Capitulo 69
Capítulo 68
Em geral eu comento que toda abordagem se torna um borrão depois que acontece. A adrenalina do momento faz perder os sentidos externos e apenas focar na missão, na hora não sinto fome, vontade de ir ao banheiro, cansaço, nem absoluta nada. Essa sempre foi a regra pra mim, mas para tudo que é diferente tem uma primeira vez.
Eu levei minha pistola para Portugal, por segurança básica e por estar a serviço. A Marjorie também levou a dela, mas é óbvio que só nos e duas pistolas não iremos parar um avião e prender alguém. Nem poderíamos na verdade, nem no Brasil conseguiriamos isso facilmente, imagine em outro país.
Então depois que a Isa me ligou e a Marjorie foi acionada, infelizmente acabou nosso almoço com a Carol, Fernanda e Beatriz. Nós voltamos o mais rápido possível para o hospital e só deu tempo de juntar as coisas. A Bia, assim que teve a oportunidade, me perguntou o que estava acontecendo. Eu tentei explicar por cima, mas a resposta acabou sendo: Fomos acionadas para uma detenção. Temos que chegar em Trás os montes antes do avião pousar. Foi nítido o descontentamento dela, mas nessa organização inicial não tenho nem tempo de falar muito.
A Marjorie colou no celular e não conseguia mais largar. Como PF e a ligação oficial com o Brasil, embaixada e algumas coisas que eu não faço ideia, ela estava agitada tentando resolver questões burocráticas e algumas práticas. Frente a chance de capturar a Mayra, nem gastamos nossa energia momentânea com a Milena. Ela está detida, poderemos tentar mais algumas ações para proteger ela quando chegarmos ao Brasil.
A orientação inicial dos superiores da Marjorie foi seguir para o aeroporto o mais rápido possível e aguardar novas ordens lá. Estavam contactando as polícias portuguesas para abordarem o avião conosco.
A Fernanda providenciou que a van do projeto ficasse à nossa disposição para ir a Trás os montes e que o motorista ficasse nos acompanhando no que precisávamos. Nos despedimos dela e da Dra Carol com uma certa tristeza, acho que as três queriam ter ficado mais tempo. Confesso que pra mim a maior dor foi ir embora sem ter tido a oportunidade de conhecer o vilarejo, os pontos turísticos, a história.
Eu também queria ter tido um pouco mais de tempo para conversar com a Carol, sei que ela ainda está bem abalada ainda pelo sequestro e por ter descoberto a mandante. A Fernanda está dando um mega apoio pra ela, dá pra ver nos olhos da Fer e no jeito como fala, o quanto está apaixonada pela Carol. E vou dizer, que casal encaixado elas são! Sabe aqueles casais que não dá para imaginar elas separadas, ela não juntas. Se completam nos detalhes, nos carinhos, conversam pelo olhar.
Eu fico encantada quando vejo casais desse jeito, eu tinha isso, eu tive isso, e não tem um dia que eu não sinta falta da Fabi. Todos os dias torço para conseguir essa conexão com a Bia, mas isso é algo que vem com o tempo, com o casal se conhecendo, vivendo. Eu e a Bia nos entendemos em muita coisa, e sei que não devo nunca comparar ela com a Fabi, afinal com a Fabi foram 10 anos juntas. É muito tempo juntas se comparar com a Bia que é mega recente.
- Amor?! Flávia? - fui trazida a realidade pela Bia
- Oi linda - dei um beijinho, assim, do nada - “Que foi”?
- Temos umas 6 horas até tras os montes.
- Sim, dá pra dar uma boa descansada - falei passando o braço por ela, na intenção de puxá-la para deitar comigo no carro.
- Não - tirou o braço - são 6 horas para me explicar o que está acontecendo!
- Não entendi. Fomos acionadas para uma detenção, te falei já.
- Você está longe de mim, afastada. Já estava, piorou depois que te contei do suicidio do Ricardo.
- Amor, isso foi ontem. Calma. Parece uma vida, mas foi ontem.
- Sim. Você está distante, amor.
- Bi, desculpa, me desculpa - dei um beijinho nela - estou tão envolvida nesse caso que acabei falhando e me ausentando com você.
- Eu sei que você é fissurada no trabalho, mas eu nem consegui cuidar de você. Não ficou cinco minutos no alojamento lá comigo.
- Bi, desculpa, desculpa.
- Vim pra ver se tomava o remédio, nem isso consegui. Estamos indo embora quase fugindo, o que está acontecendo?
- Bi, viemos para acompanhar a questão do sequestro da dra Carol. É um caso que é desdobramento daquele do matão do fundo, de tráfico de orgãos. E foi muito bom termos vindo, conseguimos uma informação que permitiu o mandado de prisão preventiva de uma suspeita em São Paulo.
- E porque estamos fugindo agora?
- Amor, não estamos fugindo. Viemos a trabalho. Essa mesma suspeita, que foi decretado prisão preventiva, se meteu em um avião, fugindo e por azar está vindo para Trás os Montes. Por sorte nossa, a Marjorie, como PF consegue abordar ela aqui e voltar pro Brasil. Eu sozinha não poderia.
- Fico chateada que não pudemos conhecer nada, nem deu tempo.
- Eu também fico triste por isso amor, mas estamos aqui a trabalho. Na bucha, nem deveríamos ter vindo. Oh, vamos fazer assim, prometo que assim que isso tudo acalmar, podemos fazer uma viagem nossa, claro que bem mais simples, em SP mesmo.
- Flávia.
- Oi amor.
- Eu estou aqui. Sabe que pode se abrir e conversar comigo.
- Claro que sei disso amor.
- Sobre tudo, sobre a vida, sobre trabalho.
- Amor, Bi, eu converso sobre tudo que posso com você. Estou em um caso sigiloso, por isso não falo do trabalho. Mas de todo o resto converso com você - Sorri firme, tentando não prolongar aquele bate papo que parecia uma discussão. Ofereci minha perna para ela se apoiar, deitar. A viagem realmente seria longa até Trás os Montes e sem sinal, então não tem nem como se atualizar ou programar qualquer estratégia.
Quando estacionamos no aeroporto de Trás os Montes já estava bem escuro, passava das 10 horas da noite, mas a iluminação do aeroporto não deixava transparecer a escuridão de fora dele. Descemos da van do projeto e eu fui direto para o bagageiro ajudar a descer as malas das três. Agradecemos o motorista e seguimos para dentro do aeroporto. A Marjorie pendurou a mochila nas costas e saiu na frente, eu e a Bia carregamos as nossas e a malinha de rodas dela.
- Bia, vamos sentar aqui e esperar a Marjorie voltar. Ela foi ver se temos algum lugar para ficar até o momento da abordagem.
- Eu vou abordar junto?
- Não, você fica fora e espera eu te acionar. Não quero você envolvida nesse tipo de coisa.
- Vou dizer que ainda bem, sempre tenho medo.
- Fica tranquila, você não está formalmente trabalhando aqui e não tem muita formação em abordagem. Você é perita de imagem, ótima na sua área. Não posso te colocar pra correr se você sabe nadar.
- Vou considerar isso um elogio - me respondeu um pouco mais rude.
- E foi amor. Te elogiei como uma ótima perita. Só não tem como eu te colocar em uma abordagem se você não tem formação nisso. É igual me colocar para tirar foto, vou fotografar o teto ao invés da paisagem.
- Meninas, Flávia - a Marjorie me acionou - Venham, tem uma sala aqui dentro que vamos usar, venham - acompanhei ela, carregando o que eu podia de mala e olhando, sempre atenta para a Bia. Quero ela próxima. Entramos por uma porta de serviço do aeroporto, onde havia um rapaz de terno nos aguardando. Ele nos cumprimentou e foi a frente mostrando o caminho. Um pouco depois, chegamos a uma área identificada como “Polícia Judiciária - Direcção Trás os Montes”.
- Senhoras, esse é o chefe de polícia, vou deixá-las com ele - um homem relativamente jovem, chuto que uns 35 anos, nos recebeu levantando. Estiquei minha mão me apresentando - Flávia, investigadora da polícia civil de São Paulo - e a Marjorie fez o mesmo - Marjorie, delegada da Polícia Federal do Brasil - a Bia foi cumprimentar, esticou a mão e lançou - Beatriz - antes de completar, entrei na frente, falando: a Bia é perito de imagem da polícia civil de São Paulo, mas hoje está apenas acompanhando nós.
- Sim, vamos acertar alguns detalhes. A Sra Beatriz irá nos acompanhar? - o chefe de polícia perguntou.
- Por enquanto não, teria alguma sala que ela possa nos aguardar? - a Marjorie perguntou.
- Claro, vou pedir para um agente acompanhar a senhora. Tem um dormitório e um espaço que pode aguardar - esticou a mão para um agente atrás de nós e assim que ele entrou, passou a ordem de alocar a Bia. Ela acompanhou o agente, mas foi nítido em sua expressão o quanto ficou e estava incomodada, imagina também, em um lugar desconhecido, sozinha, enquanto a namorada trabalha - pronto, vamos começar.
- Temos uma foragida da justiça brasileira que deve pousar aqui por volta das 0h, horário local - Marjorie iniciou.
- Sim, já recebemos a documentação da justiça brasileira, o mandado de prisão preventiva e a extradição. Ela está na lista de Difusão Vermelha da Interpol, a Polícia Federal do Brasil foi quem adicionou.
- Isso, como era previsto uma fuga, já deixamos as documentações prontas - a Marjorie completou
- Se era previsto uma fuga, porque não fizeram uma prisão preventiva?
- Discordâncias de processo. - boa resposta
- Que seja…. minha função aqui é ajudar a extrair a fugitiva do avião e entregar em segurança para vocês. Não quero caos no aeroporto, não quero luz, camera e ação, nada disso. Entrou, identificou, extraiu.
- Sim, claro
- Além disso, por estarem em território português a detenção precisa ser formalmente feita por uma autoridade policial portuguesa.
- Sim inspetor, precisamos exatamente disso, suporte na abordagem e uma situação regulamentar - eu estava tendo uma aula de direito vendo as falas e posturas da Marjorie. .
- Essa fugitiva tem risco? Ela vai explodir o avião, vai causar algum transtorno? - o inspetor perguntou e a Marjorie me olhou, os detalhes do caso e da Mayra sou eu quem conheço.
- Imaginamos que não inspetor. Não há relatos de agressão direta ou explosivos como o senhor citou. É uma foragida que age através de outros e cumpre missões de tráfico de pessoas. Claro que não é possível dar certeza que ela não vai explodir nada, mas não é previsto.
- Ótimo. Vamos com o aparato de segurança e deixar tudo acionado. Mas a ideia é entrar, identificar e extrair. Rápido e liso.
- Sim senhor.
- Qual das duas pode identificar a fugitiva? - levantei a mão - Ótimo. A imagem que recebi do Brasil está preta e branco, é de câmera de segurança, então fica atenta a mudança da cor do cabelo, vestimentas diferentes, ela está sob disfarce.
- Sim senhor, estou em condições - por alguns segundos eu pensei: quantas vezes vi a Mayra pessoalmente? Três, quatro? Mas sou boa de fisionomia, sem contar que haverá os trejeitos dela, a postura dela. Chuto que quando me ver, irá desviar o olhar, essas coisinhas que no conjunto da obra irá permitir a identificação.
- Ótimo. Quando recebermos a mensagem da torre, aciono vocês.
Talvez, um dia, eu agradeça a Mayra pela oportunidade que tive. Pelas merd*s dela, eu consegui participar de uma abordagem internacional em um aeroporto, isso por si só, já é uma experiência absurda. Eu e a Marjorie ficamos uns 15 ou 20 minutos esperando, quando o inspetor falou alto no corredor:
- Aeronave aproximando - eu e a Marjorie levantamos atentas às ordens, afinal, não estamos em casa e só temos uma pistola cada uma. Cerca de uns 10 agentes começaram a se mobilizar, colocando colete balístico e pegando armamento. O inspetor também colocou o colete e veio conversar conosco - Vocês estão com colete? Armamento?
- Não inspetor. Não trouxemos nada - a Marjorie respondeu - viemos para um depoimento. Por acaso estávamos aqui quando essa fugitiva está vindo.
- Porr* - ele respondeu grosseiro para ela.
- Temos duas pistolas, caso ajude - respondi respeitosa, mas firme
- Vão entrar 2 agentes meus por trás e entra você e mais um pela frente. É rápido. Identificar e sair, simples assim. Todos os passageiros estarão sentados, mas podem estar curiosos, filmando, coisas do tipo.
- Ok, sim senhor - respondi confirmando e olhando para a Marjorie, de certa forma pedindo autorização pra ela.
- Você - apontando para a Marjorie - vai ficar na base da aeronave. Saindo do avião, preciso que esteja me acompanhando em absolutamente tudo que eu fizer com a suspeita.
- Sim senhor.
- Aeronave em pista - um outro agente falou alto.
- É isso pessoal, o de sempre, proteção de perímetro, extrair e trazer - o inspetor falou a uns 10 agentes envolvidos na ação. Eu e a Marjorie fomos seguindo eles pelo corredor e depois até a parte segura que o avião estava estacionando. Nós duas nem conversamos, estavamos tensas e digo por mim, incomodada por estar agindo em outro local, longe da minha equipe, daqueles que confio.
Esperamos o avião parar por completo e os funcionários do avião colocar a escada nas portas, para o desembarque das pessoas. Assim que as portas foram abertas, os agentes do fundo já entraram. Eu e o inspetor entramos pela frente, o colega foi conversar com a comissária e eu acabei, automaticamente, passando o olho por cima dos passageiros. Não enxerguei nada de imediato.
O inspetor entregou a foto da Mayra e a imagem, cópia, de passaporte. A comissária abriu um computadorzinho, tipo um tablet, e foi procurar a “passageira”. Rapidamente nos repassou: Assento 17F. O agente agradeceu e falou no rádio: 17 F, avança e espera.
Os agentes do fundo foram andando em direção ao meio do avião, enquanto eu e o chefe fomos indo em frente. Sabendo que 17F é a cadeira da janela, do lado esquerdo, fui indo olhando passageiro por passageiro, procurando uma mulher. Foi incrível como a maioria das pessoas estavam curiosa, olhando para os agentes, menos uma pessoa próximo ao meio do avião, de boné, olhando pra baixo. Será?
Os agentes do fundo pararam bem próximo a fileira 17, a pessoa parada continuava sem olhar pra frente, cabeça abaixada, com o boné tampando o rosto. O agente que estava comigo parou perto também e com educação falou:
- senhora, senhora, por gentileza - quando ela levantou o rosto eu pude ver a cara de pau da Mayra por baixo do boné azul.
- Pode levar, confirmado - falei para o agente que estava na minha frente. Na hora a postura deles mudou.
- “Bora”, levanta e me acompanha - um dos agentes já falou.
- Não, o que é isso?!
- Por gentileza me acompanhe para verificação - ela levantou, pediu licença para sair do assento.
- Tem mala de mão?
- Tem.
- Pega a mala e “vai”! Rápido - tudo em um volume baixinho da conversa, que alguém da outra fileira não conseguiria escutar. Ela abriu o bagageiro em cima da fileira e retirou uma mala preta, posicionou no chão e quando levantou o rosto foi a primeira vez que nosso olhar cruzou diretamente. Acho que se ela tivesse algum super poder, eu teria sido queimada viva exatamente nesse momento, um misto de surpresa em ver que eu caçei ela até em outro continente - Vamos.
Eu virei em direção a saída e segui em frente, seguida pelo inspetor, Mayra no meio e os dois agentes do fundo fechando o comboio. Assim que apontei na saída do avião, os agentes que estavam no aguardando, ficaram mais atentos e com o armamento em condições. A Marjorie me olhou e eu entendi sua pergunta, respondi com um aceno de cabeça, afirmando que tínhamos conseguido.
Desci a escada e só após chegar ao solo consegui olhar pra trás. O agente que estava no fundo, já estava segurando a Mayra pelo pescoço, conduzindo ela. Assim que ela e o agente apoiaram o pé no chão, o inspetor deu a ordem: pode algemar! Só levar pra base.
- O que está acontecendo? Não vai me algemar não portuga - começou a esbravejar puxando o braço
- Vou sim e cala a boca! - o agente já soltou, na brutalidade.
- Sem mandado de prisão não vai fazer nada - puxou novamente o braço. O inspetor puxou a pistola, fazendo a empurranhura em direção a Mayra, na hora ela acalmou e parou de puxar o braço. O outro agente colocou os braços dela pra trás e algemou. Posicionou a mão no pescoço, dando um empurrão e ela começou a andar, cercada por vários agentes da polícia judiciária. Quando a Mayra passou por mim, esbravejou: Satisfeita?
Eu não respondi pra ela, não dei essa abertura. O fato dela abrir a boca lhe custou um solavanco no pescoço. Mas se eu fosse um pouquinho fora da curva iria gritar: Claro que estou satisfeita, chego a estar sorrindo. Conseguem imaginar o significado de conseguir prender ela, do ponto de vista profissional é a conclusão positiva de um caso grande, uma quadrilha que quebramos. Um caso que começou lá no matão do fundo com uma vala coletiva até atingirmos uma traficante de pessoas. Isso é fantástico, uma conquista profissional para a equipe. Então se estou satisfeita? Nem te conto o quanto!
Durante todo o processo de detenção e da papelada a Marjorie ficou colada ao inspetor de polícia. O cansaço da Marjorie era nítido, seus olhos chegavam a estar vermelhos, mas ela se manteve firme, profissional e com muita paciência. Eu no lugar dela já teria dado uma resposta bem atravessada no inspetor de polícia, grosso e mal educado.
Foram coletadas as digitais da Mayra, imagens de frente e de lado, todos os dados rapidamente enviados e analisados nos sistemas brasileiros de identificação. Vai que além de existir uma mal caráter, ela tem gêmea? Acontece e não é raro. Quando foi confirmada a identidade pela PF, a Marjorie leu o mandado de prisão.
Eu já estava acompanhando todo o processo de perto, mas nessa hora acabei observando mais atenta a Mayra. Ela estava pálida e com olheiras. A postura altiva, de certeza, de poder, havia se perdido, estava com a coluna arqueada, olhar no chão. O cabelo moreno, que poucas vezes vi, havia sido tingido ou descolorido em um loiro e posso comentar que muito mal feito. O mocassim e a roupa formal foram trocados por um tênis largo e um moletom, disfarçando a personalidade, a postura.
Até o próprio nome a malandra mudou, em um passaporte falso, muito bem feito, a foto loira dela estava ao lado do nome Patricia Rodrigues Cunha. Por isso ela passou com tanta facilidade pela PF no aeroporto. Por sorte, isso era esperado, passou pela triagem, mas não saiu da malha fina internacional, nem do carômetro de foragidos. Acho fantástico como pequenas alterações passam, mas como o universo, o destino cuida muito bem de tudo.
Confesso que achei que ela fosse gritar, espernear. Sei lá, causar. Mas depois que foi algemada ficou quieta e conforme o processo foi desenrolando, ela foi murchando. Quando a Marjorie leu o mandado de prisão, ela não respondeu, não falou absolutamente nada, apenas abaixou a cabeça e assim ficou.
Embarcamos em um voo particular proporcionado pelo Azeite Ganate, ou seja pela Fernanda. Ela havia pago o voo da ida e pagou o da volta também. A Marjorie como representante da PF, organizou e pagou um lugar nesse voo também, não sei detalhes então nem posso especificar para vocês.
Entre a prisão dela e a liberação pela polícia judiciária portuguesa levou cerca de 3 a 4 horas. Nesse meio tempo sei o suporte que a Marjorie precisava para documentações, identificação e tudo mais, mas também tentei dar atenção pra Bia, que estava em uma outra salinha, tomando café, mexendo no celular e lendo um livro. Quando finalmente fomos liberadas e nosso vôo já estava em condições, eu avisei ela.
Era nítido o cansaço que nos três estávamos. Não dá pra esquecer que foi uma viagem internacional súbita, de última hora, trabalho até o talo. Eu recém de alta hospitalar estou com dor no corpo todo. O local do dreno ainda doi quando respiro e a mão quebrada a todo tempo lateja, nem na tipoia eu consegui deixar, então imagina a dor. Estou desejando ardentemente entrar no avião e poder cochilar um pouco.
Quando o voo estava em condições seguimos para um portão específico. Por se tratar de um voo particular e com a presença de uma detenta, fomos caminhando por uma área interna do aeroporto, tentando não chamar muita atenção. Durante todo o trajeto fomos acompanhadas pelo inspetor e por outros dois agentes.
Entramos no avião particular, ainda com os agentes portugueses, eles só saíram após a custódia da Mayra ser passada para a Marjorie, na prática. A delegada mandou que soltasse as algemas da Mayra, que estava com os braços para trás, mas que prendesse com o braço para frente e uma algema nas pernas.
Quando o avião finalmente levantou voo, eu senti um alívio absurdo, kilos e kilos saindo das minhas costas. Um alívio que encheu meus olhos de lágrima, em um momento só meu. Uma sensação de dever cumprido, de paz, de estar realizada. Me senti emocionada comigo, com meu trabalho, com o meu resultado. Fechei os olhos por alguns segundos, procurando dentro de mim um conforto, um carinho, e a imagem da Fabi sorrindo, comemorando, apareceu em minha mente. Que saudade!
- Flávia, tudo bem? - a Bia, sentada na poltrona à minha frente, me chamou de volta.
- Sim… sim… só estava pensando na vida, nesse caso. Acabei me emocionando um pouco.
- Esse caso foi muito pesado pra você. Estava sempre tensa.
- Sim, caso bem complicado, não conseguia desligar nunca. Amor, quando vai ser o velório do Ricardo?
- Amanhã. O corpo chega às 10 horas e sepulta as 16h.
- Vamos chegar bem em cima do horário, mas acho que dá tempo de ir.
- Hu hum.
- Bi, você vai querer ir? Vai te fazer bem?
- Aí Fla, eu não sei. Pra ser sincera eu não tenho a mínima vontade de ver as pessoas, correr o risco de ouvir que eu sou culpada, que abandonei ele, que isso, que aquilo. Nem quero encontrar meus pais, sei que eles estarão no velório do filho prodigio deles. Porque para os meus pais o Ricardo era um santo e eu que aprontava. Então não estou a fim de ser culpada de algo que não tenho culpa.
- Bi, essa é a última oportunidade de ver ele. Nem que seja pra botar fogo, chutar o caixão, urinar nas velas.
- Eu sei. Pensei muito nisso enquanto você estava com a Marjorie, resolvendo as coisas da detenção. Se me der vontade, eu vou ir, não vou me privar. Mas ainda não sei se vale esse estresse.
- Linda, se quiser ir, estarei ao seu lado. E sabe que se quiser até viro sua guarda costas, não deixo ninguém chegar perto de você. Te protejo!
- Eu acredito Fla, você me protegeria de qualquer um, talvez só não me proteja de mim. Se eu for, talvez me culpei mais ainda. Não sei ainda, não sei. Estou pensando.
- Tá bom, estou aqui com você tá - estiquei minha mão - só me dar a missão.
- Amor, eu já vi essa detenta aí. Ela não é a namorada da Bruna? - quando a Bia me perguntou eu dei uma gelada, quase calafrio.
- É ela mesmo Bi, é a Mayra.
- Humm, o que ela fez? Você poderia estar envolvida nesse caso? Digo isso pela Bruna ser sua ex.
- O correto era eu não me envolver, concordo. Mas é um desdobramento do caso das valas coletivas do matão.
- Tá, ai ignorou seu envolvimento com a ex dela?
- Amor, o caso se desenrolou. Começamos com o desaparecimento de um jornalista, que era um caso da Isa e um corpo sem identificação na vala do matão. Quando cruzou A e B, viu que o corpo era do jornalista.
- Tá, mas isso não muda minha pergunta. Em um dado momento as informações bateram e você viu que envolvia a namorada da Bruna. Porque não se afastou?
- Bia, eu e a Isa conversamos sobre isso diversas vezes. Quando a Mayra começou a aparecer com mais frequência na investigação, cotamos para eu me desligar. Mas meu envolvimento com a Bruna poderia trazer algum benefício, alguma informação.
- Nossa, fiquei mais calma - a Bia falou mais ríspida e ironica - usou seu envolvimento com a Bruna pra capturar a Mayra? Ai FLávia, só piora!
- Amor, não foi assim não. As coisas foram evoluindo. Eu nunca liguei pra Bruna pedindo informação da Mayra, ela que acabava me ligando.
- E a gente?
- A gente o que?
- A gente namorando, morando junto e você conversando com a Bruna?
- Bia… - respirei fundo - não estou entendendo. Está com ciúmes de eu ter falado com a Bruna?
- Não é ciúmes Flávia, é um ponto ético aqui. E quer saber, ciumes também, está comigo e falando com a Bruna.
- Bi, não segue por esse caminho, por favor. Eu só aceitei começarmos alguma coisa depois que eu terminei com a Bruna. Sabe o quanto eu sou bitolada com traição.
- São dois pontos. Uma é a questão ética, que não deveria ter aceitado um caso com envolvimento emocional. Dois é comigo, falta de respeito e de consideração.
- Amor, acho que estamos cansadas, foi uma viagem pesada, exaustiva. Vamos ter esse papo depois que chegarmos no Brasil, depois de descansar. Pode ser?
- Não, eu quero seu celular, deixa eu ver ele - nessa hora eu puxei o ar com calma. Minha maturidade está em check, sendo testada. A Beatriz está cansada, com ciúmes, triste, chateada com a morte do Ricardo. Não posso explodir, não posso explodir.
- To - estiquei meu celular - Nunca te proibi de mexer nele, você sabe a senha.
- É, mas nunca tive que fiscalizar suas conversas - o que? Fiscalizar minhas conversas. Será que o Ricardo fazia isso com ela?
- Aqui óh, posso te ligar? posso passar na sua casa? Acha que isso é certo? Ela é sua ex! - a Bia falou mantendo-se desequilibrada, mas sem gritar.
- Bia, de novo, vamos conversar quando chegarmos no Brasil, estivermos descansadas. Eu te conto cada detalhe e passo pelo seu interrogatório. Só não podemos ter essa conversa agora, exaustas, com fome, na presença de uma detenta.
- A namorada da sua ex!
- Exatamente, minha ex - perdi a paciência e falei mais áspera - Com quem eu estou agora? Com você não é? Então me dá um voto de confiança e se acalma. Nunca te dei motivo para isso - soltei o cinto de segurança e levantei da poltrona, de modo a fisicamente finalizar a discussão. Pode até ser uma fuga, como quiserem, mas me dei um espaço físico.
Andei até o final do estreito avião em direção ao banheiro, lavei o rosto, molhei as mãos, tentando me regular, me acalmar. Passei pela comissária e pedi um café expresso e alguma coisa para comer. Com uma xícara e uma embalagem de biscoitinhos, voltei para próximo a Beatriz e entreguei o café. Foi a forma de falar desculpa, depois conversamos. Ela recebeu a xícara e os biscoitinhos com uma cara ainda bem feia, mas sorriu em agradecimento, quase a expressão de “tá bom, em casa conversamos”.
Não sentei em frente a Bia, fui em direção a Mayra, que aparentemente dormia na outra poltrona, de frente com a Marjorie. A delegada estava apagada que chegava a roncar, boa havíamos dividido o horário de guarda e observação, para sempre uma das duas olhar a detenta. Dei um peteleco na perna dela, um chutinho para que a Mayra acordasse, ela abriu o olho assustada.
- Quer uma água? Um café? Ir no banheiro? - perguntei seca e bem direta.
- Olha só, quem serve a quem? Não quero porr* nenhuma vagabunda.
- Grossa! Vai ficar aí até chegar em São Paulo então. Palhaça.
- Não quero sua ajuda não, não quero nada que venha de você. Não foi nem capaz de cumprir com sua parte.
- Minha parte? Eu nunca te prometi nada, nunca te ofereci nada. Já falei, não negocio com bandido, com pilantra.
- É… mas agora eu vou te quebrar e não vai ser pouco. Essa sua pompa de certinha vai cair.
- Nossa, quanta ameaça, tenho até medo - falei com ironia.
- Sabe sua ex-namorada, a Bruna? Quem você protege, cuida. Sabe? Ela vai cair comigo - não sabia se era blefe, mas olhei pra ela e sacodi a cabeça de uma forma que dizia “vai fala” - Ela me ajudou a fugir, ela me ajudou no disfarce, ela recebeu meu passaporte e me entregou. Ela ajudou uma fugitiva, se eu for presa, ela vai junto.
- Mayra, para com isso. Olha sua situação, você já caiu. Se ama tanto ela como fala, acha que vale a pena estragar a vida dela assim?
- Se eu cair, denuncio ela. Levo ela junto.
- Não sabe que simplesmente falar não causa nada. Nem tem como provar.
- Não? Vê com a moto de quem eu cheguei ao aeroporto, ver as câmeras do prédio dela. Ah Flávia, quero ver se agora não vai negociar com vagabundo. Ah, sua namorada sabe de tudo?
- Chega! - Virei de costas me afastando dela.
- Não contou né?! - não respondi, me afastei sentando na minha poltrona, de frente para a Beatriz. Ela estava prestando atenção em toda a discussão, a Marjorie já havia acordado, prestando atenção em tudo também - Bia, Beatriz!!!
- Não dá corda Bia - tentei.
- Ah Beatriz, sabia que a morte do Ricardo foi meu presente para a Flávia? Eu mandei matar ele pra vocês!
Fim do capítulo
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