Capitulo 28
CAPÍTULO VINTE E OITO
Marcela chegou à casa de Agata com os nervos à flor da pele. A italiana já estava com a mochila pronta para sair, mas ao ver o estado de Marcela, pegou-a pela mão e a puxou para dentro.
—Sente aí, vou pegar algo para você beber. — não conseguiu sair do local, foi surpreendida com uma mão forte segurando seu pulso firmemente.
—Não vai ser preciso. Eu estou dirigindo, não posso passar por blitz tendo consumido álcool.— Marcela se arrepiou só de pensar. Se respondesse a um processo administrativo, correria o grave risco de perder sua habilitação.
—Se você confiar, eu piloto a sua moto, sou habilitada e costumo fazer as entregas quando a demanda a grande e os motoqueiros não dão conta dos pedidos.— A voz calma e confiante da italiana a tranquilizou um pouco.
Agata desapareceu na porta que levava para o andar d baixo que ia para o restaurante, deixando Marcela pensando no que havia acontecido em sua casa.
Havia sido muito irresponsável ao dizer a verdade daquela forma; no final, os dois culpariam a mãe, pelo que aconteceu.
—Tome este vinho, vai te fazer bem. — Assustou com a voz da italiana, que falava algo, prestou mais atenção e viu que ela trouxe uma garrafa em um balde cheio de gelo, assim como uma taça já na metade e outra vazia. Marcela bebeu todo o conteúdo de um só gole, a garganta queimando.
—Pedi na cozinha do restaurante que preparassem um prato rápido de macarrão, já devem estar trazendo.—Marcela nem havia percebido que estava com fome. Agata parecia ter o dom de ler seus pensamentos.
Sentou-se no tapete do chão e chamou Chiara para sentar entre suas pernas.
—Sente aqui, assim ficamos perto do vinho. Estou com os nervos em frangalhos.— A garota sentou-se de frente para ela, o olhar preocupado.
—O que te deixou nesse estado? Quando conversamos mais cedo, você parecia tão alegre.
O olhar cheio de ternura de Agata a comoveu. Marcela nunca tinha visto uma preocupação tão sincera nas outras mulheres com quem estivera. Era uma sensação única e diferente. Não sabia explicar o que sentia vindo dela, mas era muito gostoso. Encheu sua taça novamente; tomou um longo gole da bebida doce. O sabor era amadeirado, misturado a especiarias, mocha e aneto. Saboreou na ponta da língua sentindo a sinfonia sutil de cada tempero.
—Excelente vinho, só bebi um assim quando passei férias na Sicília. — Chiara sorriu timidamente e encheu a taça de Marcela mais uma vez. Ela sabia que Marcela estava com dificuldade de se abrir e lhe deu tempo para decidir, mudando completamente de assunto.
—Esse é um ‘Cerasuolo di Vittoria’ cultivado nas terras da minha família por parte de pai. É conservado em nossa adega, em uma caixa que meu pai guarda como se fosse ouro. Fiquei surpresa quando ele me ofereceu.
Marcela bebeu novamente. Chiara ajeitou-se em seu colo em silêncio, aguardando.
—Eu sou major da polícia.
Marcela parou para observar o rosto de Chiara. Ela sorriu como se um peso tivesse sido tirado dos ombros.
—Ainda bem, já não sabia o que pensar cada vez que sentia seu revólver, ora embaixo do braço, ora na parte de trás. Cada vez era um lugar diferente.
Marcela sorriu também, encantada pelo jeito que ela falava, com a testa franzida e revirando os olhos.
—Não confio em sair sem arma, tenho medo de emboscadas. No momento estou de licença.— Marcela continuou sem pressa. — Morava no Rio de Janeiro até bem pouco tempo. Uma noite, há sete anos, eu estava trabalhando na ronda da noite quando ouvimos um gemido. É muito comum ouvirmos gemidos em noites de frio intenso. Eu e o Jacinto éramos uma dupla. Fomos atrás do som, perto da lata do lixo, e encontramos Alex quase morrendo congelada.—Marcela parou, tomou um gole longo do vinho e respirou fundo. A lembrança de Alex e do desespero, sem saber o que fazer, era um pesadelo que a assombrava até hoje. —Alex é essa garotinha preta linda, mas sua pele, unhas e lábios estavam arroxeados quando a tiramos de cima do papelão úmido. Chamamos a ambulância, e quando os paramédicos chegaram, eles tiraram toda a sua roupinha molhada. Ela estava tão fria e seus batimentos cardíacos eram tão fraquinhos.
Marcela não continuou, o olhar desfocado. A mão de Chiara acariciou seu rosto. Quando olhou, ela parecia espantada e tinha os olhos marejados. Chiara encheu as duas taças, bebendo a sua em um só gole. Marcela acompanhou o gesto e continuou seu relato.
—O socorrista me aconselhou a passar para ela o calor do meu corpo. Eu estava uniformizada e, como sabe, as roupas da polícia têm tecido grosso e eu estava usando um colete à prova de balas. Mas ela estava morrendo, então tirei minha roupa na frente dos socorristas. Um deles me mandou deitar na maca, colocou Alex em cima do meu peito e nos cobriu. Primeiro com minhas roupas, depois com todo pedaço de pano disponível. Fui com ela para o hospital. Passei o resto da noite no hospital, Jacinto cobriu o turno por nós dois. Procuramos de todo jeito encontrar algum familiar da menina e nada. Como não tinha parentes, eu assumi a responsabilidade e paguei tudo. O hospital me deu um documento para entrar com o pedido da guarda provisória até encontrar os parentes e Alex passou a viver comigo. No quartel, todo mundo ajudava, doando roupas e brinquedos. Quando ela tinha quatro anos, a mãe biológica apareceu e o juiz mandou que eu a devolvesse. Foi muito doloroso para mim e para ela, que não reconhecia mais a mãe biológica. Um mês depois, eu fui promovida a major, não trabalhava mais em ronda nas ruas e passei a ser a instrutora das policiais novatas. Um dia, voltando para casa, encontrei Alex vendendo bombom no sinal. Ela estava tão suja e tão magra, com a roupa toda rasgadinha… Ela me reconheceu, seus olhinhos pretos encararam os meus, e ela perguntou ‘mamãe, por que a senhora me deu para aquela mulher?’. Aquilo me quebrou, eu não podia ser a mãe dela e tampouco tirá-la daquele sinal sem ser acusada de sequestro. Puxei o carro para o acostamento e desci. Liguei para Jacinto e pedi para procurar a juíza com quem eu vez ou outra trans*va.
Chiara se remexeu, tentando sair do colo da Morena. Marcela a apertou com mais força, impedindo que se levantasse. Ela sabia que Chiara estava agonizando, desconfortável com o fato de ouvir sobre seus antigos relacionamentos. Um arrepio de medo percorreu Marcela. Ela não podia estragar tudo logo no início. Sua falta de tato podia afastar Chiara para sempre. Apressou em dizer, a voz embargada pela urgência de ser honesta, mas sem ferir:
— Desculpa se eu disser algo que não te agrade, Chiara. Eu só... não quero mentir para você. A Valesca, essa minha amiga… nunca tivemos nada sério, nada além de sex* consensual. E tudo isso foi muito antes de te conhecer. Qualquer outra pessoa que passou pela minha vida, agora é sombra, um passado que não me define mais. Você é o meu tudo agora.
— Continue — foi tudo o que ela disse, impassível, mas Marcela sentiu a tensão em cada músculo do corpo de Chiara.
— A Valesca trabalhava com o pessoal da Infância e Juventude, e foi fácil descobrir que a Alex estava há quatro dias vagando pelos sinais da cidade, dormindo na rua. A menina mais velha do grupo, que cuidava das outras, não passava de dez anos.
Chiara estava visivelmente incomodada. Seus olhos brilhavam com lágrimas que ela tentava disfarçar, e Marcela continuou, mesmo sentindo o peso esmagador de reviver aquelas lembranças dolorosas, a garganta apertada pela emoção.
— Todas as crianças, com exceção da Alex, foram levadas para o juizado de menores. Eu entrei com o pedido de adoção. Levei Alex de volta para minha casa, com autorização da juíza. Parecia a coisa mais certa a fazer naquele inferno.
— Onde estava a mãe da Alex? — ela perguntou num sussurro, sem esconder mais as lágrimas que agora rolavam livremente. Sua voz era um fiapo, carregada de uma dor que Marcela sentiu como se fosse sua.
— Estava internada numa clínica de reabilitação. Tinha sido encontrada quase sem vida, drogada até a alma. E então veio a pandemia. Fiquei um ano confinada com Alex num apartamento, meu superior foi compreensivo e me deixou fazendo rondas nos bairros para evitar saques nas lojas ou supermercados, contratei uma enfermeira para cuidar da Alex quando eu saía para trabalhar. Eu morria de medo, Chiara. Medo de pegar o vírus e deixá-la sozinha no mundo, desamparada de novo. Aquela menina era tudo para mim.
— Foi terrível… — Chiara falou com um olhar distante, perdido nas próprias memórias sombrias. — Meu pai pegou e foi entubado. O Greg não podia vir em casa, fiquei sozinha, trancada. O restaurante fechou. Mercedes, minha mãe, estava no Rio e não podia vir devido às suas duas filhas, ainda pequenas… O que partia meu coração era ver nos noticiários tantas mortes e saber que o papai podia ser mais um. Era um tormento constante, Marcela. A incerteza me sufocava.
— Aquela foi uma época de terror para todo mundo. Perdi muitos amigos, mas meu maior medo era perder a Alex… e a Mom. Essas duas tiravam meu sono, me perseguiam em pesadelos.
— Eu tinha medo até da minha sombra. Olhava aqui para a praia e não via nada. Nem carro, nem gente. Amanhecia e anoitecia nessa solidão opressora… Deus nos livre de outra pandemia. — Fez o sinal da cruz, enxugou o rosto e sorriu, um sorriso forçado que não alcançava os olhos. — Desculpa, te interrompi. Continue.
Aquele sorriso, frágil e ao mesmo tempo poderoso, tinha o poder de exorcizar as lembranças mais dolorosas de Marcela, trazendo um raio de esperança para a escuridão que ela carregava.
— No fim da pandemia, Alex já tinha sete anos. Fui obrigada a devolvê-la até formalizar a adoção. Aluguei uma casa perto do barraco onde ela morava e fiquei por perto. Depois, ela, a mãe e os dois irmãos passaram a morar comigo. Ninguém sabia que eu era policial. Achavam que eu tinha um caso com a mãe deles. Morando na comunidade, descobri quem eram os mandachuvas, os apadrinhados por políticos... tudo fazia parte de uma investigação secreta. Quando concluí o trabalho, me mudei. Diziam que fui embora por causa do envolvimento da mãe com as drogas. Os vizinhos levavam Alex toda noite para minha casa. Eu me sentia dividida, Chiara. Fazendo o que era certo, mas com o coração sangrando por ter que me afastar da Alex de novo.
— Alguma coisa horrível deve ter acontecido com a Alex para deixá-la sem fala. O que sei é que os traficantes iam vendê-la para o tráfico humano. Eu e Jacinto invadimos o morro e tiramos Alex de lá. Foi um inferno, Chiara. Eu vi o horror de perto. Desde então venho fugindo. Não quero que descubram que sou a policial que entregou a quadrilha. Enquanto não prenderem o chefão, continuo com medo. Cada sombra, cada barulho me assusta. Alex sabe de algo que eles querem manter escondido, e por causa disso, ela está em perigo constante. Nós estamos.
— Um prato de macarrão no capricho! — A voz de seu Gregório as pegou de surpresa, fazendo o coração de Marcela disparar.
Marcela não fazia ideia de quanto ele tinha ouvido. Chiara saiu do colo dela num pulo, a expressão de pânico evidente. Em um segundo, já estava distante, deixando Marcela numa posição… desconfortável. Ela, de pernas abertas, de frente para o pai de Chiara, que as encarava como um espião da KGB, com um misto de desconfiança e curiosidade inescrutável.
— Já nos conhecemos — disse Marcela, ajeitando-se às pressas, o rosto quente de vergonha e a adrenalina correndo nas veias.
Nunca estivera em um relacionamento que envolvesse pai ou mãe. Sempre foi de passagem, de momentos efêmeros. Agora, ali, sentia-se em uma sinuca de bico: trinta e poucos anos e tremendo na base diante do pai da garota que amava. Era um medo novo, avassalador, que a pegava desprevenida.
— Papai, eu e a Marcela estamos namorando. Só não te contei antes porque ainda não era oficial — disse Chiara, sentando no chão e segurando a mão de Marcela, um gesto de carinho e apoio que acalmou um pouco o coração disparado de Marcela.
— Então era por isso que a senhora não saía daqui da porta. É mais audaciosa que seu irmão.
Chiara tentou defender Marcela, mas ela segurou a mão de Chiara, pedindo silêncio com o olhar. Marcela sabia que precisava ser honesta, mesmo que doesse.
— Não vou mentir. Desde o dia em que quase a atropelei aqui na frente, eu tentei encontrá-la — confessou Marcela, a voz firme apesar do tremor interno. Quase fez o homem passar mal. Ele levou a mão ao peito e enxugou o rosto com o avental, os olhos arregalados de surpresa e preocupação.
— Quando foi isso? — perguntou, olhando para a filha, a voz carregada de um tom de censura e susto.
— Modo de dizer, pai. Eu caí quando a Marcela passou muito perto de moto e me desequilibrei. Foi um acidente, pai, juro!
— Está bem, vou fingir que acredito. Mas por que não perguntou direto por ela, em vez de agir furtivamente? Não me parece a atitude de alguém com boas intenções.
— Papai, por favor! Isso é entre nós duas. Não se meta!
Ele mudou de assunto, aliviando a tensão que pairava no ar.
— Como foi lá na sua casa?
— Nada bem — respondeu Marcela, a voz carregada de desilusão. — Pai e filho moldados na mesma forja. Já esperava por isso. Eles não mudam. Nunca.
— Então coma. De barriga cheia, tudo fica melhor.
Gregório se afastou, mas parou nas escadas. Voltou e perguntou, o olhar sério, penetrante, que não deixava dúvidas:
— O quão perigoso tudo isso é para minha bambina? Eu ouvi tudo, Marcela. Cada palavra.
— Papai! Isso quem decide sou eu.
— Seu pai tem razão — Marcela falou, a voz pesada com a verdade incontornável. — Queria dizer que não há perigo, mas estaria mentindo. O mundo em que eu vivo é cruel, Chiara. E eu não posso te proteger de tudo.
Fim do capítulo
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