O Peso do Azul por asuna
Capítulo 3
Faltava uma semana para o início do ano letivo. Depois daquela controvérsia, Paul e Amanda finalmente sentaram-se comigo para esclarecer as regras da casa. Paul, que trabalhava como engenheiro civil, e Amanda, como historiadora, tinham rotinas bem ocupadas e queriam garantir que a casa funcionasse de forma equilibrada para todos.
— Maya, aqui todos colaboramos para que a casa funcione de forma harmoniosa – disse Paul, com a voz firme e gentil, enquanto ajeitava alguns papéis na mesa. — Vais dividir as tarefas com a Piper, mas não queremos impor nada. Queremos que te sinta parte desta família.
Amanda, com o seu jeito acolhedor, completou:
— Exatamente, querida. Apesar das nossas rotinas serem bem ocupadas – sorriu de forma sincera antes de prosseguir – queremos que tenhas liberdade para explorar, mas sem esquecer de nos manter informados. Se algo acontecer, se te atrasares, basta ligar, Ok?
Hesitei por um instante antes de falar, sentindo o peso das antigas expectativas pulsando no peito.
— Na verdade, eu não costumo sair muito... — Confessei num sussurro. — Sempre vivi num ritmo bem contido. — Prossegui, desviando rapidamente o olhar para chão. — Com horários fixos para jantar, então sair desse padrão sempre pareceu quase impensável. E, se formos sinceros, talvez o único lugar para onde eu realmente saia seja a igreja, assim que eu encontrar uma congregação que me acolha.
Nesse momento, ao ouvir as minhas palavras, Paul e Amanda trocaram um olhar breve, repleto de surpresa, contudo sem qualquer julgamento, apenas um silencioso reconhecimento do quão diferente tudo aquilo era para mim.
Paul inclinou-se aproximando-se um pouco mais.
— Maya, aqui não se trata de controle, mas de cuidado. Tens total liberdade para conhecer a cidade, sair com amigos. Apenas pedimos que, se algo imprevisto acontecer, nos avises. Estamos aqui para ajudar, sempre.
Amanda assentiu, acrescentando.
— Queremos que te divirtas e descubras tudo o que essa cidade tem a oferecer. As regras aqui existem para garantir segurança e equilíbrio, e não para te prender. Tu agora és parte dessa família, e essa confiança é mútua.
Enquanto absorvia aquelas palavras, senti um misto de alívio e um leve desconforto. Não disse nada, assentindo apenas com um breve sorriso.
Nos dias que seguiram o que mais me surpreendeu, foi Piper. Esta fez questão de me mostrar a cidade, levando-me a lugares que iam além dos pontos turísticos óbvios. Fomos a cafés escondidos em ruas estreitas, a uma livraria independente que vendia edições raras e até a uma praia pouco frequentada, onde o som das ondas parecia mais calmo do que qualquer outro lugar. Foi fácil esquecer, por alguns momentos, como tudo aquilo ainda era novo. Mas, ao mesmo tempo, uma sensação incômoda começou a crescer: culpa.
Piper claramente estava acostumada a passar o seu tempo com os amigos, a viver a sua vida sem amarras. Agora, no entanto, parecia estar ocupando o seu tempo comigo, uma estranha que mal conhecia. Será que fazia isso por que queria? Ou apenas por que os seus pais a pressionaram para ser gentil comigo?
Eu não sabia a resposta, contudo, ao mesmo tempo, não podia negar: a companhia dela começava a ser algo que eu realmente apreciava. Depois daquela discussão, Piper surpreendeu-me ao se desculpar. Não foi uma desculpa formal, nem algo ensaiado, na verdade, parecia que ela tinha travado uma pequena batalha interna antes de finalmente soltar um:
— Olha, sobre antes... talvez eu tenha exagerado um pouco.
Comentou sem me encarar diretamente, os braços cruzados, como se o simples ato de pedir desculpas fosse algo que custava a admitir.
Surpreendida, ergui as sobrancelhas e soltei uma pequena risada.
— Só talvez?
Piper bufou, revirando os olhos.
— Está bem, pronto. Exagerei. Mas não te acostumes, não sou do tipo que faz isso com frequência.
— Oh, que pena. Eu já ia anotar este momento histórico no meu diário.
Ela balançou a cabeça, porém um sorriso surgiu discretamente no canto de seus lábios.
Não precisava dizer mais nada. Apenas aquele gesto já mostrava que, por trás da sua postura rebelde e do jeito desafiador, existia alguém que se importava mais do que gostaria de admitir.
Foi depois desse momento que decidimos sair para caminhar pela cidade, sem destino certo, apenas explorando as ruas de Gold Coast. Caminhávamos lado a lado, sem pressa, e pela primeira vez senti que havia um tipo de conforto na sua presença.
A princípio, caminhávamos em silêncio, contudo com o tempo, isso deixou de ser estranho. Piper apontava para as lojas e cafés, soltava comentários aleatórios sobre as pessoas que passavam, e eu, sem perceber, comecei a responder, a rir das suas observações. Não precisei mais tentar encontrar palavras para preencher os espaços, a presença dela bastava. O sol já estava a se pôr, tingindo o céu com tons alaranjados, quando a vimos.
Chloe estava sentada sozinha num café da esquina, absorta num livro de capa azul-gasta. O seu cabelo loiro refletia a luz do entardecer, e seus dedos longos giravam distraidamente uma colher dentro da xícara de café, O título estampado era inconfundível: mitologia grega. A curiosidade tomou conta de mim de imediato. Mitologia sempre fora algo que me fascinava, uma forma de histórias que não seguiam a rigidez da minha fé, que apresentavam deuses imperfeitos, humanos, vulneráveis, contudo eu nunca tivera coragem de explorar aquilo como queria. Desde o nosso primeiro encontro, algo nela intrigava-me profundamente. Lembro-me de como, nas poucas vezes em que a vi na casa dos Walsh, esta passava longas horas no quarto de Piper, mergulhadas em longas conversas e risos soltos que preenchiam os corredores. Já quando partilhávamos o mesmo comodo eu as observava silenciosamente, como elas interagiam com facilidade, contudo o que realmente chamava a minha atenção era como Chloe dirigia as conversas de forma tao subtil que revelava uma inesperada profundida intelectual escondida por trás do seu jeito aparentemente casual.
Agora, diante de mim, estava ela, tão absorta naquelas páginas como se o mundo ao seu redor não existisse.
— Olha só — murmurou Piper do meu lado, cruzando os braços com um sorriso trocista. — Aposto que ela está a tentar decifrar os oráculos de Delfos para descobrir o sentido da vida.
Soltei uma risada nervosa, no entanto o meu olhar continuou fixo nela. Como alguém poderia ter uma presença tão forte mesmo sem dizer uma palavra? Antes que eu pudesse decidir se me aproximava ou não, Chloe ergueu os olhos, como se tivesse sentido o meu olhar. Seu sorriso surgiu lento, quase preguiçoso.
— Estão a seguir-me, é isso? — perguntou, com uma leve provocação que fez a minha pele reagir.
— Puro acaso — respondeu a ruiva antes que eu conseguisse dizer algo. — Ou talvez seja o destino. A Maya acredita nessas coisas.
Lancei-lhe um olhar de soslaio, arqueando a sobrancelha, contudo esta apenas riu puxando uma cadeira sem hesitação. Chloe manteve o olhar fixo em mim, expectante. Eu podia simplesmente continuar a caminhar, ignorar a sua presença, fingir que não me afetava. Mas algo me fez hesitar.
Sem perceber, fiquei ali.
Respirei fundo e sentei-me ao lado de Piper, sentindo a minha respiração prender-se levemente no peito quando a loira deslizou o livro na mesa entre nós. Antes que qualquer uma de nós falasse, um funcionário aproximou-se, o bloco de notas na mão e um sorriso polido.
— O que vão querer?
Troquei um breve olhar com Piper antes de sussurrar:
— Um chá preto, por favor.
— Café para mim — acrescentou Piper, tamborilando os dedos na mesa.
Chloe pediu um expresso, e o funcionário anotou os pedidos com um aceno antes de se afastar. O silêncio que se seguiu durou apenas um instante, mas pareceu mais denso do que deveria.
Ajeitei-me na cadeira, deslizando os dedos distraidamente sobre a superfície fria da mesa.
— E então, mitologia grega? — murmurei, esforçando-me para manter a voz estável.
— É fascinante — respondeu Chloe, os olhos azuis cintilando com uma mistura de entusiasmo e provocação. — Deuses tão humanos, cheios de falhas, desejos, contradições... Para eles, isso não era mitologia, era simplesmente a verdade.
Fechou o livro com um movimento lento, apoiando o queixo na mão enquanto me estudava.
— Engraçado, não é? Como algumas histórias são consideradas meras lendas, enquanto outras são tomadas como a palavra absoluta, sem espaço para dúvida? — Fez uma pausa, o canto dos lábios se curvando num sorriso travesso. — Aposto que algumas pessoas nem sequer se permitem questionar… por medo do que podem encontrar.
A pergunta pairou no ar, e eu engoli em seco.
Ela estava a testar-me, esperando para ver se eu recuaria, se encontraria uma forma de evitar aquele confronto silencioso. No entanto, naquele instante, algo realmente me fez vacilar.
Chloe sempre parecia ter controle sobre a direção dos diálogos, guiando-os com uma leveza desconcertante. Nunca impunha as suas palavras, mas sabia exatamente como moldá-las para provocar uma resposta. E agora, ali, sentada diante dela, percebi que estava a fazer o mesmo comigo.
Empurrando-me suavemente para fora da minha zona de conforto.
Esperando para ver se eu fugiria.
Contudo, em vez do caos que normalmente me consumia em momentos de incerteza, senti uma estranha clareza. A confusão que sempre me atormentava parecia menos avassaladora, como se, sem esforço algum, ela tornasse tudo mais suportável.
Não porque me oferecia respostas.
Mas porque me fazia querer buscá-las.
— Talvez. — Sussurrei, desviando o olhar para a xícara de café dela. — Ou talvez só gostemos de acreditar que as respostas para tudo estão nos mitos e nas escrituras.
Chloe soltou um riso baixo, quase inaudível, e tamborilou os dedos contra a capa do livro.
— Ah, então admites que há uma semelhança? — provocou, inclinando-se ligeiramente na minha direção, como se estivesse a medir a minha reação. — No fundo, tudo é uma questão de interpretação, não é? Depende de quem conta a história… e de quem está disposto a acreditar nela sem questionar.
Mordi o interior da bochecha, sentindo o peso daquela insinuação.
— Ou talvez algumas histórias sobrevivam porque trazem conforto — retruquei, forçando-me a manter a voz firme. — Nem tudo precisa ser provado ou desmontado para ser real. Algumas coisas simplesmente… são.
Chloe estreitou ligeiramente os olhos, como se estivesse genuinamente intrigada com a minha resposta. Depois, inclinou a cabeça para o lado, estudando-me com aquela intensidade desconcertante.
— Então não importa se algo é verdade, desde que te faça sentir segura? — perguntou, a voz baixa, quase gentil, no entanto carregada daquele desafio subentendido. — Não é um pouco perigoso viver assim? Aceitar algo só porque é mais fácil do que encarar a possibilidade de estar errada?
A minha respiração ficou presa na garganta, porém não recuei.
Em vez disso, soltei um pequeno sorriso, discreto, mas calculado o suficiente para que ela soubesse que eu não era tão previsível quanto talvez pensasse.
— Talvez o verdadeiro perigo esteja em acreditar que questionar significa automaticamente descartar — repliquei, sustentando o seu olhar.
Os dedos de Chloe, que deslizavam preguiçosamente sobre a borda da xícara, pararam por uma fração de segundo.
Quase impercetível, no entanto o suficiente para que eu notasse.
— Hum… — sussurrou, como se estivesse a reconsiderar algo sobre mim. O sorriso nos seus lábios tornou-se mais lento, quase apreciativo. — Interessante.
O silêncio que se seguiu foi denso, carregado.
A tensão entre nós parecia vibrar no ar, oscilando entre o desafio e algo mais—algo que eu ainda não sabia bem nomear.
— Bem, se vão continuar com esse flerte disfarçado de filosofia existencial, ao menos tenham a decência de pedir outra rodada de café. — Piper interveio abruptamente, recostando-se na cadeira com um olhar divertido.
Sobressaltei-me ligeiramente e desviei o olhar de Chloe, sentindo o calor subir pelo meu pescoço.
Ela, por outro lado, soltou uma gargalhada curta e despreocupada.
— Estás a imaginar coisas, Pipe. — Murmurou, pegando a xícara com um sorriso malicioso.
— Estou? — A ruiva arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços com um ar de desafio. — Porque, sejamos sinceras, se mais alguém tivesse entrado neste café sem saber de nada, eu apostaria dinheiro em como vocês estavam a tentar despir-se com os olhos enquanto falavam de mitologia.
Senti a minha respiração vacilar, o pânico a instalar-se lentamente, contudo Chloe apenas se recostou na cadeira, lançando um olhar descontraído para a amiga.
— E se estivermos? Vais fazer um discurso sobre como os deuses gregos eram libertinos e promíscuos?
Piper riu, revirando os olhos.
— Eu só queria um café tranquilo e agora estou aqui a assistir a esta tensão não resolvida.
Fez uma pausa dramática, lançando de seguida um olhar divertido na direção da loira.
— Mas, a sério, Chloe… devias dar um desconto à Maya. A pobre jovem acabou de chegar. Pelo menos espera mais algumas semanas antes de a fazer questionar todas as suas convicções.
Ela lançou-me um olhar bem-disposto antes de se voltar na direção da ruiva.
— Mas onde estaria a graça nisso?
Piper soltou um riso curto, cruzando novamente os braços com um brilho travesso nos olhos.
— Pois, esse é o problema. Tu adoras brincar com fogo, mas esqueces-te de que, às vezes, alguém pode acabar queimado.
Chloe inclinou ligeiramente a cabeça, avaliando Piper por um instante. O sorriso continuou nos seus lábios, porém havia algo mais por trás dele, talvez uma resposta não dita, um pensamento que guardava apenas para si.
— Estás a dizer que sou uma influência perigosa?
— Estou a dizer que já vi este filme antes, Harper. — A forma como a ruiva usou o sobrenome de Chloe chamou a minha atenção, não foi por acaso. Havia uma intenção clara ali, quase irônica, como quem conhece bem a história e faz questão de sublinhá-la. — Tipo num verão em que uma certa pessoa ficou presa na tua órbita e nunca mais conseguiu sair.
Houve um breve silêncio carregado, e mesmo sem conhecer a história, senti algo diferente no ar.
Por um instante, Chloe permaneceu em silêncio. Passou a língua pelos dentes, os dedos desenhando círculos lentos ao redor da borda da xícara, um gesto distraído demais para ser casual. Então, recostou-se na cadeira, os lábios curvando-se num sorriso meio divertido, meio resignado.
— Ouch! Vais mesmo trazer isso à conversa?
Piper ergueu as mãos, fingindo inocência.
— Só digo que nem toda a gente lida bem com enigmas.
Olhos azuis turquesa deslizaram lentamente até mim, prendendo-me intensamente, como se esperasse uma reação.
O ar entre nós pareceu ficar mais denso.
— Talvez algumas pessoas apreciem um bom mistério. — Murmurou, a voz suave, mas com um peso difícil de ignorar.
Senti o estômago apertar. Os meus dedos cerraram-se involuntariamente no meu colo. Desviei o olhar, fixando-me no vapor da minha bebida, fingindo que aquilo não me afetava.
Fingindo que não sentia o peso daquela troca de palavras.
Piper soltou um pequeno riso pelo nariz, inclinando-se para trás na cadeira, claramente satisfeita consigo mesma.
— Bom, se for esse o caso, espero que estejam prontas para os enigmas que não foram feitos para serem resolvidos.
O silêncio que se seguiu foi espesso, elétrico.
Carregado de significados não ditos.
E, pela primeira vez, senti que talvez já estivesse demasiado envolvida sem sequer perceber.
Bastou um breve desvio do meu olhar para que Chloe voltasse a capturá-lo, prendendo-me com aquela intensidade desconcertante, como se pudesse ver além da superfície, como se estivesse à espera de algo, uma resposta, um deslize, um recuo. O ar permanecia carregado de um significado que eu ainda não conseguia decifrar. Mas antes que qualquer palavra fosse dita, Piper soltou um suspiro exagerado e empurrou a xícara vazia para o centro da mesa, rompendo o momento com a sua típica irreverência.
— Bom, adorei assistir a este duelo intelectual carregado de subtexto, mas acho que preciso de mais cafeína para continuar a aturá-lo.
O comentário fez Chloe rir baixinho, o que quebrou um pouco a tensão que pesava no ar. Aproveitei o momento para respirar fundo e reorganizar os meus pensamentos. Não sabia exatamente o que tinha acabado de acontecer ali, mas uma coisa era certa: aquilo não era apenas uma conversa trivial, quanto mais tempo passava com elas, mais me surpreendia.
***
Com o tempo, fui aprendendo mais sobre Piper. Ela não era apenas a filha que desafiava os pais e testava os seus limites. Ela, assim como Chloe, era mais complexa do que deixava transparecer. Apesar do seu jeito descontraído, era extremamente protetora com aqueles que amava, especialmente com Amanda. Quando falava sobre mãe, sua voz carregava um carinho genuíno, embora tentasse disfarçar. Também percebi que, por mais que gostasse de se mostrar independente, sentia uma inquietação constante, como se estivesse sempre procurando algo que a fizesse se sentir inteira.
Talvez essa inquietação fosse algo de família. Amanda, sua mãe, também parecia movida por uma busca incessante— não por um lugar ao qual pertencesse, mas por narrativas que explicassem o mundo. Apaixonada pelo passado, como historiadora, ela sempre compartilhava histórias fascinantes sobre culturas antigas e momentos marcantes da humanidade. O seu entusiasmo era tão contagiante que, sem dar por isso, acabava por ouvi-la atentamente, mesmo quando achava que o assunto não me interessava.
— Sabes, Maya, há algo que sempre me fascinou na história: as mulheres que ousaram desafiar as normas do seu tempo. — Amanda comentou certa noite, enquanto passávamos pela cozinha. Ela segurava uma xícara de chá, o olhar distante, porém carregado de admiração.
— Mulheres que desafiaram normas? — perguntei, curiosa.
— Sim. São tantas, mas há algumas que me marcaram profundamente. Como Olympe de Gouges, por exemplo. No século XVIII, enquanto a Revolução Francesa proclamava liberdade e igualdade, ela escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, exigindo que as mulheres tivessem os mesmos direitos que os homens. Foi guilhotinada por isso.
Engoli em seco. A forma como esta falava tornava tudo ainda mais vívido.
— Ou então Wangari Maathai. — Continuou inclinando-se ligeiramente contra a bancada. — Ela lutou contra um sistema que destruía tanto a natureza quanto as mulheres no Quênia. Criou o movimento Cinturão Verde, plantou milhões de árvores e empoderou milhares de mulheres. Diziam-lhe que deveria ficar calada. Recusou. E ganhou um Prêmio Nobel por isso.
Fiquei em silêncio, enquanto absorvia as suas palavras. Nunca tinha pensado na história dessa forma, como um conjunto de vozes que foram caladas e, ainda assim, encontraram formas de ecoar.
— E Hypatia? — Amanda acrescentou, com um sorriso quase triste. — Uma filósofa e matemática brilhante na Alexandria do século IV. Era respeitada, mas foi assassinada por aqueles que temiam a sua influência. O mundo poderia ter sido diferente se a tivessem ouvido.
Senti um arrepio percorrer a minha pele. Não era apenas sobre factos. Era sobre resistência.
— Sempre me pergunto como seria se essas mulheres tivessem sido ouvidas no seu tempo. O que poderíamos ter aprendido com elas? — Suspirou, tomando um gole do chá.
As palavras de Amanda ecoaram na minha mente mais do que eu esperara. Mulheres que desafiaram as regras. Que ousaram questionar.
O que acontece quando não há espaço para questionar?
O pensamento levou-me, inevitavelmente, ao olhar severo do meu pai. A forma como as suas certezas pareciam inabaláveis, como se qualquer dúvida fosse um erro, uma falha de caráter. Cresci num mundo onde tudo tinha uma resposta, onde me diziam exatamente o que era certo ou errado. Mas agora, sentada ali, ouvindo Amanda falar sobre histórias que tinham sido silenciadas, comecei a perceber o peso do silêncio que eu própria carregava. Talvez fosse por isso que sempre me intrigaram pessoas que viam o mundo de outra forma.
Paul, por outro lado, sendo engenheiro civil, tinha uma abordagem mais prática para a vida. Ele não parecia precisar de certezas absolutas, apenas de soluções. Gostava de resolver problemas, de encontrar caminhos lógicos, o que criava um equilíbrio curioso entre os dois como casal.
E Piper... bem, ela era um mistério à parte. Também descobri que tocava guitarra, algo que nunca mencionou diretamente, no entanto que percebi quando ouvi acordes suaves vindos do seu quarto numa das noites que passei acordada. E, curiosamente, adorava cozinhar. Não era raro vê-la na cozinha testando receitas improvisadas, muitas vezes sem seguir nenhuma lógica, apenas misturando ingredientes e provando.
Aos poucos, a imagem que eu tinha dela começou a se transformar. E, por mais que uma parte de mim tentasse manter distância, eu sabia que já estava começando a me acostumar com a sua presença na minha vida.
Era sábado à tarde. Amanda e Paul tinham saído para resolver alguns compromissos, eu aproveitara o silêncio da casa para me deitar no sofá da sala, imergindo num livro que tinha encontrado na estante. A luz suave do sol entrava pelas janelas, criando um ambiente tranquilo e acolhedor. Estava tão absorvida na leitura que, quando senti o celular vibrar no bolso, levei um susto. Olhei para a tela, onde o nome do meu pai brilhava em letras firmes, acompanhando o ícone da chamada de vídeo. O coração deu um salto, e uma onda de ansiedade misturada com saudade invadiu-me. Respirei fundo, tentando acalmar os nervos, em seguida, deslizei o dedo pela tela com um sorriso que esperava parecer natural.
― Olá, pai — cumprimentei, a voz ligeiramente trémula.
A sua imagem apareceu na tela, o rosto sério como sempre, contudo com um brilho nos olhos que só notava quando estava genuinamente feliz por me ver. Estava sentado no seu gabinete, a estante repleta de livros religiosos ao fundo, como uma lembrança constante do mundo que deixara para trás.
― Olá, Maya. Como estás, filha? — perguntou ele, a voz carregada de uma mistura de preocupação e afeto.
― Estou bem, pai. E como estão as coisas por aí? — questionei, tentando manter o tom leve, mas sentindo o peso da distância entre nós.
― Está tudo bem, graças a Deus. Só queria saber como estás a adaptar-te. A família que te acolheu é simpática? Estás a gostar da Austrália? — A forma como ele disse "família" carregava um peso subentendido, como se quisesse se certificar de que eram pessoas "corretas".
― São ótimos. Amanda e Paul são muito gentis. Eles são bem ocupados, mas sempre fazem questão de conversar comigo. Amanda é historiadora, então sempre tem histórias interessantes para contar, o Paul trabalha com engenharia, é bem prático.
— Engenharia? — Ele ergueu as sobrancelhas com aprovação. — Finalmente, alguém com um trabalho sólido.
Fiz um esforço para não revirar os olhos. Esse era o meu pai, sempre valorizando aquilo que julgava “real” e “seguro”.
— E a filha deles? Piper, não é? — A forma como ele perguntou fez com que o meu corpo enrijecesse levemente.
Hesitei por um segundo.
O que eu poderia dizer sobre Piper?
Que era uma das pessoas mais intrigantes que já conheci? Que o seu jeito rebelde e despretensioso contrastava completamente com tudo o que fui ensinada a ser? Ou que, por algum motivo, estar perto dela fazia-me sentir algo que eu não sabia nomear, uma mistura de curiosidade e desconforto, como se ela vivesse com uma liberdade que eu nunca ousei permitir a mim mesma?
Mas essa não era uma resposta que eu poderia dar.
Engoli a verdade e optei pela resposta segura.
— Sim, Piper. Ela mostrou-me a cidade. Tudo aqui é lindo, pai, e as praias são incríveis.
Do outro lado da linha, houve um breve silêncio. Quase pude imaginar o meu pai refletindo sobre as minhas palavras, avaliando-as como se procurasse algo nas entrelinhas.
Então, num tom mais sério, perguntou:
— E quanto à igreja? Já procuraste uma congregação por aí?
O nó no meu estômago apertou.
Era inevitável.
— Ainda não tive tempo… — murmurei, desviando o olhar, como se ele pudesse ver a hesitação no meu rosto mesmo à distância.
Seu silêncio fez com que voltasse os olhos para a tela. Este me encarava com aquela expressão carregada de julgamento silencioso, algo que eu conhecia bem.
— Maya, sabes o quanto a tua fé é importante. Não quero que te esqueças disso só porque estás longe de casa.
— Eu não esqueci, pai — menti.
Ele suspirou, e por um momento, sua expressão pareceu suavizar.
— Eu confio em ti, filha. Só não quero que te desvies do caminho certo.
Uma onda de culpa percorreu-me, prendendo-se ao peito como um nó difícil de desatar.
— Eu sei… — respirei fundo, sentindo o peso daquela conversa a sufocar-me. — Olha, pai, tenho de ir, estou a ficar sem carga. — Outra mentira.
Apertei o celular com força na mão, como se o gesto pudesse amenizar a culpa que já começava a se formar.
Ele hesitou por um momento, e por um instante temi que insistisse, que percebesse a mentira na minha voz. Mas, por fim, suspirou.
— Está bem. Deus te abençoe, Maya.
— Amém, pai — murmurei, desligando antes que este pudesse dizer mais alguma coisa.
Soltei um longo suspiro, deixando o dispositivo cair sobre o sofá ao meu lado. Passei as mãos pelo rosto, como se pudesse apagar o desconforto que se agarrava à minha pele. Cada chamada era um lembrete constante da linha tênue em que eu caminhava, do equilíbrio frágil entre quem eu era e quem eu devia ser. Mas o pior era que, mesmo depois de desligar, a voz dele continuava a ecoar na minha cabeça. E, de alguma forma, a voz dele parecia ecoar dentro da minha cabeça, mesmo depois da linha estar desligada.
Fim do capítulo
Há momentos em que as perguntas silenciosas pesam mais do que as respostas que julgamos conhecer.
Maya tenta encontrar o equilíbrio entre aquilo em que sempre acreditou e as novas descobertas que desafiam a sua visão do mundo.
Mas até quando se pode caminhar entre dois mundos sem o risco de se perder em ambos?
Espero que estejam a gostar.
Vemo-nos no próximo capítulo!
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asuna Em: 14/03/2025 Autora da história
Quanto a ela ir atrás de outra igreja, bem, digamos que a jornada dela está só a começar, e algumas certezas podem não ser tão inabaláveis quanto parecem...
E a conversa no café com a Chloe… Ah essa foi intensa, não foi? Acho que é uma das minhas favoritas!