Dizem por aí
Não é como se já não tivessem percebido os olhares diferentes enquanto passavam a caminho entre a ida e volta do trabalho.
Quando Daniele parava em frente à casa de Helena para buscá-la e deixá-la, ou quando ia sem pretensão alguma além de passar tempo, a vizinha ao lado, com a desculpa de deixar o lixo, sempre esgueirava pela brecha do portão em como a despedida entre elas e o olhar de Helena ao encarar a amiga ir embora, com as mãos penduradas na grade, soava estranho. Suspeito a ponto de comentar com a colega do começo da rua quando foram fazer compras no final da tarde daquela quinta-feira.
“Não é como se fosse segredo para alguém que a filha da Sueli é sapatona”, comentou a colega enquanto analisava os repolhos de uma banca. “Sim, mas, a sobrinha da Fátima andando com ela? Além de surda, ainda gostar de mulher? Quanto castigo para uma pessoa só!” complementou a outra.
Mas, como de se esperar, não era apenas entre aquelas duas que soava tais comentários. Se seguissem para algumas quadras dali, na padaria ali próxima, se via Isidoro, de cara fechada como de habitual, passando por entre os demais, sem nunca cumprimentar ninguém, levando o pão que seria para seu lanche noturno e o café do dia posterior.
Assim que deu as costas, se voltaram a cochichar de como a mulher dele e sua filha ainda toleravam um homem tão grosseiro como aquele. O rapaz que limpava o balcão complementou dizendo que gostava das apresentações de sua filha e que achava que ela cantava muito bem. Também comentou que, numa de suas últimas apresentações, ela saiu às pressas do palco e, quando apareceu, foi carregando uma garota no colo para o lado de fora.
“Não sabe quem é?” disse a colega de trabalho “É a sobrinha do Assis. Elas são superamigas.”
Assis estava a duas quadras do seu jogo de dominó diário quando os três colegas da mesa comentavam sobre sua sobrinha. Primeiro, fora que um deles finalmente tinha visto a tão falada Helena. Tinha ido acompanhar a tia nas compras. Ressaltou sua beleza, e de como não parecia que uma moça tão bonita daquela não podia ouvir. Outro falou que ela ouvia sim, que usava o aparelho e que o próprio tio já tinha comentado sobre isso mais de uma vez.
No entanto, a conversa tomou outro parâmetro, quando um deles falou da proximidade dela com a filha do cabo Garcia. O que estava ao lado direito perguntou qual era o problema com isso. O problema era que sua esposa trabalhava no hotel e já havia comentado mais de uma vez em como a relação das duas era, no mínimo, curiosa.
Helena só ia para o refeitório se estivesse com Daniele, se não, sequer saia do almoxarifado. Só conversava com ela, ou para não dizer que não falava com mais ninguém, trocava poucas palavras com o rabugento zelador do turno da noite. Com os demais, desligava o aparelho e fingia não conhecer ninguém. Já na recepção, com quinze minutos de antecedência dos lanches dos funcionários, Daniele saía do seu posto e ia para onde Helena estivesse apenas para ficar conversando e rindo. Ainda assim, não era esse o problema.
“É a forma que ela olha para Daniele que...”
Uma voz conhecida questionou o que estavam falando. Era Assis ao fundo, se sentando ao lado do homem que, envergonhado, parou de falar. Perguntou mais uma vez do que se tratava, já desconfiado de qual seria o tema do assunto. A conversa poderia ter terminado e provavelmente haveria um certo desconforto pelo silêncio que ficara. Porém, talvez por curiosidade, talvez pura incitação, ou apenas por maldade, ele prosseguiu.
“Era de como a Dani e sua sobrinha parecem se dar muito bem”, estendendo a palavra “muito” na frase.
O cerrar de sobrancelhas perante o comentário no instante em que se sentou e pegou as peças dispostas na mesa. Perguntou qual seria o problema com isso e, mais uma vez, a tal má fama de Daniele pela cidade, e de como as pessoas poderiam falar por aí. Fora o suficiente para que Assis adquirisse uma rara cara de poucos amigos.
“O que está querendo sugerir?” indagou ainda olhando para o jogo. Silêncio mais uma vez. Novamente a pergunta, no qual a resposta foi um sorriso irônico advindo daquele que fazia os comentários.
Assis era conhecido por sua tranquilidade, seja lá qual fosse a situação. Apesar de estar tomado pela ira daquele gesto, se prestou a colocar as peças viradas para baixo e se levantar, enquanto o que estava ao seu lado esquerdo apoiava a mão em seu ombro, na tentativa de conter sua ida.
“Eu só quero que saibam que o que Helena deixa ou não de fazer da vida dela não diz respeito a vida de ninguém” falou em um tom mais incisivo enquanto olhava para os demais ali sentados “tenham uma boa noite.”
Voltou a passos pesados de volta para casa. É claro que sabia dos comentários que aconteciam na boca miúda daquela cidade. Todos falavam de todos, e com eles não seria diferente, ainda mais quando Helena era a nova atração principal dali. Pensava se deveria falar logo disso com a esposa, mas concluiu que isso também tenha chegado até antes nos ouvidos dela, ainda mais sendo tão próxima de Sueli. Apenas sentia que a última pessoa que precisava saber disso era Helena.
Que estava de frente de duas espectadoras atentas no sofá, mostrando um truque de fazer a bolinha vermelha desaparecer da mão e aparecer em outro lugar. Assim que a tirou da almofada que estava atrás de Daniele, os aplausos vieram. Era a folga das duas, e Fátima tinha sugerido que a visita ficasse para jantar e comer sua famosa costela assada com batatas. Acabou voltando para a cozinha, deixando as duas a sós. Daniele pediu para que mostrasse mais uma vez aquilo. Sabia o quanto Helena se empolgava em ensinar o que sabia.
Assis chegou pouco depois, e logo que entrou, viu as duas garotas entretidas, rindo, sentadas no sofá, uma de frente para a outra. Não sabia dizer se por influência ou por pura atenção, mas, assim que tirava os sapatos e entrava na casa, olhava para o que se desenrolava à sua frente.
Helena estava sentada com as pernas cruzadas, tocando as de Daniele, que estavam na mesma posição. Próximas demais, mas pareciam não se importar com aquilo. Soava natural. Colocou a bolinha vermelha nas mãos de Daniele e as juntou gentilmente, mostrando cada gesto daquele truque sem a soltar, falando o que tinha que fazer.
E então entendeu.
Elas sequer perceberam que ele tinha chegado, guardado os sapatos e parado na entrada. Havia coisas mais interessantes para ambas naquela sala: a presença uma da outra.
Só se perguntava se elas mesmo já tinham percebido isso.
Fim do capítulo
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