Capitulo 26
Se há algo que tira Marcela do sério – que a faz ferver de impaciência e roer as unhas de pura frustração –, o nome dela é semáforo. Parece uma conspiração pessoal e orquestrada, não importa a cidade. Quando ela desesperadamente precisa que esteja verde, ele está irritantemente vermelho. Quando só quer um tempinho no sinal fechado para ver ou mandar uma mensagem – um mísero instante de trégua –, parece que todos os semáforos resolvem ficar verdes de repente, como se zombassem de sua pressa.
Em horários de pico, então, nem se fala! É como se os semáforos enlouquecessem, numa afronta direta à sua sanidade. O da frente de Marcela ficava verde e, magicamente, todos os outros à sua frente estavam vermelhos. Quando o dela passava, todos os outros abriam – uma sucessão de empecilhos que a levava à beira de um ataque de nervos. Isso é raro numa metrópole, onde geralmente acontece o contrário.
O motivo de todo o seu estresse? Ela queria enviar um vídeo para a mulher dona dos seus pensamentos nos últimos dias, mas o tempo parecia conspirar contra, com os intervalos dos semáforos totalmente desgovernados, transformando cada parada em uma tortura lenta. Quando finalmente chegou na Ponte dos Ingleses – que, na verdade, não tem nada de ponte, é um píer de 120 metros mar adentro, com muretas de vidro, piso de madeira e bancos espalhados, além de lojas –, o lugar estava, como sempre, lotado de turistas observando o pôr do sol.
Marcela ainda não tinha conseguido fazer o bendito vídeo. Estacionou o carro uma rua depois do planetário, que ficava perto do píer, para evitar os estacionamentos convencionais que registravam a placa do veículo – uma medida de precaução que já a deixava apreensiva.
Alex correu na frente de Marcela, enquanto ela caminhava devagar, com o coração aos pulos, checando o celular. Ligou para Chiara, mas ela não atendeu – um arrepio de ansiedade percorreu sua espinha. Mandou uma mensagem:
— Ligue quando estiver livre.
Sua, M”
Uma hora depois, seu celular vibrou com uma chamada de vídeo, bem quando ela e Alex esperavam na fila para comprar sorvete.
— Parla, amore mio.
O som da voz dela fez o estômago de Marcela revirar – uma mistura de prazer e uma pontada de pavor.
— Ouvir você falando assim me deixa com as pernas bambas. — Marcela sabia que estava sorrindo feito boba, pois as pessoas a encaravam.
— Amore, você não sabe quem veio aqui no quiosque com um buquê de rosas para me convidar para jantar. — Do outro lado, Chiara tentava afastar os fios soltos do cabelo curtinho na frente, que, por serem menores que o restante, viviam escapando do elástico.
— Imagino. Quando saí, minha mãe comentou que a família ia jantar no seu restaurante e que o Eduardo ia antes ao shopping te pedir em namoro. — Alex, ao lado de Marcela, dava pulinhos e segurava seu braço. Ela reconheceu a voz e queria a todo custo ver a sua mais nova amiga.
— Ele já esteve aqui, você não contou para eles sobre nós? — Os olhos grandes de Chiara, da cor de melado derretido, desaprovavam o silêncio de Marcela em relação a elas duas – um olhar que fez Marcela sentir um nó na garganta. Isso a deixou feliz, era um sinal de que, mesmo sendo hétero, Chiara não se preocupava se fosse homem ou mulher.
— Ainda não. Não confio no meu padrasto e no que ele pode fazer para me prejudicar. — Marcela estava sendo sincera. Tinha pavor só de pensar em prejudicar Alex – uma angústia que a consumia por dentro.
— É sério assim?
— Sim. Eu vou te contar tudo, mas preciso que tire dois dias de folga, a partir de hoje. O que você falou para o Eduardo? — Era hora de se abrir e depositar sua confiança nela – uma decisão difícil, mas necessária.
— Devolvi as rosas e falei que já estava namorando, que ele deveria tirar essa ideia da cabeça. Ele queria que eu contasse quem era o "cara". Foi preciso os rapazes tirarem ele daqui para evitar escândalo. No fim, eu contei para o Danilo e para o Saulo sobre nós. Mesmo sendo amigos do Eduardo, eles não vão falar nada. São amigos o suficiente para esperar que eu mesma conte.
Marcela pediu para Chiara esperar quando chegou a vez delas na fila. Entregou o sorvete para Alex e, imediatamente, o tomou de volta. As mãos dela estavam mais sujas que o chão da própria loja – um pequeno detalhe que a fez suspirar de exaustão.
— Moça, por favor, me arranje um pouquinho de álcool para limpar as mãos dessa mocinha. Filha, vai lá limpar as mãos.
Os amigos de Chiara apareceram atrás dela no vídeo, rindo e acenando.
— Amor, deixa eu te apresentar meus irmãos de coração. — Um dos rapazes se adiantou.
— Pode deixar que eu mesmo me apresento. Amor… — Ele se dirigiu a Marcela.
— O nome dela é Marcela, seu imbecil.
— Eu sou o Saulo, o gostosão da turma. É um prazer conhecer a namorada da minha best friend.
Danilo Marcela já conhecia, mas ele mesmo assim se apresentou, revezando entre conversar com ela e atender os clientes. Por último, apareceu uma garota de óculos.
— E eu sou a Gorete. Eu já te conhecia só de ouvir falar. Não sei de quem eu tenho mais pena, se de você por minha amiga ser barraqueira, ou dela por você ser essa gostosa para cacete. Com todo respeito.
Chiara deu um beliscão no braço da amiga, que gem*u. Os rapazes riram, concordando com ela.
— Eu sou Alex, a filha dela. — O celular quase caiu da mão de Marcela quando Alex surgiu do nada, puxando seu braço.
— Oi, princesa. Saudade de você. — Chiara respondeu, afastando-se dos amigos que acenavam para Alex.
— Você é a namorada da minha mãe? — A naturalidade com que Alex falou encheu Marcela de orgulho – um orgulho que aquecia seu peito.
— Eu pretendo ser, mas isso depende da sua mãe. Você deixa?
— Eu deixo! Pode sim! Aceita, mamãe, na casa dela tem um monte de brinquedo e muito sorvete de todos os sabores!
Alex agarrou o braço de Marcela, puxando de um lado para o outro com as mãos lambuzadas de sorvete. Marcela a mandou de volta ao banheiro para lavar as mãos, voltando a atenção para o grupo que se formava novamente atrás de Chiara.
— Gorete, meninos, vocês podem liberar a amiga de vocês neste final de semana?
Os sorrisos que antes eram dirigidos a Alex se tornaram maliciosos – um indício do que estava por vir. Eles concordaram na hora.
— Então passo na sua casa assim que resolver uns assuntos e vamos para onde o sol se põe.
E pronto. Os amigos de Chiara explodiram em piadinhas, falando uns por cima dos outros e rindo alto. Ela os empurrou para longe. Eles ainda fizeram umas gracinhas e voltaram ao trabalho.
— Que tipo de roupa devo levar? — Chiara sentou em um dos bancos espalhados pela praça de alimentação.
— É um sítio próximo à praia. — Marcela esclareceu. O olhar intenso de Chiara incendiava o corpo de Marcela, fazendo-a lembrar da última vez em que ficaram abraçadas – um calor que a envolvia por completo.
— Eu vou sair antes de fechar para evitar que o Eduardo me siga. Ele continua aqui no shopping, e pela quantidade de chope que está consumindo, tudo aponta para uma cena. Vou direto para a minha casa arrumar tudo.
— Não deixe minha família te ver. Se eles ainda não sabem que estamos juntas, será mais seguro para você. — Marcela não queria deixá-la preocupada, mas também não podia expô-la – uma preocupação que a atormentava.
— Vá fazer o que tem que fazer, eu vou te esperar.
Marcela viu quando o amigo desceu do carro de aplicativo do outro lado da rua, atravessou e ficou aguardando escorado em seu carro a amiga terminar de conversar.
— Jacinto, eu vou na frente. Vou deixar o portão encostado. Conte à mamãe sobre minhas desconfianças e peça para ela ficar de olho na Alex.
— Você pode chegar tranquila. A câmera da sua rua foi quebrada pelos pichadores quase agora, deixou o carro na sua mãe ou volto com ele?
Jacinto colocou o cinto de segurança enquanto Alex olhava Marcela apreensiva – um olhar que partia o coração de Marcela.
— Volte com ele e fique com ele posso precisar, e você, não se preocupe com nada, minha flor. O Jacinto vai deixar você com sua avó e volta amanhã para te trazer para o sítio.
Alex relaxou e abraçou Marcela apertado antes de ir com ele. Marcela observou até que eles se perdessem em meio aos outros veículos antes de pedir um Uber Moto – com o coração martelando no peito, sentindo uma urgência crescente.
Entrou sem dificuldade na casa. Pegou uma escada no galpão, onde ficava toda a bagunça que ninguém queria arrumar, e a escorou na parede que dava acesso à janela de seu quarto. Abriu o aplicativo Spy Cam em seu celular para procurar por câmeras escondidas. Estava limpo. Pulou para dentro e fez a mesma coisa no quarto de sua mãe. Procurou o notebook, tentando deixar tudo no mesmo lugar de antes. Lá estava ele, escondido embaixo das roupas do Renato – um indício alarmante de que sua intuição estava certa.
Puxou com cuidado, memorizando as peças entre as quais ele estava escondido. Achar o do Eduardo foi mais fácil: estava largado em cima da cama, ainda ligado. Só de levantar a tampa, o desktop se acendeu – a confirmação de suas piores suspeitas.
Algum tempo depois, coisa de meia hora, encontrou Jacinto, que já estava de volta. Ele vinha andando rápido pelo corredor e foram para o quarto de Marcela.
— Vamos trabalhar rápido, temos pouco mais de meia hora. O Eduardo está no shopping, mas pode voltar antes do previsto. — Marcela passou o notebook para as mãos de seu amigo, que sabia exatamente o que procurar.
Vasculharam as fotos, histórico do Google e e-mails. Renato realmente andava pesquisando sobre a vida de Marcela. Nada muito sério; suas pesquisas se limitavam a saber onde ela morava, em que quartel estava locada, se tinha sido punida alguma vez por insubordinação… Coisas bobas. Mas ele tinha fotos recentes de Marcela e Alex, tiradas sem permissão. Marcela sentiu um arrepio na nuca só de imaginar – um calafrio de puro terror. Apagou todas, tremendo de raiva – uma fúria que a fez cerrar os punhos.
— Olha só o que encontrei, Marcela. — Jacinto virou a tela do computador para ela, revelando centenas de fotos da Chiara.
— Parece que o crime está na genética de pai e filho. Encontrei fotos minhas e da Alex aqui também. Eu poderia prendê-los por uso de fotografias e filmagens ilícitas, mas isso faria minha mãe sofrer. Apague tudo.
Marcela continuou as buscas. Parou abruptamente em um e-mail que lhe chamou a atenção – um texto que gelou seu sangue. Jacinto, percebendo sua mudança, sentou ao lado dela e tirou o computador de suas pernas para ler o e-mail.
“Pastor, que o senhor esteja sempre guiando seu caminho.
Nada encontrei sobre a pequena serva de Deus que me pediu informação. Nas comunidades onde congrego ninguém nunca ouviu falar dela, mas meu filho é delegado e foi transferido para Caucaia, que fica pertinho da sua congregação. Vou mandar o vídeo e pedir para ele investigar. Mas se o pastor quiser tomar a guarda da pequena serva, pode entrar com o processo, nós da igreja testemunharemos a seu favor. Temos muitos juízes evangélicos e bons advogados que trabalharão em nome do senhor.
Ps. Salve este email, pois perdi o outro e não consigo acessar a conta.”
Jacinto baixou o e-mail e salvou em um pendrive. Ele pesquisou outras mensagens entre os dois, incluindo as que estavam na lixeira ou foram marcadas como spam.
— Este tem a data de hoje à noite. — Apontou para um e-mail não lido.
— Destrua tudo.
O vídeo mostrava Alex sorrindo, sentada com outras crianças que cantavam alegremente. Jacinto apagou tudo.
Ele ficou de pé, segurando o computador na vertical, e o soltou. A queda foi rápida e fez pedaços de plástico voarem para os lados com o impacto. Jacinto repetiu a ação mais uma vez.
— Isso é o suficiente. Devolva para onde tirou.
A vontade de Marcela era descarregar o tambor de seu revólver na cara do Renato e vê-lo estrebuchando lentamente – uma raiva visceral, um desejo de vingança pulsando em suas veias. Aquele canalha ordinário! Abusando da inocência de uma criança, abusando de sua confiança! Sua intenção era tomar sua filha dela! Que diabo de amor é esse? – um grito mudo de indignação.
Devolveram tudo aos seus respectivos lugares. Marcela trancou a porta de seu quarto e fechou a janela com o ferrolho. Saíram.
— Vou passar todas essas informações para o Leleco e pedir para investigar esse pastor e seu filho delegado. Se eles tiverem rabo preso, vamos descobrir.
— Minha vontade é de matar esse filho da puta. — Marcela entrou no carro e bateu a porta com força – um gesto de pura revolta e desespero.
— Não pode fazer isso. Vai se expor e Alex precisa de você. Além disso, não temos provas para processá-lo. — Jacinto também entrou e sentou escorado na porta do carro.
— O filho da puta nem gosta da Alex de verdade, ele só quer tirá-la de mim por não achar que uma lésbica seja capaz de criar uma criança. Acha que Alex será salva do inferno e que ele será seu salvador.
— Isso dá cadeia. Você pode processá-lo por homofobia e levar o caso para a mídia. Com o apoio da comunidade LGBTQIA+, qualquer juiz te dará ganho de causa.
— Eu sei. Mas por enquanto não posso expor minha filha.
— Eu sei disso, mas ele não. Você pode ameaçá-lo na frente da sua família, tentar constrangê-lo. Pode dizer com todas as letras que leu por engano os e-mails no computador da sua mãe, passar na cara dele uma cópia das conversas com o seu amigo. Isso vai fazer ele parar.
— Vou pensar. Por agora, passe para cá e assuma a direção. Não estou com cabeça para dirigir. Me deixe no Gregorio’s e vá para casa.
— Nada disso, você pode fazer besteira.
— Vontade não falta, mas eu vou aparecer por lá para ir para casa com eles. Quero pegar minha moto e levar a Chiara para o sítio.
— Não está mentindo para mim?
Ele a deixou na frente do restaurante, ainda desconfiado. Sua mãe sorriu satisfeita quando a viu. Ela não sorriria assim se soubesse o quanto Marcela queria quebrar a cara do filho dela e matar seu marido – um segredo pesado que Marcela guardava com um misto de dor e fúria.
queria quebrar a cara do filho dela e matar seu marido.
Fim do capítulo
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