Capitulo 21
21.
O caminho de volta para casa decorreu num silêncio denso, quase palpável. Claire estava sentada atrás de mim na moto, mas a sua presença, normalmente reconfortante, agora parecia distante. Os seus braços ainda me envolviam, mas o aperto era fraco, hesitante, como se a sua mente estivesse noutro lugar. Sentia a tensão a emanar dela, os seus dedos inquietos a apertarem levemente a minha cintura. O vento cortava o silêncio entre nós, mas não conseguia dissipar o peso que carregávamos.
Quando finalmente estacionámos na garagem, Claire desceu rapidamente, sem sequer esperar por mim. Caminhou em direção à entrada da casa, parando diante da porta, hesitante. O seu corpo parecia travado, como se estivesse a lutar contra uma decisão interna. Ela sabia que algo tinha acontecido. Sabia que eu não podia mais adiar o inevitável.
— Claire... — Chamei suavemente.
Aproximei-me devagar, sentindo cada passo como se estivesse a caminhar sobre uma corda bamba. Ela encarou-me. Os seus olhos brilharam sob a luz fraca da varanda. Havia algo diferente neles. Uma mistura de receio e expectativa que eu não conseguia decifrar completamente. Os seus lábios estavam levemente apertados, como se estivesse a tentar conter palavras que insistiam em escapar.
— O que foi? — perguntou, cruzando os braços sobre o peito.
Defesa. Uma barreira invisível que ela estava a erguer entre nós. Respirei fundo. A tensão espalhava-se pelo meu corpo. O ar parecia mais pesado, como se o próprio mundo estivesse a observar-nos, à espera de ver como lidaríamos com o que estava por vir.
— Recebi uma mensagem hoje. — A minha voz saiu seca, cortante. — Uma ameaça.
O rosto de Claire contorceu-se ligeiramente. Os seus olhos estreitaram-se num misto de confusão e preocupação. O seu corpo retesou-se. Os braços antes cruzados agora caíram ao lado do corpo. Os seus dedos fecharam-se em punhos.
— Como assim, uma ameaça? — perguntou, a sua voz baixa, contudo carregada de uma raiva contida que eu não tinha percebido antes.
Sem dizer nada, tirei o celular do bolso e entreguei-lho. Claire franziu a testa assim que viu a foto. De nós duas. A imagem era nítida, capturada de um ângulo preciso, deixando claro que não era coincidência. Logo abaixo, a mensagem provocativa brilhava na tela. As palavras cortavam como lâminas. Os olhos de Claire percorreram as linhas rapidamente. E eu vi. Vi a fúria a acumular-se no seu rosto. Os seus lábios apertaram-se numa linha fina. A sua respiração tornou-se mais pesada.
— Quem mandou isto?
A sua voz saiu baixa. No entanto a raiva continuava presente fazendo-me estremecer.
— Não sei. — Cruzei os braços, sentindo-me impotente diante daquela situação. — Mas nós duas sabemos quem pode ter sido.
Claire trincou os dentes. Os seus punhos cerraram-se com tanta força, vi os nos dos dedos ficaram brancos. O seu corpo estava rígido, pronto para reagir. Cada fibra do seu ser parecia prestes a explodir, como se enfrentaria fisicamente quem quer que tivesse ousado ameaçar-nos. A sua respiração tornou-se pesada. O peito subia e descia num ritmo rígido, controlado.
Mas os seus olhos… Esses ardiam.
Uma fúria crua, intensa, que parecia ameaçar consumi-la por inteiro.
— Não entendo. — A sua voz, apesar de firme, saiu carregada de incredulidade. — Primeiro a Michelle, com aquele vídeo. Agora esta foto nossa.
Ela passou a mão pelo rosto, os lábios apertados numa linha tensa.
— Eu até compreendo a razão do meu pai insistir nesta relação com o Alex.
A raiva era visível na forma como cuspiu o nome dele. Porém o que a fazia tremer de indignação, o que ela não conseguia processar, era a obsessão daqueles dois. Claire riu sem humor, um som amargo que ecoou na garagem silenciosa.
— O que eu não entendo… é esta obsessão doentia que o Alex e a Michelle têm por mim. — Ela observou-me antes de continuar, nos seus olhos podia ver a exasperação, um peso que eu começava a entender melhor agora. — Eles não me querem apenas para aquele casamento ridículo que o meu pai insiste. Eles querem… controlar-me.
Ela passou os dedos pelo cabelo, num gesto nervoso.
— Quero dizer… primeiro, o Alex sempre se achou dono de mim. Mesmo quando eu o rejeitava, ele agia como se isso não tivesse importância. Como se fosse apenas uma questão de tempo até eu me render. — Engoliu em seco, vacilando por um segundo antes de continuar. — E depois… a Michelle.
O nome da ruiva saiu frio, carregado de um desprezo que Claire nem tentou disfarçar.
— Ela sempre teve este jogo de me testar, de me provocar. De me querer debaixo do controlo dela.
Eu sabia do que ela falava. Os olhares que Michelle lhe lançava. O sorriso cínico, a forma como ela parecia gostar de a manipular.
— E agora isto? — Ela apontou para o meu celular. — Agora querem usar ameaças? Chantagem? O que é que eles realmente querem de mim? — Ela passou uma mão pelo rosto, respirando fundo, tentando acalmar-se. — Por que é que simplesmente não desistem?
Eu não sabia como responder. Contudo suspeitava de uma coisa. Eles não desistiriam por vontade própria. E, pelo seu olhar, eu sabia que provavelmente ela já tinha chegado a essa mesma conclusão. Claire inspirou profundamente, os olhos fixos no chão da garagem, como se tentasse encontrar alguma lógica no caos que nos rodeava.
Mas não havia lógica.
A única coisa que havia eram ameaças, chantagem e a certeza de que eles não iam parar. Ela voltou a olhar na minha direção, a mandíbula cerrada, como se travasse uma luta interna entre a raiva e a necessidade de manter o controlo. Um arrepio subiu-me pela espinha. Eu queria acreditar que bastaria encontrá-los e confrontá-los para acabar com tudo.
No entanto, no fundo, sabia que não seria tão simples. Havia consequências. E essas eram grandes demais.
Os meus pais…
O escândalo…
A forma como tudo podia ruir antes de estar preparada, antes de ter a certeza de que Claire não seria afetada.
— Claire, isto muda tudo. — Murmurei, a minha voz tremeu levemente. — Os meus pais… Eles não podem saber assim. Eu quero contar. Mas do meu jeito. Na melhor oportunidade.
Esta analisou-me por um segundo a mais. E, por um instante, vi os seus olhos suavizarem-se. A sua frustração deu lugar a algo mais profundo. Compreensão. Aproximou-se, pousando com delicadeza uma das mãos no meu rosto.
O seu toque era quente, reconfortante.
Firme.
— Eu sei. — Expôs, agora mais calma, contudo carregada de uma certa intensidade. Ela deslizou os dedos pelo meu maxilar, os olhos presos nos meus. — Nós não vamos deixar que nos controlem com ameaças.
Já no quarto, entrei na banheira, permitindo que a água quente envolvesse lentamente o meu corpo. O calor penetrava-me a pele, afrouxando a tensão que eu carregava há dias.
Fechei os olhos e inspirei profundamente.
O som suave da água a escorrer da torneira preenchia o silêncio da casa de banho, criando uma atmosfera calma que me permitia finalmente pensar.
E quanto mais pensava, mais claro se tornava:
Eu não podia permitir uma terceira ameaça.
Não podia continuar a viver assim, à mercê do medo, permitindo que alguém usasse a nossa relação com Claire para nos intimidar ou manipular.
A impotência que senti ao receber aquela mensagem ainda ecoava no meu pensamento
Mas agora, estava acompanhada por algo novo.
Determinação.
Precisava de agir.
E precisava fazê-lo antes que a situação escapasse ao meu controlo.
Lembrei-me da conversa com Emma naquela tarde. Ela tinha sido compreensiva, contudo a sua preocupação era evidente.
A minha sexualidade, o meu relacionamento com Claire…
Tudo isso deveria ser abordado no meu tempo.
E não por estar a ser chantageada por alguém.
Abri os olhos e olhei para o meu celular, apoiado na borda da banheira. Limpei a mão molhada na toalha e estiquei o braço para o agarrar firmemente. Desbloqueei a tela e percorri as mensagens até encontrar o contato de Mari.
As minhas mãos ainda tremiam ligeiramente, mas a minha mente estava decidida. Eu precisava da sua ajuda.
No dia seguinte, depois das aulas, saí apressada da universidade e fui ao encontro de Mari. Estacionei a minha moto à entrada da sua casa e enviei uma mensagem a avisar que estava à porta. A ansiedade batia no meu peito, mas eu sabia que não podia vacilar. Precisava de ter a certeza de quem estava por trás daquilo.
— Entra, Bia. — disse a Mari ao abrir a porta. A sua voz era descontraída, mas eu sabia que ela estava tão curiosa quanto preocupada. — O meu primo ainda não chegou, vou tentar ligar para ver onde ele está.
— Não tem problema, eu não estou com pressa. — respondi, esforçando-me para parecer mais calma do que realmente estava.
Segui Mari até ao seu quarto, um espaço familiar que já havia visitado inúmeras vezes, mas que hoje parecia carregado de uma energia diferente. Esta sentou-se na cama, cruzando as pernas e olhando-me atentamente.
— Está tudo bem com a Claire? Ela sabe que estás aqui?
Sentei-me ao seu lado, passando as mãos pelos joelhos antes de responder.
— Não, ela acha que eu vou ficar até mais tarde na faculdade para terminar um trabalho de grupo. — respondi, a minha voz saiu mais firme do que eu esperava, mas um tremor subtil escapou-me, traindo a minha inquietação.
— Certo…, mas ela já sabe da mensagem? — Mari inclinou ligeiramente a cabeça, a curiosidade misturada com preocupação.
Suspirei antes de responder.
— Sim. Eu decidi contar-lhe.
— E?
— Ela ficou irritada, claro. Mas acho que, no fundo, já esperava que algo assim acontecesse.
Mari acenou, ponderando.
Meia hora depois, a campainha tocou. Lucas, primo de Mari, entrou a passos rápidos, murmurando uma desculpa pelo atraso enquanto ajustava os óculos que insistiam em deslizar pelo nariz.
— Trânsito infernal.
Cumprimentei-o com um aceno e tentei tranquilizá-lo quanto à situação, embora eu mesma não estivesse nada tranquila. Ele observou-me, corado, depois olhou para Mari, que apenas revirou os olhos com impaciência.
— Anda lá, génio da informática, mostra-nos do que és capaz. — Provocou, empurrando-o levemente para o quarto.
Enquanto caminhávamos, expliquei a Lucas a razão pela qual o tínhamos chamado. Ele ouviu com atenção, contudo, quando mencionei que suspeitávamos de Michelle e Alex, o seu interesse redobrou.
— Então… estão a dizer-me que há uma boa hipótese de ser um riquinho mimado e a sua irmã psicopata por trás disto? — perguntou, levantando uma sobrancelha.
— Não é hipótese. É quase certeza. — Murmurei, sentindo a raiva ferver debaixo da pele.
— Ótimo. Detesto gente com dinheiro e demasiado tempo livre.
Mari riu.
— Então vais divertir-te.
Lucas abriu o seu laptop, os dedos deslizando rapidamente pelo teclado. A forma como digitava, sem hesitação, era impressionante. Ele murmurava algo de vez em quando, enquanto linhas de código preenchiam a tela, fazendo parecer que estávamos num daqueles filmes de hackers.
Mari e eu observávamos em silêncio, ela claramente mais entusiasmada do que eu.
— Sabias que o Lucas já invadiu o sistema da escola uma vez? — contou Mari, sorrindo de lado.
— Não era suposto dizeres isso. — respondeu ele, sem desviar os olhos da tela.
— Oh, vá lá. Foi épico.
Eu forcei um sorriso, mas o meu foco estava no celular que repousava ao lado do computador. O meu coração batia rápido, ansioso por respostas. Lucas continuava a digitar rapidamente, os seus olhos focados na tela. Linhas de código passavam à sua frente numa velocidade impressionante, enquanto Mari e eu observávamos em silêncio. O meu coração batia descompassado, a expectativa misturava-se com o receio.
Eu precisava de respostas.
E, mais do que isso, precisava de saber o quão fundo esta ameaça ia.
Depois de alguns minutos, Lucas parou subitamente.
Franziu a testa, inclinando-se ligeiramente para a frente.
— E então? — perguntei, incapaz de conter a impaciência.
Ele estalou a língua contra o céu da boca, parecendo frustrado.
— A boa notícia é que consegui rastrear o IP de origem.
Mari e eu trocámos um olhar.
— E a má? — questionou ela, impaciente.
Lucas virou o laptop na nossa direção e apontou para um conjunto de números e informações técnicas que, para mim, não faziam sentido algum.
— A má notícia é que esta mensagem foi enviada a partir de um computador, e não de um celular.
A minha expressão fechou-se.
— Isso significa que não consegues saber quem a enviou?
Ele suspirou e ajustou os óculos.
— Ainda não. Contudo consegui identificar que foi enviada de um endereço fixo, o que significa que veio de um local específico e não de um dispositivo móvel. Isso é bom.
— Bom como? — Mari cruzou os braços, olhando-o como se ele acabasse de lhe dizer que tinha perdido um bilhete de lotaria premiado.
Ele suspirou, ajeitando os óculos antes de responder.
— Porque significa que, se conseguirmos aceder ao router dessa rede, podemos identificar o utilizador que enviou a mensagem.
Mari piscou os olhos, claramente processando a informação.
— Espera… isso quer dizer que, se a mensagem foi enviada de casa da Michelle e do Alex, teríamos de invadir o Wi-Fi deles para descobrir quem a enviou?
Lucas riu-se, sacudindo a cabeça.
— Não precisamos ir tão longe. — Disse com um sorriso de quem adorava um desafio. — Mas, se conseguirmos mais detalhes sobre essa rede, podemos rastrear a origem exata da mensagem. Com um pouco de paciência, conseguimos o endereço físico do local de onde foi enviada.
Respirei fundo, tentando absorver a informação. Isso significava que estávamos perto, mas ainda não era suficiente. Apenas mais um passo. Mais uma peça no puzzle. Porém havia algo mais que me preocupava.
— E quanto ao vídeo que a Claire recebeu? — perguntei, a minha voz mais tensa agora.
Lucas parou, mordendo o lábio inferior.
— Isso é mais complicado. — Murmurou, os dedos parando por um instante sobre o teclado.
— Porquê? — Mari arqueou uma sobrancelha, impaciente.
Ele virou-se lentamente na minha direção, o olhar mais sério agora.
— Para aceder ao vídeo ou rastrear a mensagem que a Claire recebeu, preciso do celular dela. — Explicou, ajustando os óculos. — Com o dispositivo em mãos, talvez eu consiga rastrear o número que enviou o vídeo e, a partir daí, tentar aceder ao dispositivo de envio.
Senti o meu corpo ficar rígido.
— Ela tem de estar aqui?
Lucas assentiu.
— Sim. Se o vídeo foi enviado por um número descartável, pode ser difícil rastrear. Mas se foi enviado de um dispositivo pessoal, posso tentar invadi-lo e apagar qualquer outro vídeo que a Michelle possa ter guardado no seu celular.
Mari assobiou baixinho, cruzando os braços.
— Estás a dizer que podes entrar no celular da Michelle?
Lucas encolheu os ombros com um sorriso de quem já tinha feito coisas piores.
— Se eu conseguir o número certo, sim. Mas para isso, precisamos do celular da Claire.
Os meus pensamentos estavam a mil. Isso significava que tínhamos uma hipótese real de apagar as provas que Michelle tinha. Porém também significava que precisávamos agir rápido, antes que ela decidisse usar o que quer que tivesse guardado.
— Então amanhã trazemos a Claire para cá. — declarei, a decisão tomada.
Lucas e Mari trocaram olhares antes de assentirem. Eu sabia que isto ainda não tinha acabado. Mas agora, pelo menos, tínhamos um plano.
Fim do capítulo
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