O Peso do Azul por asuna
Capítulo 2
A noite estava silenciosa, mas o meu coração não. Sentada na cama, envolta das cobertas que Amanda tão cuidadosamente preparara, segurava a Bíblia no colo como se fosse um talismã, ou talvez um fardo. Os dedos tremiam ligeiramente ao passar pelas páginas gastas, tão familiares e, ao mesmo tempo, tão distantes. Quantas vezes tinha aberto este livro em busca de respostas? Quantas vezes tinha encontrado apenas mais perguntas?
O suor começou a umedecer minhas mãos, tornando o toque no papel desconfortável. Fechei o livro abruptamente, apertando a capa entre os dedos, como se, pela força, pudesse extrair dela algo que não estava ali.
Respirei fundo e fechei os olhos, tentando rezar.
Nada.
Apenas o vazio.
Minhas mãos fecharam-se sobre o tecido da colcha, como se precisassem de algo para ancorar à realidade. As palavras que antes fluíam naturalmente agora estavam ausentes da minha mente, como se houvesse um muro invisível entre mim e Deus.
Por que não consigo?
Suspirei, fechando os olhos por um instante. O sono teimava em não chegar, como se a minha mente recusasse conceder-me um momento de trégua. As perguntas rodopiavam na minha cabeça, insistentes, sufocantes.
O que estou a fazer aqui? Para onde estou a ir realmente?
A luz suave do candeeiro de mesa projetava sombras nas paredes, formando silhuetas distorcidas, fragmentadas, como os pensamentos que se acumulavam na minha mente. O quarto deveria ser um refúgio, mas tudo nele parecia estrangeiro. Talvez porque, pela primeira vez, eu estivesse longe o suficiente para me ouvir de verdade. O silêncio da casa era quase opressivo, contrastando com o turbilhão de pensamentos que se agitavam na minha mente. Piper. Os Walsh. A Austrália. Chloe. Tudo era tão novo, tão diferente, fazendo-me sentir como uma estranha no meu próprio corpo.
Abrir a Bíblia ao acaso, como Chloe sugerira, parecia uma ideia tão simples, porém agora, sozinha no quarto, sentia-me incapaz de o fazer. E se as palavras que encontrasse fossem um aviso? E se fossem um conforto? Ou pior, e se não significassem nada? A fé que sempre me guiara agora parecia uma corda bamba, e eu estava prestes a cair.
― Senhor, o que estou a fazer aqui? — sussurrei, fechando os olhos e deixando a cabeça pousar contra a cabeceira da cama.
Olhos azuis intensos e insondáveis como o oceano invadiram a minha mente, trazendo consigo a memória do toque fugaz, do roçar de dedos que, mesmo quase impercetível, o contato fez algo dentro de mim despertar, leve, contudo impossível de ignorar. Passei as mãos pelo rosto, tentando afastar aquele pensamento, aquela sensação indefinida que parecia ecoar sob a minha pele, deixando um vestígio silencioso. A Bíblia continuava ali, imóvel, esperando que eu procurasse nela as respostas que outrora pareciam tão certas. Com um suspiro trémulo, abri-a ao acaso, tentando focar-me nas palavras diante de mim. Contudo a minha mente ainda estava presa em outro lugar.
E se eu estiver presa entre tempos que nunca foram feitos para mim?
As páginas se abriram, e os meus olhos fixaram-se numa passagem familiar.
"Não vos conformeis com este mundo."
A voz do meu pai ecoou na minha memória como um trovão distante, carregado de convicção inabalável. Ele repetia essa frase sempre que sentia que eu poderia desviar-me do que ele considerava certo. Dizia-a com fervor, com a certeza de quem acredita que a verdade está escrita em pedra, que o amor de Deus está reservado apenas para aqueles que seguem as Suas escrituras sem hesitação.
Mas e eu?
Fui criada para acreditar em certezas, em regras bem definidas, num caminho sem desvios. Não havia espaço para dúvidas, para desvios ou hesitações. Mas, mesmo quando ainda era pequena, essas certezas nunca foram tão sólidas dentro de mim como eram para ele.
Recordei da primeira vez que tive coragem de questionar. Eu tinha treze anos, a igreja estava em silêncio depois do culto, os bancos vazios, o cheiro do incenso ainda pairava no ar. Ele, o meu pai estava sentado no altar, folheando distraidamente a sua Bíblia, sereno, como se o mundo inteiro estivesse em ordem. Foi nesse momento que reuni toda a coragem que tinha e perguntei:
— Pai, Deus ama toda a gente, não é? Mesmo aqueles que sentem coisas... diferentes?
O barulho das páginas cessou. A respiração ficou presa na minha garganta quando este ergueu o seu olhar na minha direção. Havia um peso naquele silêncio, um intervalo de segundos que pareceu durar uma eternidade. Os seus olhos verdes, que tantas vezes me transmitiram conforto, endureceram. Ele não franziu o sobrolho, não alterou o tom de voz. Mas a mudança estava lá.
— O amor de Deus é para aqueles que seguem os Seus caminhos — Afirmou, com uma calma cortante. — A carne é fraca, Maya. E são nesses desejos que o diabo se esconde. Só aqueles que resistem são verdadeiramente fortes.
A minha pele arrepiou-se, não pelo frio, mas pelo peso das palavras. O estômago revirou-se numa angústia muda, e as minhas mãos apertaram-se contra a saia do vestido, como se pudesse encontrar alguma estabilidade ali.
Eu queria perguntar-lhe: E se eu não resistir?
Eu queria dizer-lhe que, por vezes, sentia algo dentro de mim que não entendia, um desvio do que ele chamava de "caminho certo". Queria perguntar-lhe se Deus ainda me amaria se um dia descobrisse que eu era diferente. Mas as palavras morreram na minha garganta, esmagadas pelo medo.
O medo da decepção no seu rosto.
O medo de perder o seu amor.
O medo de ser, aos seus olhos, algo errado.
A minha respiração ficou superficial, o peito subindo e descendo em pequenos soluços que engoli antes que se tornassem audíveis. Eu queria fugir, mas as minhas pernas pareciam presas ao chão. A única coisa que consegui fazer foi acenar com a cabeça, fingindo que tinha compreendido, fingindo que as palavras dele não tinham aberto uma fenda dentro de mim.
Ele sorriu, satisfeito com o meu silêncio, voltando a sua atenção novamente para a Bíblia. No entanto eu sabia, naquele momento, que algo dentro de mim tinha mudado para sempre.
Alguns anos passaram, mas essa frase nunca me abandonou.
Cresci carregando uma culpa silenciosa, um medo constante de que havia algo de errado dentro de mim. Que, por mais que tentasse, nunca seria suficiente. Nunca seria o tipo de filha que ele queria que eu fosse.
E agora, sentada aqui, num quarto distante de tudo o que conheço, fechei o livro devagar, apertando-o contra o peito, como se o simples contato pudesse trazer-me a clareza que tanto ansiava. Mas a verdade era que, pela primeira vez, eu não sabia se queria respostas.
Talvez, só desta vez, eu precisasse apenas de sentir.
Deixei-me cair contra as almofadas, exausta, e fixei o teto, tentando encontrar nas sombras algum vestígio de certeza.
O silêncio do corredor foi interrompido por um murmúrio abafado, seguido pelo som de corpos se chocando levemente contra a parede. A curiosidade cresceu, junto com uma estranha sensação de expectativa. Levantei-me devagar da cama, caminhando em silêncio até a porta. Com um movimento cauteloso, girei a maçaneta e a abri apenas o suficiente para espiar pelo vão.
Os meus olhos arregalaram-se com a cena diante de mim.
Piper estava encostada contra a parede, os dedos enredados nos cabelos de uma garota que eu nunca tinha visto antes. A desconhecida segurava a sua cintura com firmeza, os corpos colados, os lábios encontrando-se num beijo intenso, carregado de urgência e familiaridade. O ar ao redor delas parecia vibrar com algo inegável, uma conexão crua e desinibida, algo que me fez prender a respiração sem perceber. Por um instante, quis desviar o olhar. Fechar a porta e fingir que nunca vira nada. Mas não consegui. Os meus olhos permaneceram fixos na forma como Piper segurava o rosto da garota, como os seus dedos deslizavam suavemente pela pele dela, como se aquele toque fosse tão natural quanto respirar.
— Vamos rápido para o quarto, antes que acordemos alguém nesta casa — sussurrou, com um meio sorriso travesso, puxando a garota pela mão.
A jovem hesitou por um momento, os seus olhos escuros pareciam brilhar com algo entre a diversão e a incerteza. Ela segurou o pulso de Piper, mantendo-a no lugar.
— Tens a certeza de que ninguém nos vai ouvir? — sua voz era suave, porém carregada de provocação.
Piper soltou um riso baixo, deslizando as mãos pelos braços desta até sua cintura.
— E se ouvirem? — murmurou, inclinando-se até os seus lábios roçarem de leve o canto da boca da desconhecida. — Alguma vez isso nos impediu?
A garota riu baixinho, mordendo o lábio inferior, claramente lutando contra a tentação.
— Tu és problema, sabias? — disse, empurrando de leve o ombro de Piper, sem, no entanto, a afastar completamente.
Piper ergueu uma sobrancelha, alargando o seu sorriso.
— Um problema irresistível — sussurrou contra a sua pele.
A tensão entre as duas era palpável, carregada de eletricidade. O ar ao redor parecia vibrar, e por mais que eu tentasse desviar o olhar, não conseguia. O modo como Piper se movia com confiança, a forma como os seus dedos traçavam lentamente a pele da desconhecida, como se memorizasse cada detalhe, tudo aquilo era tão diferente de tudo o que eu conhecia.
A garota soltou um suspiro resignado, claramente cedendo.
— Certo, mas se alguém nos pegar...
A ruiva riu novamente, entrelaçando os seus dedos nos da jovem.
— Então teremos que ser silenciosas... — murmurou Piper, lançando um sorriso carregado de desafio antes de puxar a garota pela mão, conduzindo-a pelo corredor sem hesitação.
Porém, por um instante, a jovem hesitou, como se um sexto sentido a alertasse de que estavam sendo observadas. Seus olhos escuros varreram o ambiente até se fixarem em mim, imóvel na penumbra do quarto. O meu coração disparou no peito, automaticamente prendi a respiração. Não era apenas surpresa no rosto dela, era curiosidade. Antes que eu pudesse reagir, Piper também notou minha presença. Seus olhos se estreitaram levemente ao cruzarem os meus, uma centelha de diversão maliciosa brilhou nas suas íris escuras. Em vez de desviar o olhar ou demonstrar desconforto, ela apenas inclinou levemente a cabeça, como se estivesse saboreando aquele momento silencioso entre nós. Então, num gesto calculado, esta ergueu a mão e deslizou o dedo lentamente até seus próprios lábios, fazendo um sinal claro para que eu ficasse calada.
Meu coração martelou contra o peito. A provocação silenciosa, o sorriso perverso e a forma como esta seguiu adiante como se nada tivesse acontecido deixaram-me paralisada no lugar. Eu deveria sentir vergonha por ter sido pega espiando. Eu deveria sentir qualquer coisa além dessa estranha inquietação que agora pulsava dentro de mim. Encostei-me contra a porta, tentando acalmar a minha respiração. No entanto a sensação já tinha se instalado.
O nó na minha garganta apertou, minha mente girava mais uma vez com perguntas para as quais não sabia como responder. Jamais, em toda a minha vida, eu havia presenciado algo tão próximo e palpável. Algo autêntico. Verdadeiro. Distante de tudo o que sempre me foi ensinado. Ao mesmo tempo, uma lembrança distante atravessou a minha mente, um deslizar de pele, um gesto que me fez questionar o que realmente sabia sobre os limites do desejo. Um calor subiu ao meu rosto, mas antes que eu pudesse processar, a realidade ao meu redor se impôs novamente, deixando-me mais dividida do que nunca.
E, em vez de choque ou repulsa, apenas senti algo novo, um calor difuso, inesperado. Um desejo silencioso de entender. Talvez, pela primeira vez, eu não estivesse buscando respostas. Talvez eu apenas quisesse sentir.
Mas, enquanto essa sensação nova e inquietante me envolvia, outro pensamento irrompeu como uma corrente fria: e se o meu pai soubesse? O que ele diria se descobrisse que estou numa casa onde a filha dos meus anfitriões é… assim?
Convencê-lo a deixar-me fazer este intercâmbio já tinha sido uma batalha difícil. Foram meses de discussões, de olhares desconfiados, de sermões implícitos sobre o perigo de me afastar dos ensinamentos da igreja. Ele insistia que o mundo lá fora era traiçoeiro, que longe da família e da congregação, eu poderia me perder. Foi só depois de inúmeras discussões e da intervenção do Pastor Moraes que ele finalmente cedeu, porém não sem ressalvas. O Pastor Moraes era um homem de voz serena, respeitado dentro da igreja, mas com uma visão mais progressista do que meu pai gostaria de admitir. Eu sabia que, se alguém poderia convencê-lo, era ele. Lembro-me da noite em que o procurei, com o coração acelerado e a esperança como um fio frágil em minhas mãos. Expliquei tudo, os meus planos, meus sonhos, o quanto esse intercâmbio significava para mim. Ele ouviu em silêncio, com aquele olhar compassivo que sempre carregava, e depois assentiu.
— Eu conversarei com o Davi, Maya. Às vezes, aqueles que mais amam têm medo de soltar as mãos de quem criaram. Mas o amor verdadeiro não deve ser uma prisão.
Eu quase chorei de alívio. E, de fato, a conversa entre eles aconteceu. Por dias, o meu pai evitou o assunto, visivelmente desconfortável. No entanto, aos poucos, a sua resistência começou a ceder. Ainda relutante, ainda cheio de condições, porém, no fim, ele permitiu que eu viesse.
Agora, eu me pergunto: teria sido um erro?
O olhar severo do meu pai surgiu na minha mente, acompanhado pela lembrança das suas palavras cortantes sobre os caminhos que desviam da vontade de Deus. Articulando com uma convicção inabalável, como se não houvesse espaço para dúvidas, como se a verdade fosse uma linha reta, e qualquer desvio fosse uma sentença. Se soubesse que estou aqui, sob este teto, testemunhando algo que ele condenaria sem hesitação, será que ainda acreditaria que sou a mesma filha que ele criou? Ou será que veria isso como um teste do qual eu já começo a fracassar?
As minhas mãos tremeram levemente ao apertar o tecido da t-shirt oversize contra os meus joelhos, uma reação já familiar do meu corpo. Por toda a minha vida, tentei seguir o caminho que ele traçou para mim. Sempre me esforcei para ser a filha que ele queria, para não o decepcionar. Mas agora… agora havia algo diferente crescendo dentro de mim. E, pela primeira vez, eu não sabia se tinha forças para sufocar isso. Fechei os olhos e encostei a cabeça contra a madeira fria da porta, tentando controlar a tempestade que ameaçava se formar dentro de mim.
Se o meu pai soubesse…
Será que ele ainda me reconheceria?
Ou viraria as costas?
E com estas perguntas sem respostas o silêncio do quarto tornou-se ainda mais opressor.
***
O som das ondas quebrando na praia preencheu o silêncio do amanhecer, misturando-se ao canto distante das gaivotas. O vento salgado tocava minha pele, mas, apesar do cenário paradisíaco, o meu peito continuava pesado.
Não dormi. Passei a noite revirando na cama, incapaz de afastar os pensamentos que me atormentavam. A imagem de Piper com aquela garota no corredor ainda estava fresca na minha mente, como uma fotografia que não conseguia apagar. O que é que eu tinha visto, afinal? E por que razão aquela cena me deixara tão... perturbada? Não era apenas a surpresa, nem o embaraço de ter sido apanhada a espreitar. Havia algo mais, algo que me fazia sentir como se tivesse sido confrontada com uma parte de mim mesma que ainda não estava pronta para enfrentar. Piper não parecera zangada, apenas divertida, como se a minha reação fosse a coisa mais engraçada do mundo. Todavia, para mim, aquilo não era engraçado. Era confuso. Era assustador. O peso da possibilidade de que meu pai jamais compreenderia, ou pior, jamais me perdoaria.
Virei para o lado, depois para o outro, puxei a coberta, depois a empurrei para longe. Foi então que, em meio ao torpor da insônia, lembrei-me do que Paul havia dito no carro: “Nossa casa fica a poucos minutos da praia.”
Sem realmente pensar nas consequências, levantei-me num impulso, e saí, guiada pelo som das ondas. O ar fresco da madrugada preencheu os meus pulmões. Caminhei sem rumo exato, apenas seguindo o cheiro do sal e o ecoar do mar ao longe, como se a imensidão do oceano pudesse acalmar a tempestade dentro de mim.
Agora, sentada na areia fria, observando o horizonte tingido por tons de laranja e dourado, percebi um detalhe óbvio que minha pressa não me permitiu considerar antes: eu não tinha certeza de como voltar. A minha atenção sempre esteve voltada para tudo o que sentia, para tudo que tentava compreender dentro de mim, e não para o caminho que tomava. Será que eu conseguiria reconhecer a casa dos Walsh no retorno? Suspirei profundamente, abraçando os joelhos, tentando ignorar o medo de estar perdida numa cidade que ainda não conhecia.
Não sei exatamente quanto tempo passou. O murmúrio das ondas, o frescor da brisa salgada e a quietude do amanhecer pareciam embalar-me num transe. Minha cabeça permaneceu baixa entre os joelhos, como se, ao me encolher, eu pudesse tornar os pensamentos menos avassaladores.
Foi então que ouvi o meu nome ser chamado.
Uma voz familiar, firme, porém carregada de preocupação, atravessou a névoa dos meus devaneios. Ergui a cabeça de imediato, piscando algumas vezes para ajustar a minha visão ao sol nascente. E então, dei de cara com Paul. O seu cenho estava franzido, a postura rígida, provavelmente resultado de uma mistura de preocupação e alívio ao me encontrar ali, sentada na areia como se fosse a coisa mais natural do mundo sair de casa sem avisar no meio da madrugada.
— Maya? — Aproximou-se, as mãos apoiadas nos quadris. — Tens ideia do quanto a Amanda ficou preocupada quando percebeu que não estavas em casa?
A culpa bateu instantaneamente no meu peito. Não pensei na Amanda, não pensei que alguém pudesse acordar e notar a minha ausência.
— Desculpe…. Sinto muito. — Murmurei, sentindo o rosto esquentar. — Eu só… não consegui dormir.
Paul suspirou, esfregando a nuca antes de se sentar do meu lado na areia.
— Imagino que seja difícil para ti, principalmente por causa do Jet Lag, não é?
Engoli em seco e assenti lentamente.
— É… muita coisa.
Este ficou em silêncio por um instante, olhando o horizonte, como se soubesse que não precisava pressionar. Apenas estar ali, apenas oferecer um espaço seguro, parecia ser o suficiente. Aos poucos, senti o meu coração desacelerar. Contudo a pergunta ainda pulsava dentro de mim. Se meu pai soubesse que eu estava aqui, sentada do lado de um homem que ele mal conhecia, em uma cidade onde tudo era novo e desconhecido, será que ele teria me deixado vir? Ou teria lutado ainda mais para me manter dentro dos muros que ele acreditava serem seguros?
Paul, como se adivinhasse no que eu pensara, sorriu de canto antes de prosseguir:
— Vamos voltar para casa? Antes que a Amanda chame a polícia?
Soltei um riso fraco, balançando a cabeça.
— Sim… acho que é melhor.
Este assentiu, aliviado, levantando-se primeiro, estendendo a mão de seguida para me ajudar. Hesitei por um segundo antes de aceitá-la, sentindo o calor reconfortante de seu aperto firme. Enquanto caminhávamos de volta, ele manteve um silêncio respeitoso. A cidade começava a despertar ao nosso redor. Algumas pessoas faziam corridas matinais à beira-mar, outras passeavam com seus cães, e o som distante do motor dos carros anunciava que o dia estava realmente começando. Quando nos aproximámos da casa dos Walsh, um alívio silencioso preencheu-me. No entanto, como se fosse uma sombra, uma pontada de ansiedade acompanhou-o. Paul abriu a porta da entrada para mim, fazendo um gesto gentil para que eu entrasse. Assim que atravessei a soleira, uma discussão ecoou pelo corredor.
― Eu não entendo qual é o problema… — a voz de Piper soava impaciente, carregada de frustração.
― Quantas vezes já tivemos esta discussão? — A voz que se seguiu era firme, no entanto carregada de exasperação. — Dissemos, nada de trazer jovens para dentro de casa sem a nossa permissão, ainda mais durante a madrugada! O que a Maya vai pensar? Ou melhor, o que a agência de intercâmbio vai pensar de mim e do teu pai se nem a nossa própria filha conseguimos controlar?
Piper soltou um riso curto, quase sarcástico.
— Ah, então agora vocês preocupam-se com o que os outros pensam? — rebateu, cruzando os braços. ― Mais uma coisa que eu não entendo: porque é que vocês decidiram entrar nesse programa de intercâmbio e trazer uma desconhecida para dentro de casa.
O silêncio pesado que se seguiu fez o meu estômago se revirar.
― A Maya é uma garota encantadora — respondeu Amanda, tentando manter a calma. — Nós achámos que ela seria uma boa influência para ti.
Piper soltou uma gargalhada incrédula.
— Boa influência? Para mim? — repetiu, com uma ironia cortante. — Dizes isso como se eu fosse algum tipo de caso perdido!
— Não foi isso que eu quis dizer… — Amanda tentou intervir, mas logo foi interrompida por Piper que imediatamente continuou.
— Uma garota que, logo na primeira noite, sai de casa de madrugada sem dizer nada a ninguém, deixando todo mundo preocupado? — Senti o rubor subir-me às faces, como se as palavras de Piper tivessem me atingindo como uma bofetada. — Pelo menos eu não passo a noite em qualquer espelunca! — Disparou, a acusação escorrendo de seus lábios como veneno.
O silêncio que se seguiu foi avassalador.
Amanda arfou em choque, e Paul, que fechava a porta atrás de mim, paralisou no lugar. O som seco da madeira se encaixando no batente ecoou pela sala, e, com ele, a revelação da minha presença. Olhos castanhos encontraram-me, carregados de desafio e algo mais, uma mistura de desdém e surpresa. O meu coração martelava contra as costelas, e naquele momento, eu desejei desesperadamente ser invisível. Piper ficou parada, os braços ainda cruzados, enquanto Amanda olhava na minha direção com uma mistura de preocupação e constrangimento.
― Maya… — começou Amanda, no entanto as palavras pareceram falhar-lhe.
O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de tensão. Senti-me como se estivesse no centro de uma tempestade, sem saber para onde olhar ou o que dizer. Piper, no entanto, não parecia incomodada. Pelo contrário, os seus lábios curvaram-se num meio sorriso, como se estivesse a divertir-se com a situação.
― Bem, parece que temos uma plateia — disse a ruiva, a voz carregada de ironia.
A tensão na sala persistia palpável, carregada de um peso sufocante que pressionava o meu peito como se o ar estivesse sendo drenado do ambiente. O olhar de Amanda permanecia sobre mim, cheio de preocupação, mas também, algo mais, talvez arrependimento? Paul manteve-se do meu lado, sem dizer nada, apenas observando a cena com um cansaço visível no olhar. Piper, por outro lado, parecia se deleitar com a tensão. O seu meio sorriso manteve-se intacto, os olhos castanhos faiscando com uma provocação silenciosa, como se estivesse esperando para ver como eu reagiria. Engoli em seco, sentindo a minha garganta apertar. Eu não era alguém que gostava de estar no centro das atenções, muito menos no meio de uma discussão que claramente não era sobre mim, mas, ao mesmo tempo, era. Eu era o motivo do desentendimento. Eu era a peça fora do lugar naquela casa.
Respirei fundo, reunindo a pouca coragem que me restava.
— Eu… eu só queria dizer que… eu entenderia se vocês quisessem me mandar de volta para casa. — Minha voz saiu vacilante, porém firme o suficiente para ser ouvida. Olhei diretamente para Amanda e Paul, ignorando o olhar satisfeito de Piper. — Depois do que fiz hoje, sair sem avisar, deixar vocês preocupados… eu sei que isso foi irresponsável e que pode ter causado problemas com a agência.
Amanda franziu o cenho, abrindo a boca para dizer algo, porém eu continuei antes que esta pudesse interromper-me.
— E para ser sincera, acho que seria exatamente o que o meu pai faria se soubesse. Ele nem teria hesitado em me colocar no primeiro avião de volta.
As palavras saíram com um gosto amargo, como se dizê-las em voz alta as tornasse ainda mais reais. Uma pontada de dor atravessou o meu peito ao imaginar a expressão desapontada do meu pai, o olhar duro que ele me lançaria antes de me virar as costas.
Piper descruzou os braços, inclinando levemente a cabeça para o lado, como se estivesse avaliando-me de uma nova perspetiva. O sorriso brincalhão desapareceu por um breve instante, substituído por algo que eu não consegui decifrar. Amanda, por sua vez, arregalou os olhos, o choque era evidente no seu rosto.
— Maya, querida… — sua voz agora cheia de gentileza, diferente do tom rígido que havia usado com a filha. Esta deu um passo em frente, como se quisesse se aproximar de mim, mas hesitou. — Eu jamais faria isso, Maya. Cometer um erro não significa que precises de ser punida dessa forma.
Paul assentiu do seu lado, cruzando os braços.
— Exatamente. Sei que foi uma situação complicada, e Amanda ficou assustada ao perceber que não estavas em casa, mas nós não vamos te mandar embora por isso. — Ele fez uma pausa, lançando-me um olhar firme, porém compreensivo. — Já conversamos sobre isso e definimos algumas regras, só ainda não tivemos a oportunidade de nos sentar os três. Queremos que te sintas à vontade aqui, mas também precisamos garantir que todos saibam o que esperar.
A minha garganta apertou, e tive que desviar o olhar. Parte de mim queria acreditar neles, queria aceitar aquela sensação de acolhimento, no entanto outra parte, a parte moldada por anos de regras inquebráveis e expectativas rígidas dizia que as coisas não eram assim tão simples.
— Não estas na casa errada, Maya — Amanda acrescentou suavemente, com um sorriso reconfortante.
O silêncio voltou a preencher o espaço, mas dessa vez parecia diferente. Menos opressor, Piper soltou um suspiro dramático, quebrando a tensão.
— Bom, pelo menos agora sabemos que a "boa influência" também pode quebrar as regras — disse, arqueando uma sobrancelha.
Lancei-lhe um olhar hesitante, tentando decifrar se aquilo era um insulto ou uma provocação amigável. Esta apenas deu de ombros, sorrindo, contudo menos carregado de ironia. Amanda suspirou, passando a mão pelos cabelos, visivelmente exausta.
— Vamos deixar essa discussão para outra hora. Maya, querida, vai descansar um pouco. Eu faço um chá de camomila se quiseres.
Assenti lentamente, ainda processando tudo. Eu esperava julgamento. Esperava que me dissessem que eu não pertencia ali. Todavia, em vez disso, fui recebida com compreensão. Talvez, só talvez, eu não estivesse tão sozinha quanto pensava.
Fim do capítulo
Maya está a descobrir que, por mais que tente se agarrar ao que conhece, o desconhecido tem uma forma curiosa de se infiltrar nos espaços vazios.
Spoiler: e quem disse que se perder um pouco não pode ser o primeiro passo para realmente se encontrar?
Vemo-nos no próximo capítulo! ?
Comentar este capítulo:
thays_
Em: 06/03/2025
Me identifico demais com a Maya, embora eu não tenha tido uma criação religiosa tão rígida, carreguei durante anos uma culpa como se realmente tivesse algo de errado comigo, que eu nunca seria o suficiente, que nunca seria o tipo de filha que minha família queria que eu fosse e principalmente que Deus me odiava. De forma geral a criação cristã/evangélica é muito tóxica e nociva para pessoas LGBTQIA+. Precisei de muitos anos pra conseguir melhorar/curar minha relação com a espiritualidade, mas hoje é o pilar mais forte que sustenta minha vida.
Eu gostei MUITO da parte em que ela vê a Piper beijando outra garota, muito boa a cena!! Já quero ler o próximo!
Parabéns, autora!
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asuna Em: 06/03/2025 Autora da história
Fico imensamente grata por partilhares isso!!
Sei como pode ser difícil carregar essa culpa. Por mais que às vezes pareça o contrário, não há nada de errado em sermos quem somos e, ao mesmo tempo, mantermos uma relação com a espiritualidade. O amor e a fé não deveriam ser caminhos de condenação, mas sim de acolhimento.
E que bom que gostaste da cena da Piper! Ela tem o dom de tornar a situação... interessante!
O próximo capítulo já vem aí, e mal posso esperar para saber o que vais achar! Obrigada pelo carinho :)