Capitulo 30
O sol causticante, de brilho intenso, impiedoso, castigava a pele de Ágata que queimava, mesmo antes das dez da manhã. Apesar de sua pele naturalmente bronzeada pelas brisas salgadas do mar, o calor opressivo era quase insuportável, intensificado pela escolha imprudente de uma blusa de alcinha e shorts jeans. Já Marcela, visivelmente mais precavida, vestia jaqueta e calça jeans, e nem mesmo a brisa cortante da moto conseguia aplacar o ardor escaldante.
Marcela pilotava com impressionante destreza, desviando em ágeis zigue-zagues dos buracos traiçoeiros e bueiros abertos que salpicavam a estrada estadual. Ela parecia ter nascido sobre duas rodas, um ser em perfeita simbiose com a máquina.
Ágata nunca havia apreciado a paisagem nas inúmeras vezes em que passara por ali com seu pai. Greg e ela, em suas viagens para a fazenda, sempre estavam mergulhados no sono ou enredados em discussões fúteis.
De ambos os lados, a vista era a mesma: a caatinga árida e resiliente, típica do sertão nordestino. Uma vegetação esguia, fina e amarelada pela seca implacável, ou repleta de espinhos com formas misteriosas e exóticas. Não havia gado à vista, apenas terra ressequida e vegetação morta, um cenário desolador. Contudo, bastava a chuva cair para o sertão se transformar em um tapete verdejante, vibrante de vida.
O Nordeste, com seu clima paradoxal de sol o ano inteiro, criava uma paisagem quase fantasmagórica na estrada, desprovida de qualquer sinal de vida animal. Mas, ao adentrar os portões das fazendas, o cenário mudava drasticamente: animais robustos, vegetação exuberante que beirava o verde-esmeralda, pequenos açudes serpenteando as propriedades como veias azuis, e muitas vezes, cercas que se estendiam para abraçar cachoeiras e lagoas, incorporando-as à terra de forma harmoniosa.
As fazendas se distanciavam por vastos trechos. Ágata avistava uma porteira e, dez minutos de estrada no meio do nada depois, surgia outra, uma repetição monótona. A vida era tão injusta. Tanta terra desocupada e improdutiva, enquanto nas grandes cidades, inúmeras pessoas agonizavam sem ter onde morar. A fartura imperava dentro das fazendas, contrastando dolorosamente com os casebres de pau a pique na beira da estrada, onde até os cachorros eram pele e osso, esqueléticos.
— Estamos quase chegando, amor — Marcela a tirou gentilmente dos devaneios, a voz suave e tranquilizadora.
Ágata apertou-se mais à cintura de Marcela, buscando uma proximidade reconfortante, mas o revólver em seu coldre axial impedia um abraço completo, uma barreira metálica e fria. — Depois daquela curva tem uma estradinha de terra — a voz de Marcela saiu abafada pelo capacete, mas o vento ajudava a propagar o som, levando-o aos poucos.
De repente, um caminhão surgiu do nada, como um espectro gigante. Se Marcela não fosse tão atenta, teriam morrido na hora, pulverizadas em segundos.
Ágata não viu o momento exato em que Marcela as salvou; apenas sentiu a moto derrapar violentamente, e se agarrou com força para não ser arremessada da garupa. A moto balançou violentamente com o impacto do vento gerado pelo caminhão de carga, uma onda de ar que as sacudiu.
Pararam mais adiante e Marcela tirou o capacete, o peito arfando em ofegância.
— Você está bem? — perguntou Marcela, mas seus olhos fixos na placa do caminhão que desaparecia na estrada denunciavam sua profunda preocupação. — Que filho da puta irresponsável! O vagabundo pensa que a pista é só dele!
— Estou bem. Tirando a tremedeira, o resto está uma beleza — respondeu Ágata, tentando soar mais firme do que realmente se sentia.
— Nessas curvas fechadas eu sempre puxo mais para o acostamento e diminuo a velocidade. Esses motoristas, na pressa de entregar a carga, não se importam com quem vem na faixa contrária — Marcela explicou, a voz ainda um pouco trêmula.
— Ainda bem que era você quem estava pilotando, eu não teria a mesma frieza para nos livrar da colisão — Ágata confessou, um calafrio percorrendo-lhe a espinha.
— Por isso não te incentivei a me trazer. Não foi por ciúme da moto ou porque não confiava em você, mas porque não confio nas estradas e rodovias do estado. Os motoristas saem do inferno direto para cima dos motoqueiros sem dar chance de sobrevivência — Marcela disse, a indignação latente em sua voz.
— Falta muito? — perguntou Ágata, buscando desviar a atenção de Marcela do motorista e daquele olhar que, Ágata sabia, a faria ir atrás dele se estivesse sozinha. A atenção de Marcela voltou para Ágata e, mais calma, ela respondeu:
— Não, a curva que falei é essa de onde surgiu o filho do cão. Lá na frente fica a estradinha de terra. Vamos.
Marcela recolocou o capacete e aguardou. Assim que sentiu os braços de Ágata apertando sua cintura, deu partida, o motor rugindo suavemente.
Dobraram à esquerda na estradinha de terra vermelha, que de pequena e estreita não tinha nada. Pedregulhos minúsculos faziam um barulho estranho sob o peso da moto, um rangido granulado. Ali, dois carros caberiam lado a lado tranquilamente. Em menos de cinco minutos, um enorme portão de pau surgiu à lateral da estrada que se perdia no horizonte. O nome da fazenda, gravado em uma placa imensa de madeira, deixava clara a nobre fonte de renda do local.
Marcela desceu, estendendo a mão para ajudar Ágata. Ela ainda olhava para a estrada, abismada com os cavalos que surgiam ao longe, pontos escuros que cresciam rapidamente.
— Venha, vou abrir o portão. Daqui até a casa sede dá para ir a pé, mas empurrar a moto é cansativo. Vou deixá-la aqui e vamos namorar um pouquinho, esperar os cavalos chegarem. Quero que eles se acostumem com sua presença — Marcela propôs, um leve sorriso nos lábios.
— E por que não vamos de moto? Agata perguntou sem entender o motivo da namorada em querer deixar a moto ali.
— Porque em cima de um cavalo, ou a pé da para você ver toda a beleza da fazenda, o que a velocidade roubaria de mim esse prazer de ver seus olhos admirados com tudo.—Marcela respondeu já descendo da moto e pendurando o capacete no guidom.
Quando Ágata desceu, passou o braço pelos ombros dela, apoiou o peso do corpo na moto e a puxou para um beijo, um gesto carregado de afeto.
Ágata entregou-se de bom grado, o coração batendo acelerado. Nunca imaginou que gostaria tanto de beijar e ser beijada. Marcela beijou o canto da boca de Ágata, subindo, roçando o nariz em seu rosto, demorando um pouco em sua sobrancelha. Cheirou suavemente seus olhos, um de cada vez, afundou o rosto em seus cabelos já bagunçados pelo capacete e beijou lentamente seu pescoço, dando ch*pões que não marcavam, mas a excitavam. Terminou na boca de Ágata, que já estava seca, ansiosa pelo contato, um desejo crescendo em seu interior.
O som das patas dos cavalos agora era mais nítido, dava até para contá-los. Eram oito belos animais sem montaria e um com montaria, ainda distante, mas já distinguível. Marcela deve ter percebido o interesse de Ágata.
— Aqui é uma fazenda de criação de cavalos. Meu irmão administra desde que a mamãe comprou. Você monta?
— Aprendi quando era criança e vinha passar o final de semana aqui com meu pai. Na época eu não tinha noção que era um haras, para mim era só uma fazenda bonita com cavalos — Ágata explicou, a lembrança de um passado inocente.
Marcela beijou os cabelos de Ágata, um carinho que a fez suspirar.
O cavaleiro solitário, montando um cavalo preto de pequeno porte, aproximou-se. Os cavalos quase se dispersaram, assustados com a presença das duas. Ou melhor, com a de Ágata, pois Marcela abriu os braços e se afastou dela para falar com os animais, com uma familiaridade reconfortante.
— Ei, meninos, voltem. Vamos entrar, tem uma pessoa esperando para dar uma boa escovada em vocês — Marcela disse, a voz cheia de ternura.
Ela beijou o focinho de cada cavalo enquanto falava baixinho, acariciando seus pelos, um laço invisível entre eles.
— Eles estão estressados. Correram muito e devem estar com fome e calor. Mas vão participar de uma feira agropecuária e precisam treinar. A senhora fez boa viagem, dona Marcela? — o homem perguntou, dando tapinhas no traseiro do animal para incentivá-lo a entrar.
— Na maior parte, sim, mas quando estávamos perto um caminhão de carga quase nos jogou fora da pista — Marcela contou, a lembrança ainda vívida.
— Isso aqui está ficando cheio de carros. Tira o sossego dos bichos, eles não gostam do barulho. Quem é a moça linda? Ela não me é estranha, já vi esse rosto em algum lugar — Chicão perguntou, a curiosidade em seus olhos.
Marcela apertou a cintura de Ágata com carinho, olhando para o rosto dela com adoração.
— Essa deusa, Chicão, se chama Ágata Chiara, minha namorada. Ela é filha do Gregório, aquele italiano amigo da mamãe, você lembra dele?.
— Agora eu lembrei! Ela era pequenininha e ficava o tempo todo atrás dos trabalhadores, enchendo todo mundo de perguntas. A gente só via ela quietinha quando você chegava com suas amigas, aí ela ficava toda tímida — Chicão relembrou, um sorriso nostálgico.
O que eles não faziam ideia era que Ágata não ficava quietinha por timidez. Ela ficava quieta para poder acompanhar os passos e o som das gargalhadas da filha caçula da dona Montserrat. Para ela, na inocência de seus doze anos, não havia som mais lindo do que esse. Foi por causa dela que quis aprender a montar, e foi também devido às suas várias amigas, todas bem maquiadas, vestidas e perfumadas, que passou batom nos lábios pela primeira vez. Tudo para ser notada por ela. Mas isso nunca aconteceu, um segredo guardado por anos.
— Eu não lembro da fisionomia dela nessa época. Lembro que sempre tinha uma mocinha linda andando no meio das plantas ou na estrebaria, mas nunca parei para conversar. A mulherada não deixava. Nessa época, eu já estava na polícia, já era adulta... e louca, eu tinha pressa de viver — Marcela falou, em tom de brincadeira, um brilho divertido nos olhos. Mesmo assim, Ágata apertou de leve a cintura de Marcela, fazendo-a se contorcer e soltar um gritinho de surpresa, o que arrancou uma gargalhada de Chicão. Ele cuspiu um pedaço do fumo que vinha mastigando para rir, o som reverberando pelo ar.
— Vamos andando e colocando a conversa em dia. Acabei de ver sua menina e os primos tomando banho lá na cabeceira do açude com uma fileira de varas de pescar espalhadas no chão. Seu Anderson parece que rejuvenesce na frente das crianças. Ele e a dona Valesca.
Ágata não sabe explicar, mas teve a impressão de que Marcela sentiu um certo desconforto ao ouvir o nome. Seu instinto de proteção com a filha era natural, talvez pelas duas já terem passado por muitas coisas, uma sombra de preocupação pairando no ar.
Chicão contava as novidades sobre tudo que acontecera na fazenda nos últimos anos, incluindo as mudanças feitas pelo irmão da Marcela. Desse Ágata se lembrava bem. Sabia que ele cuidava do haras com punho de ferro, levando o nome da fazenda para fora do estado com o negócio de reprodução de cavalos de raça. Foi ele quem a ensinou tudo que sabe sobre cavalos quando Ágata disse que queria ser veterinária. E também foi no haras que aprendeu a montar.
— Vocês ainda têm a escola de hipismo? — Ágata perguntou, a curiosidade despertada.
Marcela parou de caminhar e olhou para Ágata com surpresa.
— Temos, sim, mas agora quase ninguém de fora vem se matricular. Hoje em dia tudo dá processo. Se um professor ajudar a amazona a descer do animal pode ser acusado de assédio, se pegar no pé dela para colocar na posição certa pode ser acusado de assédio… Agora só vem aprender a família ou alguém que confia no nosso trabalho. Alex está aprendendo com a dona Irvina — Marcela explicou, um tom de resignação em sua voz.
— Chicão, o Jacinto ainda não foi embora? E esse outro carro é de quem?
Ágata acompanhou para onde Marcela olhava e reconheceu o carro que já viu no Gregório’s com o Jacinto, mas o outro ela nunca tinha visto.
— Sei dizer não, mas quando eu saí antes do sol nascer ele não estava aqui. Deve ser da dona Valesca, o outro carro ela está na fazenda — Chicão falou apressado, puxando os arreios de seu animal e entregando-o a um menino. Ele correu para a baía, acompanhado do seu mestre, e mais uma vez Ágata sentiu o desconforto, acompanhado de um nervosismo inesperado. Estava começando a ficar preocupada, uma sensação inquietante no estômago.
— Venha, vamos entrar e descobrir porque eles estão aqui — Marcela disse, a voz tentando soar firme, mas com uma leve tensão.
Mesmo tentando parecer calma, Ágata sentia a agitação de Marcela. Era muita coisa para ela se preocupar. Ágata queria poder fazer alguma coisa, mas não sabia o quê, uma impotência frustrante.
— Acha que pegaram os bandidos?
— Estou rezando para isso acontecer logo. Não aguento mais essa tensão — Marcela confessou, a voz quase um sussurro.
Não tinha muito o que fazer. Ágata apertou a mão de Marcela para mostrar que ela não estava mais sozinha nessa, um gesto silencioso de apoio e solidariedade.
Fim do capítulo
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