Capitulo II
O dia seguinte amanheceu tão nublado quanto meu humor. O cheiro de café com whisky ardia meu nariz toda vez que o aproximava da xícara, a mistura poderosa amargava minha língua desagradavelmente. No terceiro gole já sentia minha boca dormente e aquecida. Ingerir aquele líquido duvidoso era um costume fúnebre horroroso do meu coven. Nunca entendi bem porque a manhã precedida de um funeral deveria ser iniciada com o casamento daquelas duas bebidas. Maldita fosse a bruxa que havia iniciado aquilo. Odiava café com todas as minhas forças, me parecia um pecado enorme estragar um bom whisky com aquele líquido miserável, mas costumes eram costumes.
O funeral da minha mãe aconteceria no início da noite. Todas as bruxas de Eradia foram convocadas para se reunirem ao rito. Vestidos brancos, fogo, velas, oferendas e cinzas, seriam o que marcariam a passagem da sua alma entre o plano mortal e o superior. Que a Deusa me desse forças, porque não estava nenhum pouco preparada para a dura realidade que cairia sobre mim depois disso. Minha mente se recusava a aceitar que minha mãe estava morta. Minha doce Alice, havia partido, e outra vez eu estava só.
Essa desolação infinita junto a sensação sufocante de ser julgada por olhos maldosos, fazia meu estômago retorcer ainda mais do que pelo gosto indesejável de café. Se aquela manhã era um prelúdio do que estava por vir, que a Deusa tivesse piedade da minha pobre existência.
Sendo torturada por esses pensamentos fui ao escritório da minha mãe em busca de algum alívio. Cada pedaço daquela sala estava repleto da sua presença. Eu rogava baixinho para que, de onde quer que ela estivesse, me emprestasse sua obstinação e coragem para ser a filha que ela merecia, que a desse orgulho. Apesar de estar sofrendo com o luto, o medo do fracasso me castigava. Eu não sabia o que as sete de Salem pretendiam, mas carregava apenas uma certeza, o coven Maycler não seria dizimado!
O dia pareceu se arrastar enquanto me preparava para o evento daquela noite. Eu havia escolhido um vestido justo longo e branco de mangas largas que se ajustavam nos pulsos, nos pés uma sandália baixa fácil de tirar, já que ficaria descalça durante o ritual. Meus cabelos estavam parcialmente presos por duas tranças pequenas nas laterais, nenhuma maquiagem – não era preciso de muito afinal.
Amélie e Philip vieram me buscar um pouco antes das 19 horas. O futuro marido da minha amiga, me deu um abraço apertado tão cheio de empatia que mal consegui segurar as lágrimas. Assim como eu, ambos estavam de branco, Amélie com um vestido de alças finas e seu noivo com uma bata e calça de linho. Eles formavam um casal belíssimo. Amélie com seus cabelos curtos pretos e cacheados, tinha olhos castanhos, pele parda, sobrancelhas grossas e a estatura mediana, um punhado de sardas se espalhavam sobre o nariz e bochechas dando-lhe uma aparência adorável — o que ela seria se não fosse a língua afiada. Do outro lado tinha Philip Abbot, cabelos e olhos castanhos claros, tinha uma barba cheia e cabelos na altura dos ombros. Apesar de sua aparência austera era muito simpático. Eu fazia muito gosto daquele casamento, apesar de tudo, estava feliz por logo poder celebrar a união das duas pessoas que mais gostava na vida.
Quando chegamos à clareira onde os grandes rituais aconteciam, pude ver o mar de pessoas. Parecia que toda a cidade estava presente, o que não era nenhuma surpresa. Aind do péssimo histórico do coven Maycler, Alice era a única das sete que a comunidade bruxa realmente admirava, ao contrário das representantes tiranas dos covens Waterhouse, Abbot, Fairfall, Valdéz, Mahlin e Howe. Aquelas senhoras além de rígidas eram especialmente amargas. Não sabia como seria ter de lidar com elas, mas esperava conseguir sobreviver a todo aquele drama político que as rondava. A última guerra bruxa havia sido a mais de 200 anos, mas os reflexos negativos sobreviviam através das mãos de ferro daquelas mulheres.
Elisabeth Fairfall, a avó da minha melhor amiga, era quem puxava as cordas daquele teatro todo. Se uma das sete fosse se tornar a sacerdotisa, tinha certeza que seria ela. A senhora de 67 anos parecia uma estátua, com sua eterna feição de desagrado. Eu não tinha nenhuma lembrança de já tê-la visto sorrir na vida, nem mesmo quando se disse orgulhosa da neta seguir os seus passos como matriarca.
Dentre a multidão um rosto familiar deteve meus passos. A única mulher capaz de me tirar o fôlego, a dona das minhas palpitações, a causadora da minha desordem emocional. Seus cabelos castanhos outrora longos, agora, caiam em ondulações por seu ombro, a chemise branca falhava miseravelmente em esconder suas curvas sinuosas, sua pele dourada parecia duelar com o brilho lunar prateado que cobria aquela noite, o sorriso composto por lábios grossos responsáveis por sempre capturar minha completa atenção. Diana Valdéz parecia ainda mais bonita do que me lembrava, pela Deusa!
Vendo minha parada repentina, Amélie seguiu na direção que meus olhos se pregaram. Sua risada descrente me fez olhá-la carrancuda, prevendo o desastre.
— Tinha que ser! – começou.
— Não seja inconveniente, Mel. Respeite meu luto! – tentei desviar.
— Sou eu quem deveria lhe dizer isso, garota. Nem mesmo num funeral essa sua paixonite da trégua, pela misericórdia! – debochou, abertamente. Philip que estava alheio ao que conversávamos trocou um olhar confuso entre nós duas, optando por ignorar.
—Por favor! – supliquei, esperançosa, porém o sorriso travesso da minha amiga só confirmou que eu não conseguiria escapar das suas intenções perversas.
— Sabe, sempre me perguntei o que mais ela te ensinou além de piano. – falou, simplista. — Técnicas avançadas de dedilhado, talvez?
— Você é detestável! – ralhei, indignada, fazendo a maldita gargalhar. Era nessas horas que me perguntava porque ainda era amiga daquela garota.
— Emily, as sete estão te esperando. – ouço alguém dizer, quebrando completamente o clima descontraído. As seis, meu subconsciente insiste em lembrar com pesar. A hora tinha chegado. O inevitável adeus se fazia presente como um convidado inconveniente.
Amélie deu um passo na minha direção segurando minha mão, num gesto de apoio, me arrancando um sorriso agradecido. Andamos em silêncio por entre as pessoas que davam condolências vagas à medida que passávamos. A cacofonia de vozes repetindo as mesmas palavras me enchia de agonia. Eu apertava a pobre mão da minha amiga em reflexo, e ela aceitava solidária.
Quando chegamos ao centro da clareira, vi o pequeno altar onde jazia a urna, preta de detalhes dourados, com as cinzas da minha mãe. De certo modo, estava aliviada por não ter minha última memória dela, manchada pela imagem de seu corpo sem vida. Poderia ser insensível da minha parte, mas queria manter a memória do seu sorriso acolhedor, dos seus olhos verdes brilhando de entusiasmo, da sua voz suave me ensinando. Pela Deusa, como eu sentia falta dela!
— Podemos começar! – declarou matriarca Fairfall, fazendo um silêncio sepulcral se estender por toda a clareira. — Esta noite celebramos a vida de Alice Maycler! Uma matriarca cujo legado sempre será lembrado por sua sabedoria e perseverança. Que a Deusa lhe conceda uma boa passagem!
O coro de vozes repetindo as palavras reverberou por toda a clareira, junto ao meu coração que terminava de se despedaçar.
— Emily Maycler, dê um passo à frente. – disse a matriarca Howe, enquanto abria um pequeno potinho em suas mãos. Lentamente me coloquei à sua frente, a feição da velha senhora estava compenetrada enquanto sujava seu dedo indicador magro com um pouco das cinzas da minha mãe.
— Poderosa Mãe, conceda a esta filha a sabedoria necessária para elevar o legado de sua família, trazendo honra aos seus. – entoou Howe, enquanto trançava o símbolo de uma lua crescente em minha testa com as cinzas. — Que sua força ajude-a lidar com as adversidades. Abençoada seja!
Uma ardência incomum surgiu com os movimentos simples que a matriarca fazia sobre a minha testa. Não sabia se era normal, mas o incômodo parecia estar aumentando. Minha pele parecia estar sendo queimada com ferro em brasa, e a sensação se espalhava por todo meu corpo. Então… algo aconteceu, senti uma força inexplicável explodindo de dentro de mim, um calafrio estranho e depois tudo se apagou.
Quando dei por mim, estava na clareira, sozinha. Tudo ao meu redor tinha sumido, as pessoas, as sete, Diana, o altar, a urna, tudo. O silêncio era assustador, e a luz pálida da lua era a única responsável por me fazer enxergar o singular jardim de acônito que se estendia feito um tapete roxo ao meu redor. O tempo parecia suspenso. O ar parecia mais carregado. O que estava acontecendo?
Ouvi um farfalhar, o som inconfundível de passos sobre as folhas secas. Forcei meus olhos ao horizonte, e ao longe vi, uma figura feminina se aproximando com lentidão. Seu vestido era negro e eterio, seus longos cabelos pretos pareciam flutuar ao seu redor açoitando o ar, seus olhos eram escuros e profundos como um abismo, mas o que me alarmou mesmo foram as três luas: crescente, cheia e minguante, tatuadas em tons prateados em sua testa.
Ali, na minha frente, estava ninguém menos do que aquela por quem eu rogava quando proferia feitiços, a Deusa Tríplice, a Mãe das Bruxas, Hécate.
Imediatamente, me coloquei de joelhos curvando a cabeça em claro respeito. Ainda que eu fosse avessa a bajulação era uma divindade na minha frente, afinal. Era a responsável por ter nascido bruxa.
— Levante-se, minha filha! – ordenou, a voz densa e rouca, com uma pitada de satisfação. Sua presença poderosa enviava arrepios infindáveis por minha pele. Estar na presença da Deusa era fascinante e assustador.
Quando me levantei devagar, percebi o olhar intenso que a mãe das bruxas me dava, para minha surpresa não me senti amedrontada, havia uma paz terrível dentro de mim. Sua aparência antes de uma jovem, havia dado lugar a de uma senhora idosa, os cabelos brancos brilhavam sob a luz pálida da lua. Aquela era mais uma das suas três faces – a anciã.
— Emily… tem muitas coisas para acontecer, e sei que a perda de Alice será a mais difícil delas, mas preciso da sua ajuda, minha filha. – ela disse, com calmaria. — Darei-lhe uma escolha, então a faça com sabedoria!
Hécate ergueu sua mão esquerda fazendo com que três itens aparecessem flutuando no ar. Uma tocha acesa, uma adaga prata e uma chave dourada. Mesmo sendo uma bruxa, ver a Deusa em pessoa fazer algo como aquilo me fazia querer agir como uma criança impressionada. O quão patética eu poderia ser, ainda não sabia.
— Cada um representa uma bênção, faça sua escolha. – incentivou, me olhando com expectativa.
A simples menção de ser abençoada fez todo o meu corpo tensionar. Então era assim que acontecia? Eu não queria ser abençoada, sabia muito bem o que aquilo significaria. Eu seria apenas mais um objeto na mão daquelas velhas gananciosas, mais um item da coleção bizarra das matriarcas. Parecendo ver meu conflito, Hécate sorriu divertida.
— É engraçado como você teme mulheres que não são nada além de seres mortais. – garantiu-me. — Elas se esqueceram de quem são filhas, não cometa o mesmo erro Emily!
Por um segundo, a certeza de que meus pensamentos eram tão claros como água, me deixou aflita. Não queria e nem poderia ofender a Deusa. Divindades antigas como ela, não eram conhecidas por sua tolerância. No entanto, uma dúvida cruel apertava minha garganta, me fazendo ignorar qualquer pensamento prudente.
— Minha senhora, se me permite… – ousei, e para meu alívio Hécate apenas anuiu concordando. — Não quero soar presunçosa, mas porque eu?
— Ah minha criança, você não percebeu? – cantarolou. — Não estou te abençoando, Emily, você não precisa disso! Afinal, a filha da noite carrega parte da minha essência. Como Deusa não posso interferir, mas posso ceder meios para que siga sua jornada. Um apoio extra, entende. O que você fará, somente lhe diz respeito.
Aquelas palavras afundaram no meu peito como uma estaca afiada. A afirmação não tão subentendida soou como uma sentença inescapável. Eu era a mulher da profecia! Puta que pariu! Eu seria a responsável por quebrar a porr* do sistema opressivo que as matriarcas instalaram nos últimos anos. Amélie iria surtar quando soubesse.
— Agora, escolha! – Hécate ordenou, novamente, puxando a força meus pensamentos de volta ao presente.
Voltei a olhar os objetos com atenção, cada um parecia emitir uma energia própria. Ainda sem entender muito bem, ouvi minha intuição, e estiquei a mão direita na direção da adaga. O cabo pareceu vibrar quando o toquei, e sua lâmina brilhou um pouco mais do que o normal. Senti quando a Deusa colocou sua mão sobre meu ombro, apesar da leveza do toque, o calor de sua palma aqueceu minha pele agradavelmente.
— A magia mais poderosa é aquela que reside em nossos corações, Emily, lembrem-se disso! Anseios egoístas são vazios por si só.
Assenti concordando, e logo depois não vi mais nada.
Fim do capítulo
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