Eu me sinto tão...
Já se fazia um tempo desde então.
O tique do relógio já não incomodava como antes, o arrastar da cadeira na lajota já não machucava tanto e a voz dos demais já não soava tão estridente. Conseguia até mesmo apreciar o cantar de um passarinho à distância enquanto olhava para o lado de fora, vendo os indícios de uma manhã que aflorava ao horizonte.
Chamaram-na, e no que ouviu seu nome, logo virou para a direção de onde veio. Era Fátima, que, no fundo, sentia certo alívio em ver como Helena estava progredindo bem, apesar dos pesares do começo. Não que a achasse incapaz ou algo assim, mas não conseguia se livrar do eterno receio de como o mundo pudesse continuar a agir com ela.
Já era a hora do café. Assis saiu do quarto já arrumado e, com um cumprimento animado, se sentou junto a elas. Perguntou como Helena tinha passado a noite e ela, em tom cansado, disse que tinha sido tudo tranquilo naquele dia. Ainda estranhava a própria voz, soando como uma impostora dentro do próprio corpo. Talvez pudesse se acostumar com isso, mas aquele ainda não era o dia. Logo depois de sua resposta seguido de um gole de café, sua tia fez a pergunta que se repetia por quase todas as manhãs que se encontravam.
“E Dani, como está?”
Quando se vê alguém por uma outra ótica, as coisas mudam. Fátima, que normalmente via Daniele como a provação diária da vida da amiga por suas atitudes, agora tinha a impressão de que talvez ela exagerasse por vezes. Afinal, uma pessoa tão egoísta como era alegado teria feito o que fez por Helena? Não só por esse caso, mas como era evidente a preocupação e cuidado que tinha por ela. Era a genuína importância, e não mera conveniência.
Afinal, sabia que, provavelmente, se não fosse pela influência de Daniele, Helena jamais teria tentado voltar a usar o aparelho.
A resposta sempre seguia entre um “está bem” e comentar sobre algo que fizeram no trabalho ou um “não estava tão legal” e dizer que deveria ter acontecido alguma coisa. A resposta daquele dia fora a segunda opção. Tinham discutido antes de sair com o pai por algo relacionado a alguma tarefa doméstica que consideraram que ela não tinha feito direito.
Comentou em um tom depreciativo quando citou o nome dele. Diferente da tia, sua visão sobre os pais de Daniele era a pior possível, e tinha seus bons motivos para tê-lo.
Daniele olhava séria para o pai, que estava com os punhos cerrados em cima da mesa, encarando-a de uma forma que aterrorizaria qualquer um, se a própria já não estivesse acostumada com esses gestos. Perguntou mais uma vez a ela.
“Você mexeu nas minhas coisas?”
Sim, tinha mexido na caixa de ferramentas do pai procurando pela chave de fenda para regular as tarraxas do seu violão. Sabia que tinha que ter pedido permissão para ele que, se desse, pegasse a ferramenta que precisasse, e não que tivesse permissão de ir até lá pegar. No entanto, ele não estava em casa e ela não estava com paciência para esperá-lo.
Sabia que na garagem, onde ficava suas coisas, tinha uma câmera onde ele monitorava tudo. Não só nela, mas na casa toda, e se questionava se também não tinha no quarto dele. Bem, pensou que o problema seria dele em ver o que acontecia ali por vezes quando estava sozinha ali.
Levantou-se da cadeira. Sabia o que aconteceria, até porque, para piorar, tinham discutido antes de sair, deixando os ânimos inflamados o suficiente, e não que precisasse de muito para isso. Por vezes, era só não ter acordado em um bom dia, então ninguém também o teria.
Não teve um espasmo de receio quando viu o pai ir em sua direção. O máximo foi o levantar de sobrancelhas que o desafiava como um “sim, e daí?”. Sabia que, qualquer que fosse a resposta, a reação seria a mesma.
A mão que se erguia, a mãe que se levantou para tentar impedir o que viria a acontecer. O de sempre. Um virar do rosto para o lado abruptamente, a falta de expressão mais uma vez. Agora ela que se levantava e, sem terminar de tomar o café, foi até o seu quarto, onde se trancou e se apoiou na porta, pressionando os dentes contra os lábios com tanta força que podia sentir o gosto do sangue vir em sua boca, na tentativa falha de soterrar lá no fundo do seu peito o que sentia quando isso acontecia.
Pegou o telefone que estava próximo do travesseiro e mandou uma mensagem para Helena, para saber se ainda estava acordada. A resposta foi imediata, seguido do perguntar se tinha acontecido alguma coisa. Tinha. Não queria ficar em casa, e seguiu perguntando se podia ir até lá. A resposta era só uma.
“É óbvio, já estou te esperando.”
Pegou sua mochila e saiu, ignorando os comentários que vinham de fundo antes de bater à porta. Não demorou para chegar até seu destino e, sem muitas delongas para que não os demais da casa não percebessem seu estado, pediu para que fossem até o quarto. Sentou-se na cama, e abaixou a cabeça. Seus olhos marejados logo denunciariam como estava, e aquela que se sentou ao seu lado não precisou mais do que cinco segundos para entender o que realmente havia acontecido.
“Seu pai...O que ele fez dessa vez?”
Fora o de sempre. Que o cretino estúpido o qual dividia o mesmo sangue tinha a estapeado pela merd* de uma chave de fenda que foi tirada de sua maldita caixa de ferramentas. Mordeu os lábios mais uma vez. Helena logo notou.
Mesmo que Daniele evitasse a todo custo contato visual, não tardou para que sentisse algo macio tocar seu lábio inferior. Uma toalha de mão azul dobrada em duas partes que pressionava aquela região brevemente ferida, de uma forma tão delicada que poderia pensar que era uma pena que roçava em seus lábios. Helena olhava compenetrada para o gesto que fazia, em leve batidinhas, até que encontrou seus olhos escusos. Não os desviou. Pelo contrário, a encarava de volta, e suspirava cansada pelo fardo pesado que seus ombros por vezes não eram capazes de carregar.
Colocou aquele pedaço de tecido de lado, estendeu os braços e levou o corpo para frente, fechando os olhos e assim, a tomando em um abraço. Não estava acostumada com isso. Não exatamente com abraços, afinal era uma pessoa extrovertida ao qual não tinha problema algum com contato físico em todas suas formas, mas saber que aquele gesto de conforto vinha de Helena a deixava sem reação alguma além do corpo rijo.
Mas, provavelmente esse não teria sido o maior dos problemas, e sim o que se sucedeu.
“Eu estou aqui”, seguido de um suspirar baixo e o apoiar do rosto em seu ombro, assim como dedos que tocava o tecido de sua costa, se prendendo como nós. Sua única resposta após o choque inicial foi a de alocar entre suas pernas para que realmente pudessem se abraçar e, de imediato, prender seus braços sob ela de volta em toques dissonantes.
A mão que desliza sob o pescoço, em um afago contido. As unhas que roçam devagar sob aquela pele. O peito que vai e volta em um respirar que acompanha o próprio ritmo. Não como se antes não pudesse ouvir, mas, agora, também podia ver.
Daniele era sensível demais. Sentia tudo demais, à flor da pele, com a intensidade de um coração puro que parecia nunca ter experienciado a dor, assim como de um atormentado que nunca conheceu a paz. Helena havia se trancado dentro de uma carapaça que jamais permitia que se visse o interior. Tudo o que sentia era apaziguado pelo seu comportamento desdenhoso. Talvez estivesse sentimental demais e sentisse gratidão, ou só estivesse sendo muito legal, ou até mesmo cedendo seu ombro amigo por gentileza.
Não. Ela não era sentimental, legal ou gentil. Helena era ranzinza, taciturna e ácida, e se encontrava acariciando a nuca de alguém porque realmente queria fazê-lo sem nada em troca. Aquilo era um gesto tão simbólico quando se tirasse a própria roupa. Estava tirando aos poucos a armadura que percorria por todo o seu âmago.
E Daniele, em segredo, agradecia por aquilo.
Mas, também se perguntava até onde isso iria chegar.
Fim do capítulo
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