. Mesmo sem pregar os olhos desde a descoberta da morte, a matriarca parecia encarar com plenitude o ocorrido, mantendo uma expressão séria e estável. Luiza estranhou o fato de sua mãe ainda não ter desabado, porém logo se recordou que essa era a maneira que Cecília lidava com perdas.
O velório contou com diversas personalidades, que foram prestar suas condolências para a família. A irmã de Magdalena voltou para o Brasil o mais rápido que pôde, para poder dar um último adeus. Lorenzo deu um tempo de suas redes sociais, postando apenas “Luto” e pedindo respeito pelo momento delicado.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Ana Beatriz conseguiu permissão especial para ficar na UTI o tempo que fosse necessário, saindo o lado de Camélia por um breve tempo para ir ao velório de sua mãe.
Ao ver Magdalena repousando serenamente sobre o caixão de nogueira polido e esculpido à mão, Anabê não resistiu e desatou a chorar. Chorava copiosamente, como se estivesse tentando desabafar todas as suas emoções ali naquele momento. Lorenzo e Ramon a abraçaram, tentando consolá-la, mas nada parecia diminuir a dor de tudo o que estava acontecendo.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Luiza não ficou até o momento do enterro. Saiu um pouco mais cedo, com seus óculos escuros escondendo as lágrimas teimosas. Pediu para que seu motorista a levasse até o hangar, e de lá, pegou o avião para o Rio de Janeiro. Foi até a casa que estava morando com suas mães, fez três malas, e voltou para seu apartamento em São Paulo, desligou seu celular, jogou-o em qualquer canto do quarto, pegou sua carteira e saiu, assim ninguém poderia localizá-la, nem mesmo os seguranças. Foi até uma locadora de motos de luxo não muito longe dali, pegou uma BMW K 1600 GTL e saiu em direção ao horizonte.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Após o enterro, Lorenzo e Ramon resolveram fazer companhia para Cecília, que retornara para mansão de São Paulo. Cecília ainda permanecia estável. Pegou uma garrafa de vinho, três taças, abriu-a e serviu.
- Essa garrafa de vinho eu ganhei de presente de casamento. Prometemos abrir quando completássemos bodas de ouro. – Cecília comentou com o filho e o genro. A essa altura, sua voz estava começando a falhar pela vontade de chorar. – Mas vamos mudar de assunto. Como está Camélia?
- Estável. – Respondeu Ramón. – Ainda entubada, porém estável. Tendo em vista que ela sobreviveu a uma explosão, ela é extremamente forte.
- Amanhã vou visita-la. Ana Beatriz deve estar em um estado de estresse inimaginável. – Comentou Cecília. – Pobre menina, tão nova, já ter que lidar com isso...
Foi então que Cecília não resistiu. As primeiras lágrimas começaram a cair.
- De que adianta tanto dinheiro se as pessoas que nos amam continuam a sofrer e partir? De que adianta? – Cecília continuou a chorar.
- Calma mãe... nós demos o melhor conforto possível para mamãe, e Camélia também está recebendo um tratamento de ponta. – Lorenzo a consolou.
- Amanhã não quero nenhuma empresa do grupo Gutierrez trabalhando, exceto os hospitais. Vou avisar as diretorias que decreto luto de três dias.
- Mas mãe, o serviço de taxi aéreo já tem serviços programados e-....
- Nós os redirecionaremos para a concorrência. Não me importo em perder dinheiro. É o mínimo que posso fazer por Magdalena.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Luiza dirigia aparentemente sem rumo, mas sabia muito bem para onde estava indo: foi com sua moto em direção ao sul do Brasil, indo pelo litoral. Foi da maneira raiz, guiando-se por placas. Primeiro, passou em Blumenau. A casa que procurava não era muito difícil de achar: ficava em um dos mais luxuosos condomínios logo na entrada da cidade. Pelo interfone, Luiza anunciou:
- Por favor, Mirella de Ribamar está aí? Ou está em Florianópolis?
- Quem gostaria?
- Luiza Gutierrez.
- Lu? É você? Não acredito!
- Dona Quércia? – Luiza reconheceu a mãe de Mirella.
- Sim, eu mesma! Não quer entrar? A Mirella foi para Florianópolis ontem. Aliás, meus pêsames pela Magdalena... ela era uma mulher de luz.
- Muito obrigado, dona Quércia. Estou de saída, tenho algumas horas de viagem pela frente.
- Você vai para Florianópolis, querida?
- Vou sim. Estou de moto.
- Vai ver a Mi? Quer que eu ligue para ela?
- Não precisa, dona Quércia. Quero fazer uma surpresa.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Quase 150 quilômetros depois, Luiza finalmente chegava na capital catarinense. Antes de ir até o restaurante de Mirella, passou no apartamento da família, tomou um bom banho, pegou algumas roupas guardadas no armário, comprou flores no caminho e finalmente se dirigiu ao restaurante.
- Lu, o que você está fazendo com essas flores? – Mirella perguntou, desconfiada.
- O que acha que estou fazendo? – Luiza abriu um grande sorriso. – Estou fazendo o que eu deveria ter feito anos atrás.
Luiza então entregou as flores e puxou Mirella para um longo beijo, tomando aplausos dos clientes dos restaurantes.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Há quem diga que o luto toma diversas formas. Para Luiza, tomou a forma de impulsividade misturada com nostalgia. Para Ana Beatriz, tomou a forma de sobre compensação. A cirurgiã ficou durante uma semana inteira direto naquela UTI. Tomava banho e comia no próprio hospital.
Cecília, momentaneamente, tornou-se menos controladora. Em outros tempos, teria colocado toda sua equipe de segurança atrás de Luiza, mas quando descobriu que sua filha mais nova estava em Florianópolis, deixou-a viver a vida. Quer dizer, relativamente, pois colocou um segurança para monitorá-la de longe caso ela se metesse em confusão.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Após uma semana, o médico intensivista que ficava de plantão pelas manhãs e acompanhava de perto o caso de Camélia, decidiu por planejar o desmame da ventilação mecânica. Ana Beatriz sabia muito bem o que isso significava: Camélia poderia estar pronta para respirar novamente por conta própria.
O médico foi retirando a sedação aos poucos, e Camélia começou a se debater, o que era ótimo, pois significava que ela estava lutando com o aparelho para poder respirar. Aos poucos, foi abrindo os olhos, e a equipe de enfermagem e fisioterapia cuidadosamente retirou o equipamento.
- Hey, meu amor... bem vinda de volta! – Anabê não se conteve e começou a chorar de alegria. – Não precisa se esforçar tanto, sei que não vai conseguir falar agora. Você está em São Paulo, está segura, longe da guerra.
- Oi.... – Com a voz enfraquecida, Camélia balbuciou e sorriu.
- Agora que você está a salvo, a equipe vai planejar algumas sessões de fisioterapia para sua musculatura voltar ao normal, tudo bem? – Anabê não parava de acariciar a mão de Camélia, que concordava lentamente com a cabeça.
✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧ ✧✧✧✧✧✧✧
Seis meses de intensa terapia fizeram com que Camélia melhorasse, com o perdão da hipérbole, em mais de mil por cento.
- Eu nem sei como agradecer por toda a ajuda que sua família me deu, Anabê.
- Não precisa agradecer, meu amor. Você é minha família também.
- Agora que você está bem melhor, podemos discutir coisas básicas como nossos looks para o casamento do Lô!
- Sobre isso, eu gostaria de conversar com você...
- Espera um pouquinho....a Luiza acabou de me mandar mensagem. Disse que vai voltar para São Paulo e quer comprar um presente para você por ter recebido alta da fisioterapia, que fofa!
- Achei que ela nem voltaria mais, depois que fixou suas raízes lá por Santa Catarina...
- Pois é, ela viveu uma bela lua de mel por lá. Mas tem o casamento, e logo depois as eleições, eu sabia que ela não nos deixaria na mão.
- Verdade. Agora, podemos voltar ao assunto?
- Que assunto?
- Bem, agora que estou melhor, eu decidi voltar ao Oriente Médio.
- Não, de novo não, Camélia. Da última vez eu quase te perdi. Não vou deixar isso acontecer novamente!
- Isso não é sobre a gente, Anabê. Eu preciso voltar. Meu chamado é para servir nessa área. Você não faz ideia do quanto me senti em paz enquanto estava cumprindo minha missão.
- E você não faz ideia de quanta agonia sofri nesse tempo que você estava longe! Não vou suportar viver assim novamente.
- Amor, você tem que entender qu-
- Não! Não, Camélia, definitivamente não. Você vai ter que escolher, ou eu, ou sua ‘missão’. Não vou passar por isso novamente. Eu amo você, mas dependendo de sua escolha, é o fim da linha. – Ana Beatriz, apesar de abalada emocionalmente, tentava manter a postura para sua sanidade mental.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]